Não
é o caso de se apontar a essa altura do campeonato,
como quem descobre a América (sem trocadilhos),
a utilização pelo cinema hollywoodiano
de "temas atuais" ("current events") ou personagens
reais como panos de fundo para a urdidura de suas fantasias
de escapismo e afins. Além de tolo e atrasado
(pois tal movimento está inserido na ficção
artística desde muito antes de existir o cinema
- quanto mais o cinema americano), trata-se de uma observação
pouco rica, na medida em que por si só não
resolve nada, afinal há mil maneiras de se fazer
tal aproximação. Isso dito, que explique-se
de saída: o problema central que torna Amor
sem Fronteiras um filme asqueroso passa longe de
uma questão moral com a ação de
transformar dramas "reais" em fantasia hollywoodiana.
De fato, se partimos do final de Amor sem Fronteiras
para trás, o filme apresenta até alguns
pontos de interesse: a filmagem de Campbell do último
"evento histórico" do filme (que se estrutura
em três tempos, ou melhor, em três safáris
histórico-geográfico-sociais) é
a mais bem resolvida, não por acaso. Ali a realidade
abre espaço de vez para o campo da fantasia,
onde o filme de "ajuda humanitária" se transforma
de vez em filme de espião à la James Bond
(aonde Campbell já militou), e onde melhor se
trabalha o campo do escapismo completo com as figuras
supostamente reais dos terroristas chechenos, etc. No
entanto, se fazemos o recuo, o filme vai ficando mais
e mais complicado...
Se a segunda parte - o "Apocalypse Now" sexual de Angelina
Jolie e Clive Owen no Camboja (um close dos lábios
carnudos dela sussurrando "the horror, the horror" seria
obrigatório em mãos mais subversivas)
- já é bastante complicada nas aproximações
políticas com a questão do sudeste asiático
e a presença estrangeira, é a primeira
hora do filme que faz os corações mais
fortes gritarem pela cabeça dos responsáveis
pelo trabalho. Voltando no tempo aos meados dos anos
80, e à questão da miséria etíope,
o filme transforma-se em tal exploração
da tragédia humana para puro "shock value", de
tal utilização do sofrimento de pessoas
de verdade como objeto de pena e heroicização
dos estrangeiros, de tal obscenidade na mistura de "valor
real" com "gloss hollywoodiano" de fotografia de filtros
e spots bem colocados nos olhos sofridos das estrelas,
que é impossível evitar o asco completo.
Há até mesmo a cereja no topo do bolo,
o lance que beira o surreal e que instaura de fato toda
uma nova concepção dos efeitos digitais
(e, de passagem, torna este filme um marco histórico
do cinema a não ser ignorado, para além
de desprezível ferramente ideológica):
um menino-esqueleto etíope (daqueles que tanto
vimos nos jornais da época) gerado por computador.
Confessamos que por essa não podíamos
esperar - os paradigmas morais da imagem estão
todos jogados para o ar.
Não se esperava de um filme claramente feito
para complementar a instauração de Angelina
Jolie como embaixadora universal da UNESCO ("Lara Croft
enfrenta a Fome!" parece afirmar o filme em momentos)
muito mais complexidade política - para se tentar
entender, por exemplo, porque estes países foram
escolhidos como modelos nas épocas em que foram
(e depois descartados com a mesma facilidade). Nem qualquer
utilização ficcional que não fosse
o esquemático "os sofridos como objetos para
serem salvos"-"os heróis brigando com seus ideais
para salvá-los". Mas também não
se esperava uma decida tão grande e direta aos
confins do obscuro na utilização (e, agora,
geração!) de imagens de sofrimento para
rolagem de dinheiro e entretenimento. Bastante assustador,
talvez mais que a realidade que supõe "apresentar"
- assim é Amor sem Fronteiras.
Eduardo Valente
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