rindo de jesus (a vida de brian & via láctea/o estranho caminho de são tiago)



Terry Jones, The Life Of Brian, Inglaterra, 1979
Luis Buñuel, La Voie Lactée, França, 1969


Tão velha quanto a noção do "sagrado" é, obrigatoriamente, a noção do "herético". E nada é mais desconcertantemente herético para uma instituição como a religião quanto o humor. Afinal, lidar com detratores e confrontadores tem sido uma constante desde que a Igreja (ou qualquer Igreja, na verdade) existe - no entanto, quando as armas do inimigo são o riso ou o escárnio, torna-se extremamente difícil revidar, pois os argumentos do outro nem sempre precisam de lógica ou grandes elocubrações, tão somente a capacidade de ler o que há de mais ridículo por trás de algo (e sabemos que, bastando procurar, sempre há algo de ridículo por trás de tudo). Na verdade, foi uma opção escolher dois filmes apenas para falar um pouco das possibilidades de riso em cima da imagem de Cristo (mito maior da fé católica), porque como toda instituição há piadas em uma infinidade de filmes sobre postulados religiosos, e mesmo sobre a imagem do Filho de Deus. No entanto, optamos por estes dois por focarem centralmente o assunto, mas também porque nos permitam algumas observações interessantes.

Desnecessário dizer o quanto separa Luis Buñuel do grupo Monty Python: o primeiro se une ao cinema na década de 20, ainda no cinema mudo, e estabelece uma carreira que apresenta uma série de fases diferentes e realizações em diferentes partes do mundo, sempre ligado ao que de mais moderno se fazia de cinema. Já os Python são crias de uma sociedade pós-televisiva, que sempre usaram o cinema como inspiração para seu humor tipicamente britânico, mas que só no fim da década de 70 levam suas piadas da telinha para a telona. Mas, para além de diferenças cronológicas ou de trajetória, é no que está no cerne do seu humor que os dois se diferenciam de fato: os Python trabalham na chave da comédia satírica aberta, onde o humor é escrachado, busca a gargalhada, e onde o absurdo entra sempre como integrante de um "realismo suspenso", dentro da lógica mesmo da paródia; enquanto isso, Buñuel e seu humor cáustico e ácido busca muitas vezes confundir e cutucar o espectador, num humor que busca menos (ainda que alcance aqui e ali) a gargalhada ou a piada fácil, e mais a cumplicidade do espectador - nos revelando algo do ridículo das convenções sociais enquanto pisca de leve o olho para nós. Os Python são palhaços hiper-inteligentes (não por acaso são também atores), enquanto Buñuel é um mestre do cometário sócio-político através do uso de chave surrealista. Nos filmes específicos tratados aqui, as diferenças se acentuam, senão vejamos:

Da saída, A Vida de Brian já diz a que veio - a paródia escrachada radicalizada na visita dos Três Reis Magos à manjedoura que devia ser de Cristo, mas é de Brian, que nasce no mesmo dia do Salvador católico. Ali já vemos que a opção narrativa dos Python é a das piadas em cima de passagens da vida de Cristo, a partir dessa idéia de um homem absolutamente comum constantemente confundido com Ele. Nesse tom paródico geral, os Python vão praticar uma série de tipos de humor que dominam com maestria: a piada de tintas surreais (cujo ápice é o sequestro de Brian por uma nave extraterrestre); a paródia direta de trechos dos evangelhos (como as cenas do Sermão da Montanha ou da consulta de Pilatos à população); a sátira contemporânea misturada com o registro histórico (onde o melhor exemplo é o retrato do grupo terrorista judeu como um confuso grupo de guerrilha); até a sutil, mas não menos radical, crítica social mais profunda (basta lembrar duas piadas: a do ex-leproso, que expõe um possível "lado negro" dos milagres de Cristo, e de todo assistencialismo de lambuja; ou a dos grupos seguidores de Brian se dividindo nos "seguidores da sandália" e dos "seguidores da cabaça" - ridicularizando as seitas religiosas como um todo).

A Vida de Brian encontra os Python no ápice criativo (ainda que fosse ser seguido pelos não menos brilhantes Cálice Sagrado e O Sentido da Vida - ambos com piadas religiosas finíssimas) e continua sendo um exemplo de construção de comédia de cinema quase exemplar. Como se não bastasse sua escrita de comédia raríssima, o grupo inglês conta ainda com estupendos atores (o que os diferencia radicalmente, por exemplo, do Casseta e Planeta brasileiro, que tanto os tenta emular), onde se destaquem John Cleese, Eric Idle e Michael Palin - nunca menos do que geniais em seus múltiplos papéis. E, mais ainda, contava com dois cineastas com olho fino - além de Terry Gilliam, que teria carreira mais constante depois, o diretor de Brian, Terry Jones, também se mostra capaz de algumas belas piadas de mise-en-scène complexa e dominada. O filme nunca é apenas um amontoado de boas piadas (o que, pelo número destas, já seria muito), e sim um todo coeso em termos de misturar tom cômico com desenvolvimento narrativo e coerência audiovisual. Um filmaço, em suma, onde a fé católica e Jesus Cristo saem não destruídos - e sim, humanizados pela catarse do ridículo.

Já o humor de Buñuel no que se refere à religião pega mais embaixo, por assim dizer. Certamente não é por acaso, uma vez que o espanhol cresce num país sob forte influência do catolicismo e do conservadorismo, enquanto os ingleses são crias da Inglaterra protestante e fortemente materialista. Buñuel, percebemos pelo tom, não fala da Igreja, ou de Cristo, com o riso aberto e distanciado dos Python: para ele o assunto é sério, e por isso mesmo a sátira deve ser feroz. Aqui, sim, a Igreja sai chamuscada, porque ele pisa e amassa mesmo. Não por acaso, seu filme é muito menos coeso e engraçado: parece feito em cusparadas, por assim dizer, onde as que acertam o alvo nunca são menos do que geniais - talvez imagem melhor venha do próprio filme: os caçadores exercitando tiro ao alvo com um rosário.

Logo no início, após duas ou três piadas mais leves com o trajeto dos andarilhos (a do Jesus Cristo quase se barbeando ou da carona na estrada), vem o primeiro ataque forte, onde uma discussão teológica entre um padre e um policial termina com o primeiro sendo levado embora numa ambulância do hospício. A piada serve como metáfora do humor de Buñuel: para ele importa menos rir do sintoma, e sim ir fundo no questionamento mesmo da fé católica (ou de qualquer fé, na verdade), e sua inserção social e consequências nefastas. Não por acaso, temos logo depois a mesma "seriedade", por assim dizer, de discussão teológica entre um "maitre" e os garçons que trabalham com ele - onde o questionamento sobre o estatuto divino de Cristo se torna metáfora da luta de classes. Mais na frente, vamos ver a comparação do processo de catequese com a Santa Inquisição, ou a doutrina católica dando semente para a criação de uma "Igreja da degradação da carne" - uma tremenda suruba.

Se há nos Pythons eventual profundidade de reflexão teológica sim, ela vem sempre disfarçada de galhofa. Em Buñuel, parecemos traçar o caminho oposto, onde a complexidade dos argumentos quase esconde a qualidade hilária de muitos momentos - mas não podemos deixar que isso aconteça porque Via Láctea é, antes de tudo, muito engraçado. Mas, é inegável que, se Brian termina nos deixando com desbragado sorriso no rosto, Buñuel prefere o incômodo no estômago (e para isso contribui também seu desapego calculadíssimo à lógica narrativa - aqui, na fase francesa, a colaboração nos roteiros com Jean-Claude Carrière empresta sempre uma estranha qualidade racional aos devaneios do espanhol). O que não se pode negar é que um e outro, de formas as mais diversas, ajudam a lembrar algo que nos tempos fundamentalistas atuais nunca custa reforçar: não dá para se levar nada no mundo muito a sério - sob risco do mundo não resistir. E se religião é questão de fé, fica o aviso: fé demais não cheira bem.


Eduardo Valente