FALA TU
Guilherme Coelho, Brasil, 2003

Com três rappers e um DJ no núcleo principal do filme, mostrados em curtos fragmentos verbais e visuais nos seus ambientes familiares e profissionais, Fala Tu expõe o esvaziamento do sonho artístico. É um filme sobre utopias pessoais que, confrontadas com os efeitos de uma conjuntura social exasperante, são sabotadas ou inibidas. Na própria escolha dos entrevistados, está claro o recorte proposto: em vez de optar pelos astros do rap, ou de mostrar esse universo cultural como um contraponto positivo à sedução financeira oferecida pelo crime em comunidades carentes, a câmera vai à segunda divisão. E lá a visão positiva é mais difícil. São homens e mulheres que, quando não estão atrás de uns trocados em bicos e subempregos (jogo do bicho, telefonista, vendedor), expressam angústias nas letras. Eles falam das dificuldades, de problemas em casa, de suas biografias, da expectativa de vingarem. Os “personagens”, mais que singulares, são sintomáticos. Representam com seus dramas individuais um estado mais amplo de coisas. São exemplos de como esboços de talentos podem ir murchando ao sofrerem golpes da vida ou por não conseguir saltar os obstáculos. Filme para baixo e de luto, menos porque assim queira, mais porque assim é. Distopia tão acentuada que, quando se mostra alguém pensando grande ou longe, a resistência pelo otimismo soa ingênua. Assim o documentário nos induz a sentir.

Na elaboração desse material, predomina a desorganização. São muitas as situações despejadas na tela sem sentido aparente, são vários os momentos nos quais os personagens são sabotados pelos cortes, são perceptíveis as desigualdades dramáticas entre os personagens, são desiguais também os resultados da aproximação entre os diretores e seus “objetos”. A montagem picotada resulta em um reunião de retalhos mal alinhavados: mostra-se os melhores momentos de cada fala, não o processo do discurso de cada um. A fragmentação talvez se deva à necessidade de ir de um foco narrativo a outro. Fica-se em um zigue-zague que, passado alguns minutos, deixa a estrutura manca, pois uns são esquecidos e, de sopetão, um quarto foco entra em cena, mas só para ser abandonado de vez adiante. A irregularidade é salientada por um dos entrevistados, Macarrão, anotador do jogo do bicho em um morro no Estácio, que se articula com mais vigor e revolta, portanto, com uma voltagem dramática que ofusca os demais. E ofuscaria ainda mais se a montagem não pusesse freio em sua retórica. Também é dele os melhores momentos obtidos pela postura observadora da câmera em relação ao mundo dos entrevistados. As cenas com a esposa, mediada que seja pela câmera, revelam autenticidade. Macarrão sugere o bom filme que se deixou de fazer.

Esse bom filme também pode ser vislumbrado nos trechos em que as entrevistas são substituídas pelo olhar menos interventor. Por mais que a câmera, com sua presença, rompa a cotidianidade, tornando quase impossível a captação de uma intimidade, pois está ali sendo simulada para o olhar público, há trechos menos posados. Eles são fruto tanto do distanciamento físico da própria câmera, como no local de trabalho de Macarrão, ou quando as emoções dos entrevistados superam a encenação, algo perceptível quando um deles visita o pai doente no hospital. Sobre o empobrecimento do documentário brasileiro contemporâneo por conta das entrevistas, ou pelo menos de seu uso excessivo, o crítico e professor Jean Claude Bernardet tem se debruçado em textos e palestras. Como disse em recente debate com Ismail Xavier, parcialmente transcrito na edição 52 de Contracampo, não se dá a palavra ao outro nesses casos, pois a palavra do outro é estimulada e editada pelo autor. Nesse sentido, Fala Tu, pelo próprio título, é caso a ser melhor analisado. Pois as falas dos “personagens” parecem confirmar o que se espera delas para o filme ter algum sentido. No entanto, apesar do sentido estar claro, o filme saiu torto.


Cléber Eduardo