Em
A Idade da Terra (1980), a imagem arquiconhecida
do Jesus Cristo ocidental - presente nas superproduções
hollywoodianas e nos calendários de copa e cozinha
- é substituída por quatro outras, bem
diversas: Cristo Negro (no filme, interpretado por Antônio
Pitanga), Cristo Militar (vivido por Tarcísio
Meira), Cristo Guerrilheiro (Geraldo D'El Rey) e Cristo
Índio (Jece Valadão). Imaginar essa turma
interpretando Cristo na Terra, para quem não
viu e não conhece o filme ou a obra de Glauber
Rocha, pode ser, no mínimo, engraçado.
Mas a operação glauberiana não
se propõe, justamente, a recuperar a imagem convencional
de Cristo perpetuada pela Igreja Católica e,
sim, como disse, transmutá-la. E se a onipresença
de Cristo (evidenciada pelos quatro personagens que,
no filme, atuam contemporaneamente em pontos diferentes
da "Terra") está de acordo com os postulados
católicos, sua imagem e semelhança
com o Santo Sudário e seu compromisso com uma
religião avessa ao sincretismo sofrem radical
ruptura.
É importante ressaltar, antes de mais nada, que
A Idade da Terra não buscou, ao romper
com a imagem estável de Cristo, uma polêmica
anti-religiosa ou anti-católica. Não há,
talvez, no cinema brasileiro, um filme mais abertamente
religioso do que este, tanto em seu aspecto formal quanto
em seu enfoque teleológico. Apesar da intensa
admiração pelo Buñuel inconoclasta,
Glauber dele se afasta, pois não há sarcasmo
algum no tratamento místico de A Idade da
Terra. Também não segue os passos
do Messias (1976), de Rosselini, pois não
interessa a Glauber o didatismo de uma arqueologia cinematográfica.
Quanto a Pasolini e seu Evangelho Segundo São
Mateus (1964), o próprio Glauber irá
revelar, num dos discursos (ou sermões?) de A
Idade da Terra: "No dia em que Pasolini, o grande
poeta italiano, foi assassinado, eu pensei em filmar
a vida de Cristo no Terceiro Mundo." E este Cristo,
seguindo a fala de Glauber, não mais seria o
Cristo adorado na cruz, mas renascido, vivido, "revolucionado
no êxtase da ressurreição". Uma
visão próxima ao do protestantismo e das
religiões de origem africana. Um Cristo novo
para uma civilização nova.
Seriam os quatro Cristos apenas um? Ou Glauber admitiria
a transcendência de um Deus que baixa em
cada um deles, numa releitura da Santíssima Trindade,
na qual a "revolução terceiromundista"
seria o Espírito Santo? De qualquer forma, há
uma nítida oposição não
entre as representações de Cristo ou entre
as liturgias, mas entre a idéia de um Cristo
renascido da cruz, um Cristo portador das contradições
de um mundo pobre, e seu rival maior, o Diabo, encarnado
na figura bufa de um (infelizmente atual) xerife planetário,
o imperialista John Brahms (Maurício do Valle).
Brahms entende a Terra como palco de uma orgia financeira,
teatro de operações de guerra e bang
bang introjetado: sente-se cercado por ameaçadores
inimigos externos (as lideranças orientais e
latinoamericanas) e luta desesperadamente contra os
inimigos internos (conspirações no seio
de sua própria estrutura de poder e de sua família
- além do câncer que o corrói).
Embora estejamos distantes da progressão narrativa
e das oposições estabelecidas em Deus
e o Diabo na Terra do Sol (1964) ou em Terra
em Transe (1967), ainda há, a exemplo destes
dois filmes, uma releitura da guerra entre o Bem e o
Mal, que n'A Idade da Terra ganha peso e significado
generalizantes: "No final do século XX - afirma
Glauber em uma das locuções do filme -
a situação é a seguinte: existem
uns países capitalistas ricos e uns países
capitalistas pobres. Na verdade, o que existe é
o mundo rico e o mundo pobre". Se pensarmos n'A Idade
da Terra como um filme religioso, este enunciado
se torna bastante atual: os discursos fundamentalistas
servem, hoje, para legitimar a carnificina entre ex-sócios
de petróleo e armas químicas.
No filme, Cristo e Brahms, Deus e o Diabo, o mundo pobre
e o mundo rico, também são sócios
em guerra. Cristo vive em função de Brahms
e vice-versa. Enquanto isso, a Terra caminha para uma
explosão atômica. As contradições
e ambigüidades desta visão planetária
apocalíptica e, ao mesmo tempo, utópica
(com a entrada em cena de uma civilização
redentora que nasceria a partir dos povos oprimidos),
surgem nas respectivas relações entre
os quatro Cristos e John Brahms.
Cristo Negro
O Cristo Negro surge, ao longo do filme, como repórter,
assessor de Brahms, profeta-orixá e milagreiro,
paramentado com mantos, colares e lanças. É
portador e emissor das palavras do Evangelho, e do alto
de uma torre de televisão, em Brasília,
proclama aos ventos do planalto que são benditos
os criminosos, os loucos, a fome, a miséria,
a bomba atômica e a prostituta da Babilônia.
Invoca Ciro, Alexandre o Grande, Dario, Omulu, Oxossi,
Xangô, Ogum, Jeová, São Jorge e
se diz enviado de Getúlio Vargas. Brasília
é a Terra da Promissão, onde Cristo Negro
devolve a visão a um casal de cegos, ressuscita
um homem, faz o milagre da multiplicação
da Pepsi-Cola e tem um diálogo libertário
com uma prostituta: "Eu quero o amor, o amor aflito.
Eu te quero, Nudez! Quero gritar, quero cantar! Acorda,
humanidade!"
Este mesmo Cristo aparecerá bebericando um uísque
durante uma entrevista com o jornalista Carlos Castelo
Branco, que discorre longamente sobre o golpe de 1964,
e sustentando Brahms em seus braços, junto a
um monumento de Brasília, quando o líder
imperialista começa a ter um princípio
de enfarte (na trilha sonora soa Brother, de
Jorge Ben).
Cristo Negro é também um "serviçal
do imperialismo".
Cristo Militar
Um desfile de Escola de Samba é o palco onde
o Cristo Militar aparece pela primeira vez. Tem sempre
ao seu lado Aurora Madalena (Ana Maria Magalhães),
mistura de rainha e de profetiza, que ora surge como
mulher de Cristo, ora surge como mulher de Brahms, sendo
uma personagem semelhante à Santa (Rosa Maria
Pena), de O Dragão da Maldade Contra o Santo
Guerreiro (1969). É mais uma das personagens
femininas absolutamente etéreas de Glauber. Sempre
vestido de negro, com a postura rígida de um
general, o Cristo Militar se mistura à bateria
da Escola de Samba, como se estivesse observando e comandando,
com orgulho patriótico, uma parada militar. Brahms
também está desfilando na Avenida - mas
como um turista completamente doido de birita e pó,
imagem caricatural de um bufão americano fascinado
pelo carnaval. A seqüência - longa, de uma
tensão impressionante criada pela relação
distanciada entre câmera-atores-carnaval - situa
Brahms, Cristo Militar e Aurora Madalena como um triângulo
que, ao longo do filme, jamais será explicitado.
Cristo Militar também surgirá tomando
chope com Danuza Leão (mulher de Brahms) na Cinelândia,
enquanto faz pronunciamentos oficiais (repetidos à
exaustão pela montagem), e diante da Baía
da Guanabara, com Aurora Madalena, bradando como se
estivesse tendo uma visão do Apocalipse: "Nós
estamos condenados! Houve uma implosão no centro
da Terra! Esta é a cloaca do Universo!" Cristo
Militar e Aurora Madalena se beijam e ela o incita:
"Mate Brahms! Mate Brahms!"
Mas ela não será atendida. Em outra seqüência,
Cristo Militar adverte Brahms: "Não vá
ao Senado amanhã! Você já ouviu
falar no negro Hassan? Ele detesta a civilização!
E ameaçou incendiar todos os campos de petróleo!"
Cristo Militar é o "conselheiro e braço
armado do imperialismo".
Cristo Guerrilheiro
O Cristo Guerrilheiro, por sua vez, é a imagem
da fragilidade e da contradição. O seu
vínculo com John Brahms é, de todos, o
mais forte: ele é filho do líder imperialista,
herdeiro da fortuna que Brahms acumula ao longo de guerras
e massacres. Cristo Guerrilheiro é quase inclassificável,
como personagem: ao mesmo tempo Cristo e Demônio,
herdeiro do Poder e mártir guerrilheiro contra
este mesmo Poder, filho e amante da Mãe (Danuza
Leão), uma figura controversa que tem seu caráter
dúbio acentuado por um tom gay que Geraldo
D'El Rey busca imprimir no personagem. Cristo Guerrilheiro
é parte do "câncer" metafórico que
corrói Brahms. Sua primeira aparição
em cena se dá numa seqüência de suruba
entre Pai, Filho e Mãe. Um clima de permanente
paranóia atordoa Brahms, que a todo momento se
sente traído pelo Filho e pela Mulher. Cristo/Édipo,
por sua vez, é obcecado pela idéia de
matar o Pai, e busca na guerrilha uma saída débil
que não terá resultado algum: ao fim do
processo, Cristo Guerrilheiro torna-se sócio
de Brahms na Bolsa de Valores, preocupado com a alta
do petróleo, diante de um Maracanã vazio
que atesta uma espécie de trágico Juízo
Final: Deus Pai é também o Diabo (Brahms).
Cristo Guerrilheiro é "filho e herdeiro do imperialismo".
Cristo Índio
O Cristo Índio nasce com a alvorada que ilumina
o Planalto Central. O longo plano de abertura, com o
sol nascente por trás do Palácio da Alvorada
sob a sinfonia percussiva e vocal de Naná Vasconcellos,
é a tradução simbólica de
um Cristo que, por sua vez, nasce nas matas tropicais,
revelando que o "pássaro da eternidade não
existe" e que seu Pai o traiu. A imagem de Cristo Índio
- desde o princípio ligada à Natureza,
ao sol, à sensualidade das índias que
o cercam após o nascimento e também ao
sentimento de ruptura com um passado imobilizante ("o
pássaro da eternidade não existe") - contrapõe-se,
por meio da montagem, ao universo negro e satânico
de Brahms, que, pairando num universo em convulsão,
vê a Terra girar movida pelos ventos da destruição.
Cristo Índio nasce para o amor na Terra; a missão
de Brahms, ao contrário, é destruir a
Terra, "este planeta pequeno e pobre" - ou, como diria
Helena Ignês em Sem Essa Aranha (1970,
Rogério Sganzerla), esse "planetazinha vagabundo,
metido a besta".
Cristo Índio não sai por aí fazendo
milagres. Sua missão é guerrear diretamente
com o Diabo. E é contra um Diabo paramentado
com fuzil, botas e chapelão mexicano (Carlos
Petrovitch), que assovia A Marselhesa e fala
portunhol, que Cristo Índio trava sua primeira
batalha. É uma adaptação mais ou
menos convencional do episódio da Tentação
de Cristo no Deserto - com a substituição
do deserto pela praia e por um coqueiral em Salvador.
O Diabo quer seduzir Cristo Índio, para que ele
o sirva. O Diabo transforma-se em Brahms, volta a ser
o Diabo, e Cristo Índio recusa as promessas de
riqueza e poder que Brahms/Diabo oferece. Por fim, tal
como Paulo Martins, no delírio final de Terra
em Transe, dispara seguidas vezes contra a figura
satânica que o persegue.
A partir daí Cristo Índio só voltará
a aparecer em meio ao povo, em duas situações
caras ao repertório nacional-popular: junto aos
operários na construção de um edifício,
e numa procissão religiosa que se transforma
em carnaval, como é normal na Bahia. Na construção
ele age como um operário comum, não há
qualquer traço que o diferencie dos demais trabalhadores.
É um momento de imersão no trabalho, de
mergulho profundo num universo dentro do qual Cristo
Índio buscará saídas concretas.
Na procissão, momento de comunhão maior
com este mesmo universo (o "povo" em transe místico),
Cristo Índio finalmente se revela, como Ogum
na proa de um barco (O Amuleto de Ogum, 1973,
Nelson Pereira dos Santos) e um líder espiritual
democrático, batizando os homens com cachaça
e cerveja e pregando a livre e espontânea vontade
de conversão pelo amor. Um Cristo revivido para
uma utópica revolução.
Cristo Índio é, enfim, a verdadeira redenção
do homem.
* * *
Mesmo correndo o risco da excessiva simplificação
de leitura de uma obra complexa e rica como A Idade
da Terra, pretendi identificar, nas quatro representações
de Cristo, descritas acima de modo breve e esquemático,
de que maneira Glauber Rocha situava-se politicamente
diante da idéia de uma religião transformadora,
revolucionária, utópica. Um sentimento
religioso, melhor dizendo, e não uma religião
aprisionada em dogmas ou castas. Uma religião
que não exclui a violência, e que nasce
do homem, ou melhor, do diálogo do homem com
um destino transcendente. Cristo (na visão universal
proclamada por Glauber) está na guerra, na fome,
nas revoluções e contra-revoluções,
no materialismo e no idealismo, na peste e no milagre
- só não está no vazio ou na negação
da Fé.
Cristo - ou a idéia redentora de um Deus - nasce
de uma espécie de "visão do paraíso"
que, por sua vez, resulta de um desejo maior de confraternização
mundial, como o próprio Glauber explicita em
outro trecho da locução "off" de A
Idade da Terra : "Temos que multinacionalizar e
internacionalizar o mundo dentro de um regime interdemocrático.
Com a grande contribuição do Cristianismo
- e todas as religiões são as mesmas religiões.
Entre o entendimento dos religiosos e dos políticos
convertidos ao amor".
Luís Alberto Rocha Melo
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