O rei dos reis
Nicholas Ray, King Of Kings, EUA, 1961

O Rei dos Reis foi a primeira das duas superproduções que Nicholas Ray dirigiu para o produtor Sidney Bronston (que marcaram também o fim da sua carreira em Hollywood). À primeira vista, este blockbuster sobre a vida de Cristo, realizado com grande orçamento, distribuição da MGM e um ator limitado (Jeffrey Hunter) no papel principal, pode parecer um projeto comercial mais desinteressante. Só que o que Ray, auxiliado pelo roteirista Phillip Yordan (que antes havia escrito Johnny Guitar para o diretor) retrabalhou o projeto em inesperadas direções. É útil ressaltar que O Rei dos Reis foi feito logo após dois trabalhos que seriam o seu oposto: Jornada Tétrica e Sangue Sobre a Neve, duas produções baratas que se construíam como parábolas pedagógicas. De certa forma o filme é uma continuação delas.

Isto porque O Rei dos Reis é sobretudo um filme político, o que fica claro já a partir da construção do filme. O Rei dos Reis é, antes de mais nada, um esforço em contextualizar a figura de Jesus Cristo dentro da Judéia da época. Não é à toa que Ray e Yordan começam o seu filme com um prólogo onde os romanos tomam Jerusalém. O filme parte daí para colocar Jesus cristo em contexto, usando duas peças principais: a narração em off bastante informativa feita por Orson Welles, que trabalha o texto (escrito por um não-creditado Ray Bradbury) no mesmo tom professoral que fez em vários documentários da época; e uma estrutura cheia de subplots. Além da história de Jesus Cristo, o filme também acompanha a de João Batista, a de Barrabás e os bastidores do palácio. Esta estrutura por si só constrói a sensação de que muito mais eventos estão acontecendo na Judéia. Cada um deles nos informa à sua maneira as tensões da época: as tensões religiosas com João Batista, as políticas com Barrabás, o palácio das disputas internas e as formas como os romanos lidavam com tudo isso.

Todo este esforço de contextualização serve para que Ray fale de poder. É justamente isto que está em jogo e cada uma destas figuras (assim como Jesus) de certa forma demonstra uma maneira diferente de exercê-lo e projetar sua influência. O Rei dos Reis por vezes se assemelha a um grande jogo, com cada personagem bem consciente do que precisa fazer para conquistar a população local. Ray perversamente mantém a maior parte das ações chaves de Jesus fora da tela e simplesmente a relata para nós na forma de relatórios formais em reuniões. Por exemplo: não assistimos Pilatos pedindo que a multidão escolha entre Jesus e Barrabás, mas um soldado romano relatando ao segundo porque ele está livre. O que aumenta o filtro político do filme. Há uma pesada ênfase na retórica, na capacidade de cativar as massas tanto de João Batista como de Jesus, assim como a forma destemida de Barrabás é reconhecida por Ray como atrativa, e os romanos se impõem pelo medo. Por isto mesmo, o sermão da montanha acaba se tornando a grande seqüência do filme. Ela é construída por Ray como uma série de diálogos onde Jesus demonstra todo seu carisma enquanto expõe suas idéias (ainda que para terminar de nos convencer ele precise morrer). Assim ele o faz e o filme o expõe de forma a terminar por se afirmar como a terceira parábola pedagógica de Nicholas Ray.

Filipe Furtado