jesus de montreal & a última tentação de cristo



Denys Arcand, Jésus de Montreal,
Canadá/França, 1989
Martin Scorsese, The Last Temptation Of Christ,
EUA, 1988


Jesus de Montreal
e A Última Tentação de Cristo: enquanto Denys Arcand se mantém fiel ao Cristo preconizado pelo apóstolo Paulo, a fim de contrapô-Lo à perda dos valores morais e espirituais da era contemporânea, Martin Scorsese subverte a história oficial para mostrá-Lo como marginal político que vê na luta contra as instituições romanas e judaicas o caminho para a redenção.

Na Bíblia há, aparentemente, quatro Cristos. O Jesus segundo o Evangelho de Marcos, que codifica os relatos orais circulantes pela Judéia após a crucificação. O Jesus que se conecta às tradições do Antigo Testamento, no Evangelho de Mateus, voltado aos judeus recém-convertidos ao cristianismo. O Jesus do Evangelho de Lucas, mais humano e tolerante que os demais, próprio às comunidades cristãs gregas e romanas. E, por fim, o Jesus de São João, último dos evangelhos a tomar forma (por volta do ano 100), no qual Cristo aparece em sua face mais divina, de Filho de Deus.

No entanto, os quatro se resumem a apenas um: o Jesus de Saulo de Tarso, o fariseu, tornado Paulo a caminho de Damasco. O Novo Testamento, de fato, consiste na versão paulina para a vida de Cristo, que derrotou o Jesus social e político da Igreja de Jerusalém (seita judaica capitaneada pelo apóstolo Tiago). De crítico às leis do Templo e contestador do Império Romano, segundo Tiago, Jesus é transformado por Paulo no Cordeiro de Deus, cuja importância se encontra no sofrimento da morte e na ressurreição, isto é, figura abstrata que, ao lavar os pecados do mundo com seu próprio sangue, está sobretudo direcionada aos gentios, provocando o cisma entre a nova religião cristã e o judaísmo.

Assim, em Jesus de Montreal, Denys Arcand jamais questiona a doutrina cristã tradicional. Ao contrário, o cineasta canadense se vale do dogma primordial da fé – a ressurreição – para, como em O Declínio do Império Americano e em As Invasões Bárbaras, criticar a ausência generalizada dos valores simbolizados pela religião (o senso do eterno, a compaixão, a amizade, o amor) em troca da instantaneidade e da superficialidade absolutas das relações humanas no Ocidente, advindas da onipresença do poder financeiro.

Não por acaso, Jesus de Montreal opõe à encenação do calvário de Cristo a futilidade expressa pelo mundo da propaganda, na qual importa somente a exploração dos corpos, levando o protagonista Daniel Coulombe (Lothaire Bluteau) a se revoltar com o tratamento dispensado à sua namorada. Ou, ainda, o padre Leclerc (Gilles Pelletier) que convoca Coulombe para a montagem teatral, cujas escapadas sexuais só não representam melhor a decadência moral da sociedade de que seu medo em perder as vantagens econômicas proporcionadas pela Igreja Católica, caso descoberto.

Mesmo que Arcand lance a polêmica tese, baseada em supostos achados arqueológicos, de que Jesus era filho bastardo de um soldado romano, ela serve, na prática, para aproximar o sentido divino de Cristo à realidade cotidiana do homem atual. Como nos dois sopranos que cantam o Stabat Mater de Pergolesi dentro da catedral, no início do filme, e no metrô, ao final: trata-se de vivenciar a experiência da ressurreição não apenas nos limites religiosos, como também na concretude do mundo, ávido por ideais duradouros, conforme indica a seqüência derradeira de Jesus de Montreal, em que Daniel ressuscita ao doar seus órgãos para transplantes.

A Última Tentação de Cristo nega a ressurreição clássica, uma vez que termina com a crucificação. Ao subverter o maior dogma cristão, Martin Scorsese privilegia a instância terrena de Jesus (Willem Dafoe), apresentado como pregador radical à margem da sociedade, da ordem instituída e das leis, sejam elas judaicas ou romanas. No extraordinário diálogo com Pôncio Pilatos (ninguém menos que David Bowie), Jesus deixa claro ser Ele a pedra que derrubará o Império Romano: é o Cristo revolucionário de Scorsese, que encarna a mudança capaz de abalar o centro do poder.

São as ações do homem, e de como elas afetam e transformam o contexto histórico no qual estão imersas. Scorsese, contudo, não descarta a divindade de Jesus: há a redenção e a salvação de toda a Humanidade, que não ocorre através da morte e da ressurreição do Filho de Deus, como em Paulo, e sim por meio da revolta do Filho do Homem às injustiças cometidas contra as camadas fracas, oprimidas e marginalizadas de Seu povo.

Assim, contestando a visão paulina do Cordeiro de Deus, Scorsese ataca o cristianismo oficial, que prefere ao Jesus ativo e revolucionário o Cristo passivo e essencialmente apolítico. De modo que a cena capital de A Última Tentação de Cristo mostra o encontro entre Paulo de Tarso e Jesus, já casado e com filhos: ao ser acusado de mentir em sua versão da história de Cristo, Paulo responde que sua ficção é mais real que o Jesus real, na medida em que renova as esperanças por justiça dos sofridos e miseráveis ouvintes, algo que, quando abandona a marginalidade para se integrar ao convívio social (deve-se notar que a última tentação perpetrada pelo diabo não se refere a riquezas ou ao poder, mas à oportunidade de uma vida normal, com esposa, com filhos, cercada de amigos e exercendo o trabalho de marceneiro), O Cristo verdadeiro não pode oferecer. Ou seja, é somente ao reconhecer sua vocação de outsider, e ao agir enquanto tal, que o Jesus de Scorsese se torna apto para redimir os pecados do mundo.

Portanto, no eterno conflito entre o corpo e o espírito, Scorsese, em A Última Tentação de Cristo, parte da carne para alcançar a alma, enquanto Arcand, em Jesus de Montreal, lança-se na busca de um pouco de luz a fim de preencher o vazio que domina nosso tempo.


Paulo Ricardo de Almeida