O
primeiro aspecto geralmente destacado quando se fala
de O Evangelho Segundo São Mateus é
o fato da obra ter sido incluída na famosa lista
do Vaticano com os 45 filmes de temas religiosos aprovados
pela Igreja Católica, lista que, conforme consta
nos extras do dvd desse filme de Pasolini, deixou de
fora, por exemplo, o épico grandiloqüente
Os Dez Mandamentos, de Cecil B. DeMille. Dada
a carga prioritariamente simbólica, nada contestadora
em relação ao evangelho e muito pouco
violenta, o filme não teria por que ser desaprovado,
assim como a singeleza e o lirismo de suas formas dificilmente
não agradariam – do cristão ao não
cristão, do fundamentalista ao herético,
do mais crente ao ateu: todos devem reconhecer a beleza
da poética pasoliniana em O Evangelho Segundo
São Mateus. Mas a importância,
ou, talvez fosse melhor dizer, a verdadeira qualidade
do filme está em outro lugar, a quilômetros
de distância tanto do apócrifo quanto da
oficialidade religiosa.
Do Cristo interpretado por Enrique Irazoqui em O
Evangelho Segundo São Mateus ressai a jovialidade
e o semblante que, apesar de aparentemente imodificável
nas passagens mais prosaicas do filme, pode alterar-se
mediante sua impaciência com a falta de fé,
com a incompreensão de alguns homens em relação
às escrituras de Deus, com as eventuais más
interpretações de suas palavras. Esse
perfil irascível contradiz a visão comumente
parcimoniosa e meiga de um Cristo sempre disposto a
tudo tolerar. Em O Evangelho Segundo São Mateus
seus sermões são inflamados, e seu temperamento
é constantemente sujeito a descontroles (do que
a expressão mais clara está na forma exaltada
com que ele reage ao estado corrompido em que encontra
Jerusalém). Na clássica cena, já
na crucificação, do soldado romano que
lhe ergue a lança com uma esponja molhada presa
à sua ponta (por livre e espontânea vontade,
segundo o filme), Jesus recusa veementemente a água,
soltando, logo em seguida, o grito que desencadeia a
fúria divina e provoca o terremoto que racha
a terra. Há um quê de infantilidade nesse
Cristo aqui abordado, uma figura que desperta simpatia
e compaixão imediatas justamente pela pureza
e pela convicção semi-infantil com que
se atira às suas empreitadas. Não por
acaso, é com as crianças que ele vai buscar
identificação. Quando já se mostrava
essencialmente destacada a presença delas no
filme, com seus sorrisos e seus olhares na direção
do messias, ocorre a cena em que Pedro pede à
criançada para que interrompa o assédio
a Jesus, o que ele próprio retruca: "Deixai
vir a mim as criancinhas e não as impeçais,
pois o Reino dos céus é para aqueles que
se lhes assemelham". No domingo de ramos, é
uma fila de crianças que se põe à
frente da multidão e saúda Jesus.
Em matéria de humanização da figura
do Cristo, cabe um cotejo que está na motivação
principal do assunto aqui em questão. O filme
de Mel Gibson que ocasionou esta pauta poderia se chamar
"a paixão segundo Jesus Cristo", este
tomado na condição humana, com tudo que
isso implica para aquela situação (a exemplo
do sofrimento na carne). A Paixão de Cristo
é construído basicamente da proximidade
extrema com Jesus e seu sofrimento físico,
não poupando planos subjetivos e estratégias
de imersão nas cenas mais violentas (a câmera
assumindo o ponto de vista de Cristo num momento de
queda durante a via crucis chega a lembrar o Peckinpah
de Meu Ódio Será Sua Herança).
No filme de Pasolini, como o próprio título
já deixa claro, temos um relato em terceira pessoa,
e ainda que esta pessoa esteja próxima o suficiente
para assimilar detalhes, sua construção
se diferencia radicalmente da crueza visual e da vulnerabilidade
do corpo impingidas ao Cristo que Gibson filmou. O
Evangelho Segundo São Mateus realça
o simbólico e o mítico (a câmera
recorrentemente enquadra o sol sobre a cabeça
de Cristo), optando pela encenação sugestiva
em vez da literalidade. Não se trata de fugir
da violência dos atos cometidos contra Cristo,
mas sim de mergulhar naquilo que o filme escolheu como
maior objeto de investigação, e que definitivamente
não diz respeito à porção
carnal da história. Se há agressividade
em O Evangelho Segundo São Mateus, esta
deve ser procurada em outros aspectos que não
o da tortura corporal.
Pasolini fez um filme muito mais sobre a palavra de
Cristo do que sobre sua vida ou seu calvário.
À semelhança de Palavra e Utopia,
de Manoel de Oliveira, o grande peso histórico
da figura retratada está na palavra. Praticamente
todas as falas são pregações, são
fundamentos. Há uma seqüência definidora
com relação a isso, na qual Jesus Cristo
profere alguns dos seus sermões mais famosos
em sucessivos primeiros planos dele com uma paisagem
desértica às suas costas (estrutura monológica
que, por si só, ressalta a palavra como elemento
central), as cenas estando pontuadas por fusões
e fades que demonstram a contigüidade daqueles
discursos ao longo de um tempo que escoa rapidamente
e que corresponde a períodos distintos da vida
de Cristo. O filme quer abraçar o sentido completo
das falas que se acavalam ao longo de uma vida que,
embora razoavelmente curta, concentrou-se em sentenças
de afirmação de bases morais para toda
uma civilização. É de uma fala
do próprio Cristo, e não de uma organização
discursiva alheia ao personagem, que sai o reconhecimento
de que a empresa messiânica trouxe, no fundo,
a despeito do sacrifício de um homem pela comunhão
da humanidade, a espada e a divisão. Ainda que
a visão seja externa à figura de Cristo,
no sentido de filtrada pelos olhos de Mateus, a proximidade
com seu rosto jamais é abandonada. O primeiro
plano como escala predominante, na verdade, é
uma constante com todos os personagens (o filme começa
com o rosto sorridente de Maria). Após o milagre
da multiplicação dos pães, a câmera
realiza uma longa panorâmica em que são
filmados todos os apóstolos de Cristo em close-up,
rosto após rosto. E em que outra parte do corpo
poderia se concentrar um filme sobre a fé (lição
muito cedo ensinada por Dreyer em A Paixão
de Joana D’Arc)?
Há que se destacar a maneira singela e econômica
com que são filmadas as clássicas ações
milagrosas de Cristo, que na maioria dos filmes bíblicos
costumam aparecer revestidas de todo um tom épico
e mistificador. Pasolini parte do princípio de
que milagre é milagre, não precisa ser
justificado, crê-se nele ou não – e seu
filme é integralmente direto com relação
a esse ponto, uma vez que já parte da crença
na escritura como dado sólido, que não
discutirá no plano formal ou textual. Quem problematiza
ou não a fé são os personagens;
o filme em si não discute o milagre, apenas mostra-o.
Seguindo a mesma lógica, Cristo nunca é
indagado pelo filme quanto à autenticidade de
sua missão: O Evangelho Segundo São
Mateus só existe porquanto já a considera
autêntica. Um filme sem rebatimentos históricos
ou religiosos, sem os atritos de conceitos que se complicariam
num momento posterior (sabemos que a santíssima
trindade, por exemplo, figura geométrica que
coordena o rito cristão ao longo dos séculos
e cuja afirmação encerra o filme de Pasolini,
geraria divergências dentro da própria
Igreja). Ao contrário de um tom grave e épico,
tão aguardado em filmes do gênero, Pasolini
buscou a leveza. Tendo a música de Bach como
complemento sublime (a "Erbarme dich mein Gott"
já participou de no mínimo duas outras
obras-primas do cinema, O Sacrifício,
de Andrei Tarkovski, e Japão, de Carlos
Reygadas), O Evangelho Segundo São Mateus
é filmado com a beleza e a entrega que o
tema já de entrada requer.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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