Jesus de Montreal e A Última Tentação
de Cristo: enquanto Denys Arcand se mantém
fiel ao Cristo preconizado pelo apóstolo Paulo,
a fim de contrapô-Lo à perda dos valores
morais e espirituais da era contemporânea, Martin
Scorsese subverte a história oficial para mostrá-Lo
como marginal político que vê na luta contra
as instituições romanas e judaicas o caminho
para a redenção.
Na Bíblia há, aparentemente, quatro Cristos.
O Jesus segundo o Evangelho de Marcos, que codifica
os relatos orais circulantes pela Judéia após
a crucificação. O Jesus que se conecta
às tradições do Antigo Testamento,
no Evangelho de Mateus, voltado aos judeus recém-convertidos
ao cristianismo. O Jesus do Evangelho de Lucas, mais
humano e tolerante que os demais, próprio às
comunidades cristãs gregas e romanas. E, por
fim, o Jesus de São João, último
dos evangelhos a tomar forma (por volta do ano 100),
no qual Cristo aparece em sua face mais divina, de Filho
de Deus.
No entanto, os quatro se resumem a apenas um: o Jesus
de Saulo de Tarso, o fariseu, tornado Paulo a caminho
de Damasco. O Novo Testamento, de fato, consiste na
versão paulina para a vida de Cristo, que derrotou
o Jesus social e político da Igreja de Jerusalém
(seita judaica capitaneada pelo apóstolo Tiago).
De crítico às leis do Templo e contestador
do Império Romano, segundo Tiago, Jesus é
transformado por Paulo no Cordeiro de Deus, cuja importância
se encontra no sofrimento da morte e na ressurreição,
isto é, figura abstrata que, ao lavar os pecados
do mundo com seu próprio sangue, está
sobretudo direcionada aos gentios, provocando o cisma
entre a nova religião cristã e o judaísmo.
Assim, em Jesus de Montreal, Denys Arcand jamais
questiona a doutrina cristã tradicional. Ao contrário,
o cineasta canadense se vale do dogma primordial da
fé – a ressurreição – para, como
em O Declínio do Império Americano
e em As Invasões Bárbaras,
criticar a ausência generalizada dos valores simbolizados
pela religião (o senso do eterno, a compaixão,
a amizade, o amor) em troca da instantaneidade e da
superficialidade absolutas das relações
humanas no Ocidente, advindas da onipresença
do poder financeiro.
Não por acaso, Jesus de Montreal opõe
à encenação do calvário
de Cristo a futilidade expressa pelo mundo da propaganda,
na qual importa somente a exploração dos
corpos, levando o protagonista Daniel Coulombe (Lothaire
Bluteau) a se revoltar com o tratamento dispensado à
sua namorada. Ou, ainda, o padre Leclerc (Gilles Pelletier)
que convoca Coulombe para a montagem teatral, cujas
escapadas sexuais só não representam melhor
a decadência moral da sociedade de que seu medo
em perder as vantagens econômicas proporcionadas
pela Igreja Católica, caso descoberto.
Mesmo que Arcand lance a polêmica tese, baseada
em supostos achados arqueológicos, de que Jesus
era filho bastardo de um soldado romano, ela serve,
na prática, para aproximar o sentido divino de
Cristo à realidade cotidiana do homem atual.
Como nos dois sopranos que cantam o Stabat Mater de
Pergolesi dentro da catedral, no início do filme,
e no metrô, ao final: trata-se de vivenciar a
experiência da ressurreição não
apenas nos limites religiosos, como também na
concretude do mundo, ávido por ideais duradouros,
conforme indica a seqüência derradeira de
Jesus de Montreal, em que Daniel ressuscita ao
doar seus órgãos para transplantes.
Já A Última Tentação
de Cristo nega a ressurreição clássica,
uma vez que termina com a crucificação.
Ao subverter o maior dogma cristão, Martin Scorsese
privilegia a instância terrena de Jesus (Willem
Dafoe), apresentado como pregador radical à margem
da sociedade, da ordem instituída e das leis,
sejam elas judaicas ou romanas. No extraordinário
diálogo com Pôncio Pilatos (ninguém
menos que David Bowie), Jesus deixa claro ser Ele a
pedra que derrubará o Império Romano:
é o Cristo revolucionário de Scorsese,
que encarna a mudança capaz de abalar o centro
do poder.
São as ações do homem, e de como
elas afetam e transformam o contexto histórico
no qual estão imersas. Scorsese, contudo, não
descarta a divindade de Jesus: há a redenção
e a salvação de toda a Humanidade, que
não ocorre através da morte e da ressurreição
do Filho de Deus, como em Paulo, e sim por meio da revolta
do Filho do Homem às injustiças cometidas
contra as camadas fracas, oprimidas e marginalizadas
de Seu povo.
Assim, contestando a visão paulina do Cordeiro
de Deus, Scorsese ataca o cristianismo oficial, que
prefere ao Jesus ativo e revolucionário o Cristo
passivo e essencialmente apolítico. De modo que
a cena capital de A Última Tentação
de Cristo mostra o encontro entre Paulo de Tarso
e Jesus, já casado e com filhos: ao ser acusado
de mentir em sua versão da história de
Cristo, Paulo responde que sua ficção
é mais real que o Jesus real, na medida em que
renova as esperanças por justiça dos sofridos
e miseráveis ouvintes, algo que, quando abandona
a marginalidade para se integrar ao convívio
social (deve-se notar que a última tentação
perpetrada pelo diabo não se refere a riquezas
ou ao poder, mas à oportunidade de uma vida normal,
com esposa, com filhos, cercada de amigos e exercendo
o trabalho de marceneiro), O Cristo verdadeiro não
pode oferecer. Ou seja, é somente ao reconhecer
sua vocação de outsider, e ao agir enquanto
tal, que o Jesus de Scorsese se torna apto para redimir
os pecados do mundo.
Portanto, no eterno conflito entre o corpo e o espírito,
Scorsese, em A Última Tentação
de Cristo, parte da carne para alcançar a
alma, enquanto Arcand, em Jesus de Montreal,
lança-se na busca de um pouco de luz a fim de
preencher o vazio que domina nosso tempo.
Paulo Ricardo de Almeida
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