O evangelho segundo são mateus
Pier Paolo Pasolini, Il Vangelo Secondo Matteo, Itália, 1964

O primeiro aspecto geralmente destacado quando se fala de O Evangelho Segundo São Mateus é o fato da obra ter sido incluída na famosa lista do Vaticano com os 45 filmes de temas religiosos aprovados pela Igreja Católica, lista que, conforme consta nos extras do dvd desse filme de Pasolini, deixou de fora, por exemplo, o épico grandiloqüente Os Dez Mandamentos, de Cecil B. DeMille. Dada a carga prioritariamente simbólica, nada contestadora em relação ao evangelho e muito pouco violenta, o filme não teria por que ser desaprovado, assim como a singeleza e o lirismo de suas formas dificilmente não agradariam – do cristão ao não cristão, do fundamentalista ao herético, do mais crente ao ateu: todos devem reconhecer a beleza da poética pasoliniana em O Evangelho Segundo São Mateus. Mas a importância, ou, talvez fosse melhor dizer, a verdadeira qualidade do filme está em outro lugar, a quilômetros de distância tanto do apócrifo quanto da oficialidade religiosa.

Do Cristo interpretado por Enrique Irazoqui em O Evangelho Segundo São Mateus ressai a jovialidade e o semblante que, apesar de aparentemente imodificável nas passagens mais prosaicas do filme, pode alterar-se mediante sua impaciência com a falta de fé, com a incompreensão de alguns homens em relação às escrituras de Deus, com as eventuais más interpretações de suas palavras. Esse perfil irascível contradiz a visão comumente parcimoniosa e meiga de um Cristo sempre disposto a tudo tolerar. Em O Evangelho Segundo São Mateus seus sermões são inflamados, e seu temperamento é constantemente sujeito a descontroles (do que a expressão mais clara está na forma exaltada com que ele reage ao estado corrompido em que encontra Jerusalém). Na clássica cena, já na crucificação, do soldado romano que lhe ergue a lança com uma esponja molhada presa à sua ponta (por livre e espontânea vontade, segundo o filme), Jesus recusa veementemente a água, soltando, logo em seguida, o grito que desencadeia a fúria divina e provoca o terremoto que racha a terra. Há um quê de infantilidade nesse Cristo aqui abordado, uma figura que desperta simpatia e compaixão imediatas justamente pela pureza e pela convicção semi-infantil com que se atira às suas empreitadas. Não por acaso, é com as crianças que ele vai buscar identificação. Quando já se mostrava essencialmente destacada a presença delas no filme, com seus sorrisos e seus olhares na direção do messias, ocorre a cena em que Pedro pede à criançada para que interrompa o assédio a Jesus, o que ele próprio retruca: "Deixai vir a mim as criancinhas e não as impeçais, pois o Reino dos céus é para aqueles que se lhes assemelham". No domingo de ramos, é uma fila de crianças que se põe à frente da multidão e saúda Jesus.

Em matéria de humanização da figura do Cristo, cabe um cotejo que está na motivação principal do assunto aqui em questão. O filme de Mel Gibson que ocasionou esta pauta poderia se chamar "a paixão segundo Jesus Cristo", este tomado na condição humana, com tudo que isso implica para aquela situação (a exemplo do sofrimento na carne). A Paixão de Cristo é construído basicamente da proximidade extrema com Jesus e seu sofrimento físico, não poupando planos subjetivos e estratégias de imersão nas cenas mais violentas (a câmera assumindo o ponto de vista de Cristo num momento de queda durante a via crucis chega a lembrar o Peckinpah de Meu Ódio Será Sua Herança). No filme de Pasolini, como o próprio título já deixa claro, temos um relato em terceira pessoa, e ainda que esta pessoa esteja próxima o suficiente para assimilar detalhes, sua construção se diferencia radicalmente da crueza visual e da vulnerabilidade do corpo impingidas ao Cristo que Gibson filmou. O Evangelho Segundo São Mateus realça o simbólico e o mítico (a câmera recorrentemente enquadra o sol sobre a cabeça de Cristo), optando pela encenação sugestiva em vez da literalidade. Não se trata de fugir da violência dos atos cometidos contra Cristo, mas sim de mergulhar naquilo que o filme escolheu como maior objeto de investigação, e que definitivamente não diz respeito à porção carnal da história. Se há agressividade em O Evangelho Segundo São Mateus, esta deve ser procurada em outros aspectos que não o da tortura corporal.

Pasolini fez um filme muito mais sobre a palavra de Cristo do que sobre sua vida ou seu calvário. À semelhança de Palavra e Utopia, de Manoel de Oliveira, o grande peso histórico da figura retratada está na palavra. Praticamente todas as falas são pregações, são fundamentos. Há uma seqüência definidora com relação a isso, na qual Jesus Cristo profere alguns dos seus sermões mais famosos em sucessivos primeiros planos dele com uma paisagem desértica às suas costas (estrutura monológica que, por si só, ressalta a palavra como elemento central), as cenas estando pontuadas por fusões e fades que demonstram a contigüidade daqueles discursos ao longo de um tempo que escoa rapidamente e que corresponde a períodos distintos da vida de Cristo. O filme quer abraçar o sentido completo das falas que se acavalam ao longo de uma vida que, embora razoavelmente curta, concentrou-se em sentenças de afirmação de bases morais para toda uma civilização. É de uma fala do próprio Cristo, e não de uma organização discursiva alheia ao personagem, que sai o reconhecimento de que a empresa messiânica trouxe, no fundo, a despeito do sacrifício de um homem pela comunhão da humanidade, a espada e a divisão. Ainda que a visão seja externa à figura de Cristo, no sentido de filtrada pelos olhos de Mateus, a proximidade com seu rosto jamais é abandonada. O primeiro plano como escala predominante, na verdade, é uma constante com todos os personagens (o filme começa com o rosto sorridente de Maria). Após o milagre da multiplicação dos pães, a câmera realiza uma longa panorâmica em que são filmados todos os apóstolos de Cristo em close-up, rosto após rosto. E em que outra parte do corpo poderia se concentrar um filme sobre a fé (lição muito cedo ensinada por Dreyer em A Paixão de Joana D’Arc)?

Há que se destacar a maneira singela e econômica com que são filmadas as clássicas ações milagrosas de Cristo, que na maioria dos filmes bíblicos costumam aparecer revestidas de todo um tom épico e mistificador. Pasolini parte do princípio de que milagre é milagre, não precisa ser justificado, crê-se nele ou não – e seu filme é integralmente direto com relação a esse ponto, uma vez que já parte da crença na escritura como dado sólido, que não discutirá no plano formal ou textual. Quem problematiza ou não a fé são os personagens; o filme em si não discute o milagre, apenas mostra-o. Seguindo a mesma lógica, Cristo nunca é indagado pelo filme quanto à autenticidade de sua missão: O Evangelho Segundo São Mateus só existe porquanto já a considera autêntica. Um filme sem rebatimentos históricos ou religiosos, sem os atritos de conceitos que se complicariam num momento posterior (sabemos que a santíssima trindade, por exemplo, figura geométrica que coordena o rito cristão ao longo dos séculos e cuja afirmação encerra o filme de Pasolini, geraria divergências dentro da própria Igreja). Ao contrário de um tom grave e épico, tão aguardado em filmes do gênero, Pasolini buscou a leveza. Tendo a música de Bach como complemento sublime (a "Erbarme dich mein Gott" já participou de no mínimo duas outras obras-primas do cinema, O Sacrifício, de Andrei Tarkovski, e Japão, de Carlos Reygadas), O Evangelho Segundo São Mateus é filmado com a beleza e a entrega que o tema já de entrada requer.


Luiz Carlos Oliveira Jr.