Há
pelo menos cinco ou seis claras opções
diferenciadas de aproximação com A
Paixão de Cristo isso tudo num primeiro
olhar, é claro. Trata-se de um filme importante
de se analisar para além de suas condições
cinematográficas mas seria um erro desprezá-las
também, trocando-as tão somente por uma
leitura de ordem teológica ou como fenômeno
cultural. A Paixão de Cristo, sabe-se
desde já, é filme para se voltar a ele
depois, com calma, em outras circunstâncias e
com o peso de seu massivo lançamento já
um pouco atenuado (nisso se parece muito com outro filme,
e a comparação faz todo sentido
Titanic). No entanto, parte do trabalho da cobertura
crítica no calor da hora, que é uma das
atividades que exercitamos aqui na Contracampo, é
o de se arriscar sem muitas redes de segurança
a um olhar mais rápido, mais urgente, mais imediato.
E é isso que se fará neste texto
ainda que seja necessário separar, desde já,
pelo menos dois Paixão de Cristo diferentes:
o filme e o fenômeno de lançamento. Trataremos,
aqui, dos dois.
O filme Os olhos de Cristo
De todos os aspectos de linguagem que Mel Gibson
resolveu usar no seu retrato do martírio de Cristo
(a onipresença do sangue, a câmera lenta,
os diálogos em aramaico e latim, a trilha sonora
percussiva, etc), um parece estar passando desapercebido,
quando claramente é o mais importante e coerente:
o retrato do Cristo através dos seus olhos. Esta
frase, aliás (graças aos meandros misteriosos
da língua portuguesa), tem ao menos duas leituras
imediatas e ambas fazem sentido.
Impressiona, primeiro, a obsessão de Gibson por
cenas em close no rosto de Jim Caviezel como o Cristo.
Closes estes que buscam revelar nos seus olhos (melhor
seria dizer, no olho esquerdo uma vez que o direito
passa boa parte do filme desfigurado) toda a decepção
e posterior crença de Cristo na raça humana;
ou por outra, a dimensão simultaneamente divina
e humana do personagem. Nesta aposta, Gibson não
confiou só no seu ator, nem só no fotógrafo:
há uma evidente manipulação digital
de todas estas imagens, de forma a imprimir uma tonalidade
de intensa suavidade sobre-humana à íris
do olho do Cristo. Poderia parecer um detalhe, se não
fosse um tão obsessivamente repetido, enquadrado,
buscado. Vemos com atenção o olhar de
Cristo a Pedro quando este o nega três vezes;
o olhar para Simão quando este o vem ajudar a
carregar a cruz; o olhar para Maria, para Maria Madalena,
para Pilatos, para Judas em suma, todos os olhares
são focados e iluminados de forma a destacar
o olho de Jesus Cristo, simbolizando sua visão
da Humanidade (espelhada nos outros personagens).
O que nos leva ao segundo entendimento da frase que
abre a argumentação lá em cima:
vemos o filme através dos olhos do Cristo não
só por sua constante focalização
como imagem central, como eixo dramático da narrativa,
mas principalmente porque Gibson tenta nos contar esta
história "através dos olhos de Jesus Cristo"
ao contrário dos evangelhos, podemos dizer
que o narrador aqui é Cristo. E, neste ponto
o filme dá um recuo de uma riqueza inesperada:
ao fazer isso, Gibson não apenas se utiliza de
métodos clássicos da linguagem cinematográfica
(como inúmeros planos ponto de vista encarnando
o olhar de Cristo, ou a centralização
dos flashbacks em momentos de lembranças claramente
dele), como deixa claro que assume ele mesmo (Gibson)
a voz de Cristo. O diretor é, ele também,
o Filho de David, por assim dizer, e seu filme é
uma enorme acusação à raça
humana, na verdade (acusação esta que
tem sua prova inconteste no olhar de Maria para a câmera,
que fecha o filme, antes do rápido epílogo/ressurreição).
O que Mel Gibson busca, com sua câmera, é
reviver o martírio sem igual pelo qual passou
Jesus, segundo a fé católica, pela mão
dos homens.
Daí porque parece essencialmente tolo acusar
o filme de sadismo ou de ostentação da
violência: esta acusação faz supor
uma violência gratuita, quando de fato ela é
a motivação essencial de Gibson ao realizar
o filme. Pode-se concordar ou discordar de seus objetivos,
isso é uma coisa. Não se pode é
julgar a forma de seu filme inadequada a seus propósitos
Gibson filma da única forma como poderia
filmar esta sua visão da história. Quando
ele fala de filmar o martírio de Cristo como
nunca havia sido mostrado, não creio que se trate
de um problema de verdade histórica, como se
quis fazer crer, e sim de tratamento de personagem.
Afinal, se personagens humanos históricos (e
até mesmo ainda vivos, infelizmente) sofreram
torturas indizíveis nas mãos de outros
seres humanos, o que se esperar do retrato do martírio
do filho de Deus? O que Gibson faz é uma opção
radical: tentar dar encarnação sobre-humana
ao sofrimento de Jesus aonde sua câmera
é Jesus, e o espectador é uma encarnação
de Judas (não por acaso seu suicídio merece
filmagem à parte).
É claro que se pode dizer que este ato é
sádico em relação ao espectador,
mas aí é que se completam as intenções
do diretor: ele sabe disso. Sabe tão bem que
pelo menos em dois momentos isso está colocado
na tela em seu filme: quando Simão tenta tapar
os olhos da filha pequena perante os horrores da Via
Crúcis, e quando uma outra personagem pede aos
gritos: "Alguém faça isso parar!" Gibson
sabe que seu filme vai nos limites do tolerável
e é seu desejo que assim seja. Porque,
segundo sua visão, o espectador precisa ser tratado
como o povo nas ruas frente àquele espetáculo:
a catarse só seria possível pelo exagero,
e recusar este espetáculo é recusar sua
participação nele. Portanto, o "gore",
o sangue, o seviciamento de Jesus é parte essencial
da proposta de Mel Gibson com este filme e não
entender isso é não entender o filme.
Complementarmente, é tolo da mesma forma acusar
o filme de anti-semita: sim, os judeus são retratados,
em sua maioria (e aí seria preciso abstrair o
fato de que Jesus era um deles), como os responsáveis
pelo sofrimento de Cristo. No entanto, o que se deve
ter bem separado é que o problema não
é alguma característica inerente a uma
"alma judaica", e sim uma condenação por
Gibson da raça humana quando defronte a seu "salvador":
a raça humana falhou, segundo ele não
os judeus. Os judeus apenas calharam de ser os que ali
estavam mas os romanos não são
nada melhores (com exceção de Pôncio
Pilatos, cujo retrato aliás daria pano para manga
em outros textos), nem seria diferente com nenhum outro
povo. É interessante reparar que o perdão
e a compaixão, se existem no filme, são
encarnados sempre nas mulheres: não só
em Maria, a Mãe, ou em Maria Madalena, mas também
em uma mulher que assiste à Via Crúcis
e se apieda dele; e surpreendentemente, na mulher de
Pôncio Pilatos (ela sim a responsável pelos
atos "piedosos" dele).
É desta representação da dor de
Cristo (e, por conseguinte e principalmente, da falibilidade
dos humanos) que Gibson quer tratar e a forma
como o faz é através de um filme tão
irracional, exagerado, manipulador e revoltado quanto
qualquer ato de fé cega. E é isso que
o filme é, no final das contas, e o que o torna
tão fascinante: um produto autenticamente religioso,
crente ao contrário de tantas aproximações
das escrituras que tentavam usar o Cristo para outros
fins, fossem eles espetaculares, paródicos ou
políticos (dos quais trataremos aqui mesmo na
revista em DVD/VHS). O filme de Gibson inaugura
um cinema efetivamente fundamentalista (afinal o fundamentalismo
não é característica exclusiva
do Islã, e sim uma forma de enxergar o mundo
pela fé cega), e isso torna seu filme admirável
pela honestidade. Para além das questões
em torno de seu lançamento (as quais mencionamos
abaixo), o que nos importa aqui (o filme que está
na tela) é absolutamente radical, não
negocia: um filme desagradável e exagerado, como
o grito de um fanático. E, acima de tudo isso:
um filme que prega o que acredita, e não tem
medo de levar o que prega (sem trocadilhos, por favor!)
até o fim. Por tudo isso, um esforço admirável
mesmo com todos os seus pontos questionáveis,
aos quais podemos voltar no futuro.
O fenômeno Alhos e bugalhos
Para todos os fins, há que se separar o fenômeno
de bilheteria e divulgação de A Paixão
de Cristo em dois momentos distintos (ainda que
de difícil separação cronológica).
Até mesmo nisso, mas não só, é
importante apelarmos para uma comparação
com o Titanic de James Cameron: tanto num caso
como no outro, os cineastas enfrentaram Deus e o mundo,
dentro do sistema hollywoodiano, por acreditarem na
validade de suas visões e se provaram
certos no final das contas (especialmente no final das
contas). Claro, dirão os mais céticos,
é muito mais fácil brigar com o sistema
estando dentro dele, ou sendo James Cameron ou Mel Gibson,
e cooptando os milhões de dólares deste
sistema para trabalhar por você. Isso tudo é
mais do que óbvio ou evidente. Mas, ainda assim,
há que se diferenciar um Titanic, um Paixão
de Cristo, de um projeto laboratorial de um grande
estúdio, totalmente pensado e feito sob controle
para gerar lucros com poucos riscos. Não por
acaso, talvez, estes poucos riscos gerem poucas surpresas
enquanto Titanic e Cristo pegaram
todos de calças curtas tal o alcance de seu sucesso.
E o que isso tudo tem de interessante? Talvez a afirmação
de uma estranha modalidade radical de cinema de autor
dentro dos grandes estúdios.
"Cinema de autor??", perguntarão aqueles
pensando em Godard, em Glauber, em Bergman. Sim, cinema
de autor: A Paixão de Cristo é
um dos mais radicais exemplos de autoria no cinema a
aparecer em muitos anos nas nossas telas. Senão,
vejamos: sem conseguir financiamento de nenhum grande
estúdio, Mel Gibson pegou dinheiro próprio
seu, de sua produtora (não por acaso a Icon assina
o filme sozinha), e foi filmar com pouco mais de 25
milhões de dólares sua Paixão
de Cristo em aramaico, com atores desconhecidos.
O orçamento, diga-se, claramente não é
uma invenção de marketing para dar charme
a uma mega-produção: Paixão
de Cristo tem características formais e de
filmagem típicas de um "filme B" (que é
o que seria hoje um épico histórico filmado
com este orçamento que em Hollywood é
de comédia romântica contemporânea),
e esta é uma de suas características mais
interessantes. "Ah, ele filmou em aramaico só
para ser diferente" OK, mesmo que se acredite
nisso, certamente não estaria em acordo com um
filme de grande estúdio, aonde se odeia bastante
o "diferente". Paixão de Cristo era tão
desacreditado em sua pré-produção,
quanto Titanic às vésperas do seu
lançamento.
Aqui, cabe esclarecer uma diferença importante:
o filme de Cameron tinha tido um início radicalmente
diferente do de Gibson, com um mega-orçamento
aprovado na casa dos cento e tanto milhões de
dólares. No entanto, uma vez que o perfeccionismo
obsessivo de Cameron (característica partilhada
por Gibson, dizem) levou o filme a sucessivos estouros
de orçamento, chegando perto (ou ultrapassando,
dependendo da versão) os duzentos milhões
de dólares, o estúdio já tinha
desistido totalmente de qualquer "sucesso" desejava-se
no máximo, perder o menos de dinheiro que se
pudesse. Isso não é tese "a posteriori"
está registrado nas revistas do mercado
de cinema americano às vésperas do lançamento.
Gibson filmou e começou a trabalhar na finalização
do filme sempre por conta dele, já tendo fechado
com um distribuidor absolutamente independente. Aí
é que as coisas começaram a ficar interessantes:
com a polêmica que as instituições
religiosas (principalmente as judaicas) resolvem comprar
com o filme ainda não pronto. Possivelmente foi
aí que os estúdios (que hoje estão
ligados ao filme no mercado externo no Brasil
o filme é lançamento da Fox, por exemplo)
começaram a se dar conta de que, uma vez feito
por tão pouco, talvez este filme não fosse
de todo um mau negócio polêmica
é sempre (ou, quase sempre) bom para os negócios.
Entretanto, a estas alturas um certo abraço do
sistema já não mudava mais a independência
do produto final que Gibson assina: em aramaico e latim
(portanto com legendas nos EUA), sem atores famosos
(Monica Bellucci não é ninguém
nos EUA, nem mesmo pós-Matrix), ultra-violento
e com censura para menores de 17 anos.
Mas, talvez o ponto mais interessante a unir os dois
filmes seja o do trabalho com gêneros. Quando
o senso comum diz que o cinema é feito hoje para
adolescentes interessados, antes de tudo, no cinema
de ação com muitos efeitos visuais, ou
nas comédias rasgadas e de pouco raciocínio,
Titanic vinha propor, do alto de suas três
horas e pouco de duração, um retorno ao
cinema épico romântico que se considerava
enterrado nos áureos tempos hollywoodianos. Um
produto cinematográfico atualizado, sem dúvida
(basta ver os efeitos visuais abundantes), mas ainda
assim filho completamente diferente do que se produzia
em torno dele uma aposta radical num cinema de
gênero, romântico e grandioso. De forma
análoga, o filme de Gibson vem propor a volta
a um gênero ainda mais distante e "enterrado":
o filme bíblico, religioso, não só
desinteressante a princípio, como de fato proibido
(nos EUA) para o público adolescente.
É neste contexto que a presença dos dois
como os maiores fenômenos de bilheteria da história
recente (ou de sempre) do cinema americano não
pode ser vista sem interesse, sem matizes, sem estudo.
Me parece pequeno colocá-los na categoria do
"marketing puro" (ainda que caiba a provocação,
sendo este um filme religioso: o que é a Igreja
Católica senão uma genial sacada de marketing?),
porque marketing sempre houve e sempre haverá,
e isso não garantiu o sucesso comercial a tantos
e tantos filmes feitos com este propósito.
Diminuir um filme a "violência de terceira" ou
"fenômeno de marketing", simplesmente, é
muito legal para quem quer vender jornal, fingindo-se
(ou sendo realmente??) incapaz de autocrítica.
Para quem queira tratar o cinema (seja como expressão
artística, seja como fenômeno cultural)
com algum interesse real ou seriedade, é preciso
ir um pouco mais longe.
Eduardo Valente
|