Tão velha quanto a noção do
"sagrado" é, obrigatoriamente, a noção
do "herético". E nada é mais desconcertantemente
herético para uma instituição como
a religião quanto o humor. Afinal, lidar com
detratores e confrontadores tem sido uma constante desde
que a Igreja (ou qualquer Igreja, na verdade) existe
- no entanto, quando as armas do inimigo são
o riso ou o escárnio, torna-se extremamente difícil
revidar, pois os argumentos do outro nem sempre precisam
de lógica ou grandes elocubrações,
tão somente a capacidade de ler o que há
de mais ridículo por trás de algo (e sabemos
que, bastando procurar, sempre há algo de ridículo
por trás de tudo). Na verdade, foi uma opção
escolher dois filmes apenas para falar um pouco das
possibilidades de riso em cima da imagem de Cristo (mito
maior da fé católica), porque como toda
instituição há piadas em uma infinidade
de filmes sobre postulados religiosos, e mesmo sobre
a imagem do Filho de Deus. No entanto, optamos por estes
dois por focarem centralmente o assunto, mas também
porque nos permitam algumas observações
interessantes.
Desnecessário dizer o quanto separa Luis Buñuel
do grupo Monty Python: o primeiro se une ao cinema na
década de 20, ainda no cinema mudo, e estabelece
uma carreira que apresenta uma série de fases
diferentes e realizações em diferentes
partes do mundo, sempre ligado ao que de mais moderno
se fazia de cinema. Já os Python são crias
de uma sociedade pós-televisiva, que sempre usaram
o cinema como inspiração para seu humor
tipicamente britânico, mas que só no fim
da década de 70 levam suas piadas da telinha
para a telona. Mas, para além de diferenças
cronológicas ou de trajetória, é
no que está no cerne do seu humor que os dois
se diferenciam de fato: os Python trabalham na chave
da comédia satírica aberta, onde o humor
é escrachado, busca a gargalhada, e onde o absurdo
entra sempre como integrante de um "realismo suspenso",
dentro da lógica mesmo da paródia; enquanto
isso, Buñuel e seu humor cáustico e ácido
busca muitas vezes confundir e cutucar o espectador,
num humor que busca menos (ainda que alcance aqui e
ali) a gargalhada ou a piada fácil, e mais a
cumplicidade do espectador - nos revelando algo do ridículo
das convenções sociais enquanto pisca
de leve o olho para nós. Os Python são
palhaços hiper-inteligentes (não por acaso
são também atores), enquanto Buñuel
é um mestre do cometário sócio-político
através do uso de chave surrealista. Nos filmes
específicos tratados aqui, as diferenças
se acentuam, senão vejamos:
Da saída, A Vida de Brian já diz
a que veio - a paródia escrachada radicalizada
na visita dos Três Reis Magos à manjedoura
que devia ser de Cristo, mas é de Brian, que
nasce no mesmo dia do Salvador católico. Ali
já vemos que a opção narrativa
dos Python é a das piadas em cima de passagens
da vida de Cristo, a partir dessa idéia de um
homem absolutamente comum constantemente confundido
com Ele. Nesse tom paródico geral, os Python
vão praticar uma série de tipos de humor
que dominam com maestria: a piada de tintas surreais
(cujo ápice é o sequestro de Brian por
uma nave extraterrestre); a paródia direta de
trechos dos evangelhos (como as cenas do Sermão
da Montanha ou da consulta de Pilatos à população);
a sátira contemporânea misturada com o
registro histórico (onde o melhor exemplo é
o retrato do grupo terrorista judeu como um confuso
grupo de guerrilha); até a sutil, mas não
menos radical, crítica social mais profunda (basta
lembrar duas piadas: a do ex-leproso, que expõe
um possível "lado negro" dos milagres de Cristo,
e de todo assistencialismo de lambuja; ou a dos grupos
seguidores de Brian se dividindo nos "seguidores da
sandália" e dos "seguidores da cabaça"
- ridicularizando as seitas religiosas como um todo).
A Vida de Brian encontra os Python no ápice
criativo (ainda que fosse ser seguido pelos não
menos brilhantes Cálice Sagrado e O
Sentido da Vida - ambos com piadas religiosas finíssimas)
e continua sendo um exemplo de construção
de comédia de cinema quase exemplar. Como se
não bastasse sua escrita de comédia raríssima,
o grupo inglês conta ainda com estupendos atores
(o que os diferencia radicalmente, por exemplo, do Casseta
e Planeta brasileiro, que tanto os tenta emular), onde
se destaquem John Cleese, Eric Idle e Michael Palin
- nunca menos do que geniais em seus múltiplos
papéis. E, mais ainda, contava com dois cineastas
com olho fino - além de Terry Gilliam, que teria
carreira mais constante depois, o diretor de Brian,
Terry Jones, também se mostra capaz de algumas
belas piadas de mise-en-scène complexa e dominada.
O filme nunca é apenas um amontoado de boas piadas
(o que, pelo número destas, já seria muito),
e sim um todo coeso em termos de misturar tom cômico
com desenvolvimento narrativo e coerência audiovisual.
Um filmaço, em suma, onde a fé católica
e Jesus Cristo saem não destruídos - e
sim, humanizados pela catarse do ridículo.
Já o humor de Buñuel no que se refere
à religião pega mais embaixo, por assim
dizer. Certamente não é por acaso, uma
vez que o espanhol cresce num país sob forte
influência do catolicismo e do conservadorismo,
enquanto os ingleses são crias da Inglaterra
protestante e fortemente materialista. Buñuel,
percebemos pelo tom, não fala da Igreja, ou de
Cristo, com o riso aberto e distanciado dos Python:
para ele o assunto é sério, e por isso
mesmo a sátira deve ser feroz. Aqui, sim, a Igreja
sai chamuscada, porque ele pisa e amassa mesmo. Não
por acaso, seu filme é muito menos coeso e engraçado:
parece feito em cusparadas, por assim dizer, onde as
que acertam o alvo nunca são menos do que geniais
- talvez imagem melhor venha do próprio filme:
os caçadores exercitando tiro ao alvo com um
rosário.
Logo no início, após duas ou três
piadas mais leves com o trajeto dos andarilhos (a do
Jesus Cristo quase se barbeando ou da carona na estrada),
vem o primeiro ataque forte, onde uma discussão
teológica entre um padre e um policial termina
com o primeiro sendo levado embora numa ambulância
do hospício. A piada serve como metáfora
do humor de Buñuel: para ele importa menos rir
do sintoma, e sim ir fundo no questionamento mesmo da
fé católica (ou de qualquer fé,
na verdade), e sua inserção social e consequências
nefastas. Não por acaso, temos logo depois a
mesma "seriedade", por assim dizer, de discussão
teológica entre um "maitre" e os garçons
que trabalham com ele - onde o questionamento sobre
o estatuto divino de Cristo se torna metáfora
da luta de classes. Mais na frente, vamos ver a comparação
do processo de catequese com a Santa Inquisição,
ou a doutrina católica dando semente para a criação
de uma "Igreja da degradação da carne"
- uma tremenda suruba.
Se há nos Pythons eventual profundidade de reflexão
teológica sim, ela vem sempre disfarçada
de galhofa. Em Buñuel, parecemos traçar
o caminho oposto, onde a complexidade dos argumentos
quase esconde a qualidade hilária de muitos momentos
- mas não podemos deixar que isso aconteça
porque Via Láctea é, antes de tudo,
muito engraçado. Mas, é inegável
que, se Brian termina nos deixando com desbragado sorriso
no rosto, Buñuel prefere o incômodo no
estômago (e para isso contribui também
seu desapego calculadíssimo à lógica
narrativa - aqui, na fase francesa, a colaboração
nos roteiros com Jean-Claude Carrière empresta
sempre uma estranha qualidade racional aos devaneios
do espanhol). O que não se pode negar é
que um e outro, de formas as mais diversas, ajudam a
lembrar algo que nos tempos fundamentalistas atuais
nunca custa reforçar: não dá para
se levar nada no mundo muito a sério - sob risco
do mundo não resistir. E se religião é
questão de fé, fica o aviso: fé
demais não cheira bem.
Eduardo Valente
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