AMOR SEM FRONTEIRAS
Martin Campbell, Beyond Borders, EUA, 2003

Não é o caso de se apontar a essa altura do campeonato, como quem descobre a América (sem trocadilhos), a utilização pelo cinema hollywoodiano de "temas atuais" ("current events") ou personagens reais como panos de fundo para a urdidura de suas fantasias de escapismo e afins. Além de tolo e atrasado (pois tal movimento está inserido na ficção artística desde muito antes de existir o cinema - quanto mais o cinema americano), trata-se de uma observação pouco rica, na medida em que por si só não resolve nada, afinal há mil maneiras de se fazer tal aproximação. Isso dito, que explique-se de saída: o problema central que torna Amor sem Fronteiras um filme asqueroso passa longe de uma questão moral com a ação de transformar dramas "reais" em fantasia hollywoodiana.

De fato, se partimos do final de Amor sem Fronteiras para trás, o filme apresenta até alguns pontos de interesse: a filmagem de Campbell do último "evento histórico" do filme (que se estrutura em três tempos, ou melhor, em três safáris histórico-geográfico-sociais) é a mais bem resolvida, não por acaso. Ali a realidade abre espaço de vez para o campo da fantasia, onde o filme de "ajuda humanitária" se transforma de vez em filme de espião à la James Bond (aonde Campbell já militou), e onde melhor se trabalha o campo do escapismo completo com as figuras supostamente reais dos terroristas chechenos, etc. No entanto, se fazemos o recuo, o filme vai ficando mais e mais complicado...

Se a segunda parte - o "Apocalypse Now" sexual de Angelina Jolie e Clive Owen no Camboja (um close dos lábios carnudos dela sussurrando "the horror, the horror" seria obrigatório em mãos mais subversivas) - já é bastante complicada nas aproximações políticas com a questão do sudeste asiático e a presença estrangeira, é a primeira hora do filme que faz os corações mais fortes gritarem pela cabeça dos responsáveis pelo trabalho. Voltando no tempo aos meados dos anos 80, e à questão da miséria etíope, o filme transforma-se em tal exploração da tragédia humana para puro "shock value", de tal utilização do sofrimento de pessoas de verdade como objeto de pena e heroicização dos estrangeiros, de tal obscenidade na mistura de "valor real" com "gloss hollywoodiano" de fotografia de filtros e spots bem colocados nos olhos sofridos das estrelas, que é impossível evitar o asco completo. Há até mesmo a cereja no topo do bolo, o lance que beira o surreal e que instaura de fato toda uma nova concepção dos efeitos digitais (e, de passagem, torna este filme um marco histórico do cinema a não ser ignorado, para além de desprezível ferramente ideológica): um menino-esqueleto etíope (daqueles que tanto vimos nos jornais da época) gerado por computador. Confessamos que por essa não podíamos esperar - os paradigmas morais da imagem estão todos jogados para o ar.

Não se esperava de um filme claramente feito para complementar a instauração de Angelina Jolie como embaixadora universal da UNESCO ("Lara Croft enfrenta a Fome!" parece afirmar o filme em momentos) muito mais complexidade política - para se tentar entender, por exemplo, porque estes países foram escolhidos como modelos nas épocas em que foram (e depois descartados com a mesma facilidade). Nem qualquer utilização ficcional que não fosse o esquemático "os sofridos como objetos para serem salvos"-"os heróis brigando com seus ideais para salvá-los". Mas também não se esperava uma decida tão grande e direta aos confins do obscuro na utilização (e, agora, geração!) de imagens de sofrimento para rolagem de dinheiro e entretenimento. Bastante assustador, talvez mais que a realidade que supõe "apresentar" - assim é Amor sem Fronteiras.


Eduardo Valente