Em
primeiro lugar, é preciso esclarecer o título
do filme. Uma inspiração crucial para
Gus Van Sant foi o documentário homônimo
feito por Alan Clarke em 1989, que se passa em período
e local (Irlanda do Norte) diferentes, mas que também
trata da violência entre os jovens através
de uma narrativa picotada. Apesar de Clarke ter assim
nomeado seu filme por julgar o problema abordado "tão
facilmente ignorável quanto um elefante na sala
de estar", Van Sant inicialmente achou que o título
se referia a uma antiga parábola budista sobre
um grupo de cegos examinando diferentes partes de um
elefante. Nessa parábola, cada cego afirma convictamente
que compreende a natureza do animal com base tão-somente
na parte que lhe chega ao tato. Ninguém vê
ou sente o objeto na sua totalidade, mas todos arriscam
um palpite totalizante e, naturalmente, equivocado.
Mesmo após ter descoberto o verdadeiro motivo
pelo qual o documentário de Alan Clarke se chama
Elephant, Van Sant afirma que o seu filme, rodado
numa high-school situada em Portland, tem mais
a ver com a parábola dos cegos.
O que Van Sant construiu em Elefante foi uma
visão fragmentária e não conclusiva
sobre a altamente complexa questão trazida à
tona pelo episódio sangrento de Columbine. Consagrado
por saber filmar os jovens sem deturpar seu universo,
o diretor adotou um posicionamento inequívoco,
aquele de onde se vê tudo e nada ao mesmo tempo:
o olho do furacão, o epicentro do evento trágico.
O filme cresce centripetamente, dos jovens retratados
em direção ao mundo oposto exato de
Tiros em Columbine, por exemplo. Os atores de
Elefante são os próprios alunos
do colégio em que se passa, selecionados após
uma série de entrevistas realizadas pela equipe
do filme. Eles são filmados em atitudes cotidianas,
às vezes preservando diálogos e situações
presenciadas por Van Sant enquanto os conhecia e travava
os primeiros contatos. O trabalho do diretor se caracteriza
em grande parte por esse misto de respeito e admiração
pelo universo dos jovens: foi assim com River Phoenix
em My Own Private Idaho, foi assim ao filmar
o roteiro de Matt Damon e Ben Affleck em Gênio
Indomável. O próprio Gerry,
projeto experimental e exercício estético
bastante ousado, onde já se nota extrema competência
na confecção de atmosfera e no aproveitamento
do potencial visual específico do ambiente, originou-se
de conversas com os atores Casey Affleck e Matt Damon.
Nasce sempre uma relação de proximidade
desse encontro entre Van Sant e jovens atores/personagens.
Antes de pôr qualquer coisa no papel, Van Sant
quis ouvir o que tinham a dizer os estudantes da high-school
onde Elefante foi filmado. O roteiro final nasceu
mais desse contato com o ambiente escolhido para abrigar
o filme do que das idéias originais do projeto.
A questão nem chega a ser de contaminação
do meio-ambiente no momento da filmagem. A cuidadosa
composição dos planos sugere todo um preparo,
todo um decoro, todo um posicionamento de atores e câmera
previamente estabelecido, mas a contaminação
se deu antes, no processo de escrita, e o mais peculiar
de Elefante talvez resida aí, num misto
entre técnica de reportagem tributária
tanto do neo-realismo (utilização de atores
não-profissionais fazendo o que fazem na vida
"real") quanto dos documentários "não-intervencionistas"
e um trabalho de construção de atmosfera
em nada gratuito ou feito à espontaneidade de
um registro documental. A câmera não simplesmente
escolhe um ângulo de onde a ação
se torne visível e assume uma postura passiva:
muito pelo contrário, a câmera interage
com os personagens, acompanha-os de muito perto, explora
os interiores da escola a ponto de mesclar-se a esse
ambiente, fazer parte dele como nunca nenhum outro filme
fez. Lá onde todos chegam repletos de teses pré-formuladas
e realizam enquetes somente para ajustar os depoimentos
às suas premissas, Van Sant encontrou vidas diferenciadas
e as deixou acontecer, para depois emprestar-lhes sua
visão de cineasta e aí sim o filme emerge
como uma construção inteiramente nova,
que insere elementos visuais e sonoros que estariam
ausentes no simples registro "direto". Não
se trata de reproduzir o incidente em Columbine, não
se trata de cobrir jornalisticamente o massacre. Trata-se
de penetrar num determinado universo estando munido
menos de intelectualidade do que de sentidos aguçados
e nele transitar menos com idéias formuladas
do que com puras impressões.
Os personagens de Elefante não estão
perspectivados por um motivo muito simples: não
há possibilidade de estabelecer uma distância,
a partir de um ponto fixo, entre observador e objeto.
Tanto o ponto de vista varia ao longo do filme, jamais
se fixa num mesmo personagem ou num mesmo local, como
a distância entre quem vê e quem é
visto tende a se anular. Em Elefante a estrutura
narrativa fragmentada não aparece a serviço
de um corte holográfico, que preserve sempre
o contorno do todo, ou para simplesmente incrementar
o filme. É justamente o contrário, é
a impossibilidade de uma visão global (além
da fratura do tempo ali implicada). Gus Van Sant rechaça
a psico-sociologização, rechaça
a perspectiva, rechaça a crítica, pois
reconhece que a questão extrapola tudo isso.
Chega a ser assustador quando vem a cena do massacre
e a acompanhamos com a mesma proximidade e imersão
que acompanhávamos o resto do filme.
Elefante se passa numa high-school como
outra qualquer. Não é Columbine, mas também
não é nenhuma outra em particular. Ao
não citar local nem data, Elefante adquire
uma dimensão importantíssima, que não
reduz o problema a nenhuma ordem social específica,
a nenhum contexto específico. Na cena no quarto
de Alex, um dos dois garotos responsáveis pelos
tiros, esclarece-se a postura essencial de Gus Van Sant
perante o tema: enquanto Alex toca Beethoven no piano,
a câmera gira 360ş mostrando tudo que está
à volta dele, todo o universo multicultural e
multicolorido que o circunda: videogames, quadros e
desenhos na parede (um deles, um elefante), roupas espalhadas,
televisão. Quem o levou a arquitetar o massacre?
Beethoven? O videogame que ele e o amigo/cúmplice
jogam, daqueles em que o jogador assume o ponto de vista
de alguém que atira em pessoas que atravessam
na sua frente (momento de auto-blague de Van
Sant, pois o jogo consiste nos personagens de Gerry
sendo abatidos no deserto)? O documentário sobre
o nazismo a que eles assistem na televisão? O
acesso fácil às armas de fogo, bastando
clicar num site da internet e recebê-las em casa,
via sedex? Tal resposta nunca emerge das imagens de
Elefante. Van Sant pensa que no cinema, assim
como nos jogos políticos e econômicos,
o desejo de compreender é imenso. Mas ele prefere
ir contra esse desejo e colocar-se ao lado da questão,
ou ainda, submerso na mesma (ver entrevista em Cahiers
du Cinéma nş 579). Num episódio em que
já imperava a lógica do absurdo e da aleatoriedade,
o unidunitê final vem como o encerramento a um
só tempo seco e aterrador. Do neo-slasher
aos documentários à la GNT, nenhum trabalho
atinge o que Elefante conseguiu atingir nesse
universo estudantil norte-americano, seja em matéria
de suspense, seja em matéria de captação
imediata de um acontecimento.
O filme possui imagens estranhamente belas. A
fotografia de Harris Savides é não menos
que sensacional (pena que as salas daqui não
estejam respeitando o formato 1:33 em que o filme foi
rodado). Um filme voluptuoso pelo apelo visual de
seus personagens, pela movimentação de
câmera, por seus poucos porém precisos
slow-motions. Existe um clima de tensão
e estranhamento tão bem fomentado no que o
som se torna crucial que assistir a Elefante acaba
sendo uma atividade dispendiosa. O tempo parece dilatado,
o filme parece durar mais do que seus 80 minutos. Isso
ocorre não porque Van Sant experimentou com a
duração da imagem, como havia feito em
Gerry, mas simplesmente porque a imersão
do espectador é tão grande que ele ao
final da projeção se sente exaurido, daí
a sensação de tempo estendido.
Elefante é uma obra-prima fundamental
para o cinema de hoje, que não fará tanto
estardalhaço quanto os jogos manipulatórios
grosseiros, o anti-americanismo pueril e o barbarismo
cínico de Dogville, nem terá sua
força política reconhecida por aqueles
que preferem as oposições primárias
(maniqueístas mesmo) e o conteúdo sentimentalista
(ou seja, não político) da ficção
de esquerda de Ken Loach, Costa-Gavras e cia. Enquanto
Lars von Trier quis "escrever" (a essência
de Dogville é profundamente literal e
literária) uma espécie de livro iniciático
para um cristianismo (talvez já em funcionamento
no mundo, tendo como ponta de lança os EUA) sem
compaixão e bélico, Gus Van Sant optou
por perscrutar uma realidade que ele reconhece entender
somente em parte, fazendo um filme que substitui qualquer
conceito a priori por uma mente totalmente aberta aos
sons, às imagens, às frases, aos gestos,
aos lazeres, às fraquezas e virtudes, em suma,
aos signos dessa juventude que retrata instantaneamente.
São filmes que diferem tanto em conteúdo
quanto na forma. De um lado o artifício escancarado,
o distanciamento brechtiano, e do outro a fusão
incrível entre dimensão ficcional e olhar
documentarista (romance e crônica), entre encenação
naturalista e construção narrativa fragmentária
(e, sob certo aspecto, anti-realista). Não se
trata aqui de enaltecer Elefante às custas
do desmerecimento de Dogville até porque
o filme de Van Sant não precisa disso, fala por
si mesmo , mas para quem assistiu aos dois filmes em
menos de 24 horas, a comparação é
inevitável.
É possível que Elefante tenha uma
passagem discreta pelo grande público, não
raro encontrando detratores pelo caminho algo perfeitamente
normal, em se tratando de um filme com tamanho vigor
estético e conceitual, que aborda um tema ultra-complexo
sem a pretensão de estar acima de sua compreensão,
mas sim buscando se colocar o mais próximo que
puder, mais especificamente a um palmo de distância
do rosto ou da nuca de quem protagoniza aquele conjunto
de situações. Justamente aí, onde
se põe em cena a imagem mais recorrente de Elefante,
ou seja, aqueles travellings pelos corredores
do colégio acompanhando um dos jovens do filme
sem qualquer distanciamento crítico, justamente
aí que nenhuma tese jamais chegou; ninguém
jamais ousou ver-ouvir o problema tão de perto.
Ao rechaçar a falsa aproximação
e mergulhar de cabeça no universo da high-school
americana, sem esquecer de manter olhos e ouvidos bem
atentos, Van Sant elaborou uma mise-en-scène
inédita, de raríssima coerência
estético-conceitual. Elefante sem dúvida
alguma assusta, mas sem desabar numa visão catastrofrista
e inútil: sua verdadeira contribuição
é de ordem construtiva, e a construção
em jogo é o sentimento de uma geração
(com seu modo particular de percepção
do tempo, com sua não-historicidade, com seu
universo simbólico multifacetado). Se no fundo
nenhum filme é obrigatório, por se tratar,
em última instância, apenas de um filme,
digamos então que Elefante é no
mínimo muito importante e que não é
definitivo porque não quer ser.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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