Reza
a lenda que o cinema de Atom Egoyan jamais fala sobre
as coisa, mas sobre a angústia e a dificuldade
das tomadas de decisões causadas pelas coisas.
Dessa forma, toda possibilidade de um cinema físico
ou que precise em algum momento dar conta da materialidade
do mundo perde-se em belas imagens e torturadas divagações
sobre a existência (abstrato assim). Há
quem jamais tivesse se interessado pelo enredo psicológico
e pelos paralelismos que se teciam entre os personagens
de Exótica e de O Doce Amanhã,
mas aqui em Ararat o negócio é
mais embaixo: Atom Egoyan quer falar não só
de tensões psicológicas e da dificuldade
de se deparar com as coisas inexoráveis do mundo;
agora ele quer falar sobre um massacre muito caro a
ele, o genocídio do povo armênio cometido
pelos turcos no começo do século XX (os
pais do diretor sendo armênios, passa a ser um
assunto de família).
Mas é aí que o já precário
sistema cinematográfico de Atom Egoyan rui de
forma patente. Enquanto seu cinema flutuava em torno
da vida familiar e dos conflitos interiores de seus
personagens, os filmes estavam livres da pecha de ir
procurar alguma verdade externa, alguma coisa que nos
forçasse a descobrir que há mundo fora
das impressões subjetivas de cada um. Com Ararat,
isso seria obrigatório: um massacre não
é algo subjetivo, mas algo que deriva de um conjunto
de ações políticas/culturais/sociais
que irão impulsionar, comandar e justificar tal
infâmia. Ora, sobre isso Atom Egoyan prefere não
refletir. Prefere nos entregar seu filme habitual: as
linhas narrativas se escalonam em torno de dilemas familiares
e amorosos (é Christopher Plummer que abre a
narrativa para dar lugar à história de
um filho de mãe armênia que tenta trazer
ao Canadá uma lata de filme e é retido
na alfândega por suspeita de carregar drogas).
Assim feito, Ararat mostra não só a incapacidade
de Atom Egoyan em estender seu leque de interesses cinematográficos,
mas acima de tudo a extrema impossibilidade de tocar
a fundo a realidade material que, afinal, criou a necessidade
existencial de realizar o filme. Assim, o massacre armênio
transforma-se num filme-dentro-do-filme rodado por um
célebre diretor armênio, e a decisão
se revela como um subterfúgio: são as
imagens mais espetaculosas do filme, de longe as menos
verdadeiras (se com verdade tentamos dizer não
sobre a adequação com o mundo real, mas
com uma veemência de cinema e uma vontade de tocar
o mundo), e também as menos verossímeis.
Subterfúgio porque, sendo filme-dentro-do-filme,
a canastrice da mise-en-scène do massacre pode
cair na conta do diretor fake (encenado por Charles
Aznavour), e não na de Egoyan, entretanto responsável
absoluto do filme. Na falta de qualquer interesse ou
capacidade de tocar algo além dos inefáveis
tecidos da memória, da angústia ou do
sentimento familiar (onde até o massacre armênio
transforma-se em ritual de passagem da memória
de mãe para filho), Ararat resulta inútil
e estéril.
Tocar um novo assunto, um novo foco de interesse, é
sempre perigoso para um cineasta. Ou dilata o espectro
que sua obra cobre, ou simplesmente se descobre que
ele só consegue fazer um mesmo tipo de filme.
Com Ararat, descobrimos que Atom Egoyan não
é nada além de um maneirista que, por
não encontrar jamais ponto de ancoragem na realidade,
continua filmando os momentos de impasse, mesmo quando
eles são desimportantes. Se em O Doce Amanhã
eles não eram, em Ararat há
muito mais mundo para além de angústias
e memórias. E falar só disso e se esconder
do mundo tangível (esfera onde factualmente houve
o masacre) torna Ararat um filme verdadeiramente
abjeto. E, como se precisasse ajuntar, sem talento.
Ruy Gardnier
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