O
Rei dos Reis foi a primeira das duas superproduções
que Nicholas Ray dirigiu para o produtor Sidney Bronston
(que marcaram também o fim da sua carreira em
Hollywood). À primeira vista, este blockbuster
sobre a vida de Cristo, realizado com grande orçamento,
distribuição da MGM e um ator limitado
(Jeffrey Hunter) no papel principal, pode parecer um
projeto comercial mais desinteressante. Só que
o que Ray, auxiliado pelo roteirista Phillip Yordan
(que antes havia escrito Johnny Guitar para o
diretor) retrabalhou o projeto em inesperadas direções.
É útil ressaltar que O Rei dos Reis
foi feito logo após dois trabalhos que seriam
o seu oposto: Jornada Tétrica e Sangue
Sobre a Neve, duas produções baratas
que se construíam como parábolas pedagógicas.
De certa forma o filme é uma continuação
delas.
Isto porque O Rei dos Reis é sobretudo
um filme político, o que fica claro já
a partir da construção do filme. O
Rei dos Reis é, antes de mais nada, um esforço
em contextualizar a figura de Jesus Cristo dentro da
Judéia da época. Não é à
toa que Ray e Yordan começam o seu filme com
um prólogo onde os romanos tomam Jerusalém.
O filme parte daí para colocar Jesus cristo em
contexto, usando duas peças principais: a narração
em off bastante informativa feita por Orson Welles,
que trabalha o texto (escrito por um não-creditado
Ray Bradbury) no mesmo tom professoral que fez em vários
documentários da época; e uma estrutura
cheia de subplots. Além da história de
Jesus Cristo, o filme também acompanha a de João
Batista, a de Barrabás e os bastidores do palácio.
Esta estrutura por si só constrói a sensação
de que muito mais eventos estão acontecendo na
Judéia. Cada um deles nos informa à sua
maneira as tensões da época: as tensões
religiosas com João Batista, as políticas
com Barrabás, o palácio das disputas internas
e as formas como os romanos lidavam com tudo isso.
Todo este esforço de contextualização
serve para que Ray fale de poder. É justamente
isto que está em jogo e cada uma destas figuras
(assim como Jesus) de certa forma demonstra uma maneira
diferente de exercê-lo e projetar sua influência.
O Rei dos Reis por vezes se assemelha a um grande
jogo, com cada personagem bem consciente do que precisa
fazer para conquistar a população local.
Ray perversamente mantém a maior parte das ações
chaves de Jesus fora da tela e simplesmente a relata
para nós na forma de relatórios formais
em reuniões. Por exemplo: não assistimos
Pilatos pedindo que a multidão escolha entre
Jesus e Barrabás, mas um soldado romano relatando
ao segundo porque ele está livre. O que aumenta
o filtro político do filme. Há uma pesada
ênfase na retórica, na capacidade de cativar
as massas tanto de João Batista como de Jesus,
assim como a forma destemida de Barrabás é
reconhecida por Ray como atrativa, e os romanos se impõem
pelo medo. Por isto mesmo, o sermão da montanha
acaba se tornando a grande seqüência do filme.
Ela é construída por Ray como uma série
de diálogos onde Jesus demonstra todo seu carisma
enquanto expõe suas idéias (ainda que
para terminar de nos convencer ele precise morrer).
Assim ele o faz e o filme o expõe de forma a
terminar por se afirmar como a terceira parábola
pedagógica de Nicholas Ray.
Filipe Furtado
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