A PAIXÃO DE CRISTO
Mel Gibson, The Passion Of The Christ, EUA, 2004

Há pelo menos cinco ou seis claras opções diferenciadas de aproximação com A Paixão de Cristo – isso tudo num primeiro olhar, é claro. Trata-se de um filme importante de se analisar para além de suas condições cinematográficas – mas seria um erro desprezá-las também, trocando-as tão somente por uma leitura de ordem teológica ou como fenômeno cultural. A Paixão de Cristo, sabe-se desde já, é filme para se voltar a ele depois, com calma, em outras circunstâncias e com o peso de seu massivo lançamento já um pouco atenuado (nisso se parece muito com outro filme, e a comparação faz todo sentido – Titanic). No entanto, parte do trabalho da cobertura crítica no calor da hora, que é uma das atividades que exercitamos aqui na Contracampo, é o de se arriscar sem muitas redes de segurança a um olhar mais rápido, mais urgente, mais imediato. E é isso que se fará neste texto – ainda que seja necessário separar, desde já, pelo menos dois Paixão de Cristo diferentes: o filme e o fenômeno de lançamento. Trataremos, aqui, dos dois.

O filme – Os olhos de Cristo

De todos os aspectos de linguagem que Mel Gibson resolveu usar no seu retrato do martírio de Cristo (a onipresença do sangue, a câmera lenta, os diálogos em aramaico e latim, a trilha sonora percussiva, etc), um parece estar passando desapercebido, quando claramente é o mais importante e coerente: o retrato do Cristo através dos seus olhos. Esta frase, aliás (graças aos meandros misteriosos da língua portuguesa), tem ao menos duas leituras imediatas – e ambas fazem sentido.

Impressiona, primeiro, a obsessão de Gibson por cenas em close no rosto de Jim Caviezel como o Cristo. Closes estes que buscam revelar nos seus olhos (melhor seria dizer, no olho esquerdo – uma vez que o direito passa boa parte do filme desfigurado) toda a decepção e posterior crença de Cristo na raça humana; ou por outra, a dimensão simultaneamente divina e humana do personagem. Nesta aposta, Gibson não confiou só no seu ator, nem só no fotógrafo: há uma evidente manipulação digital de todas estas imagens, de forma a imprimir uma tonalidade de intensa suavidade sobre-humana à íris do olho do Cristo. Poderia parecer um detalhe, se não fosse um tão obsessivamente repetido, enquadrado, buscado. Vemos com atenção o olhar de Cristo a Pedro quando este o nega três vezes; o olhar para Simão quando este o vem ajudar a carregar a cruz; o olhar para Maria, para Maria Madalena, para Pilatos, para Judas – em suma, todos os olhares são focados e iluminados de forma a destacar o olho de Jesus Cristo, simbolizando sua visão da Humanidade (espelhada nos outros personagens).

O que nos leva ao segundo entendimento da frase que abre a argumentação lá em cima: vemos o filme através dos olhos do Cristo não só por sua constante focalização como imagem central, como eixo dramático da narrativa, mas principalmente porque Gibson tenta nos contar esta história "através dos olhos de Jesus Cristo" – ao contrário dos evangelhos, podemos dizer que o narrador aqui é Cristo. E, neste ponto o filme dá um recuo de uma riqueza inesperada: ao fazer isso, Gibson não apenas se utiliza de métodos clássicos da linguagem cinematográfica (como inúmeros planos ponto de vista encarnando o olhar de Cristo, ou a centralização dos flashbacks em momentos de lembranças claramente dele), como deixa claro que assume ele mesmo (Gibson) a voz de Cristo. O diretor é, ele também, o Filho de David, por assim dizer, e seu filme é uma enorme acusação à raça humana, na verdade (acusação esta que tem sua prova inconteste no olhar de Maria para a câmera, que fecha o filme, antes do rápido epílogo/ressurreição). O que Mel Gibson busca, com sua câmera, é reviver o martírio sem igual pelo qual passou Jesus, segundo a fé católica, pela mão dos homens.

Daí porque parece essencialmente tolo acusar o filme de sadismo ou de ostentação da violência: esta acusação faz supor uma violência gratuita, quando de fato ela é a motivação essencial de Gibson ao realizar o filme. Pode-se concordar ou discordar de seus objetivos, isso é uma coisa. Não se pode é julgar a forma de seu filme inadequada a seus propósitos – Gibson filma da única forma como poderia filmar esta sua visão da história. Quando ele fala de filmar o martírio de Cristo como nunca havia sido mostrado, não creio que se trate de um problema de verdade histórica, como se quis fazer crer, e sim de tratamento de personagem. Afinal, se personagens humanos históricos (e até mesmo ainda vivos, infelizmente) sofreram torturas indizíveis nas mãos de outros seres humanos, o que se esperar do retrato do martírio do filho de Deus? O que Gibson faz é uma opção radical: tentar dar encarnação sobre-humana ao sofrimento de Jesus – aonde sua câmera é Jesus, e o espectador é uma encarnação de Judas (não por acaso seu suicídio merece filmagem à parte).

É claro que se pode dizer que este ato é sádico em relação ao espectador, mas aí é que se completam as intenções do diretor: ele sabe disso. Sabe tão bem que pelo menos em dois momentos isso está colocado na tela em seu filme: quando Simão tenta tapar os olhos da filha pequena perante os horrores da Via Crúcis, e quando uma outra personagem pede aos gritos: "Alguém faça isso parar!" Gibson sabe que seu filme vai nos limites do tolerável – e é seu desejo que assim seja. Porque, segundo sua visão, o espectador precisa ser tratado como o povo nas ruas frente àquele espetáculo: a catarse só seria possível pelo exagero, e recusar este espetáculo é recusar sua participação nele. Portanto, o "gore", o sangue, o seviciamento de Jesus é parte essencial da proposta de Mel Gibson com este filme – e não entender isso é não entender o filme.

Complementarmente, é tolo da mesma forma acusar o filme de anti-semita: sim, os judeus são retratados, em sua maioria (e aí seria preciso abstrair o fato de que Jesus era um deles), como os responsáveis pelo sofrimento de Cristo. No entanto, o que se deve ter bem separado é que o problema não é alguma característica inerente a uma "alma judaica", e sim uma condenação por Gibson da raça humana quando defronte a seu "salvador": a raça humana falhou, segundo ele – não os judeus. Os judeus apenas calharam de ser os que ali estavam – mas os romanos não são nada melhores (com exceção de Pôncio Pilatos, cujo retrato aliás daria pano para manga em outros textos), nem seria diferente com nenhum outro povo. É interessante reparar que o perdão e a compaixão, se existem no filme, são encarnados sempre nas mulheres: não só em Maria, a Mãe, ou em Maria Madalena, mas também em uma mulher que assiste à Via Crúcis e se apieda dele; e surpreendentemente, na mulher de Pôncio Pilatos (ela sim a responsável pelos atos "piedosos" dele).

É desta representação da dor de Cristo (e, por conseguinte e principalmente, da falibilidade dos humanos) que Gibson quer tratar – e a forma como o faz é através de um filme tão irracional, exagerado, manipulador e revoltado quanto qualquer ato de fé cega. E é isso que o filme é, no final das contas, e o que o torna tão fascinante: um produto autenticamente religioso, crente – ao contrário de tantas aproximações das escrituras que tentavam usar o Cristo para outros fins, fossem eles espetaculares, paródicos ou políticos (dos quais trataremos aqui mesmo na revista – em DVD/VHS). O filme de Gibson inaugura um cinema efetivamente fundamentalista (afinal o fundamentalismo não é característica exclusiva do Islã, e sim uma forma de enxergar o mundo pela fé cega), e isso torna seu filme admirável pela honestidade. Para além das questões em torno de seu lançamento (as quais mencionamos abaixo), o que nos importa aqui (o filme que está na tela) é absolutamente radical, não negocia: um filme desagradável e exagerado, como o grito de um fanático. E, acima de tudo isso: um filme que prega o que acredita, e não tem medo de levar o que prega (sem trocadilhos, por favor!) até o fim. Por tudo isso, um esforço admirável – mesmo com todos os seus pontos questionáveis, aos quais podemos voltar no futuro.

O fenômeno – Alhos e bugalhos

Para todos os fins, há que se separar o fenômeno de bilheteria e divulgação de A Paixão de Cristo em dois momentos distintos (ainda que de difícil separação cronológica). Até mesmo nisso, mas não só, é importante apelarmos para uma comparação com o Titanic de James Cameron: tanto num caso como no outro, os cineastas enfrentaram Deus e o mundo, dentro do sistema hollywoodiano, por acreditarem na validade de suas visões – e se provaram certos no final das contas (especialmente no final das contas). Claro, dirão os mais céticos, é muito mais fácil brigar com o sistema estando dentro dele, ou sendo James Cameron ou Mel Gibson, e cooptando os milhões de dólares deste sistema para trabalhar por você. Isso tudo é mais do que óbvio ou evidente. Mas, ainda assim, há que se diferenciar um Titanic, um Paixão de Cristo, de um projeto laboratorial de um grande estúdio, totalmente pensado e feito sob controle para gerar lucros com poucos riscos. Não por acaso, talvez, estes poucos riscos gerem poucas surpresas – enquanto Titanic e Cristo pegaram todos de calças curtas tal o alcance de seu sucesso. E o que isso tudo tem de interessante? Talvez a afirmação de uma estranha modalidade radical de cinema de autor – dentro dos grandes estúdios.

"Cinema de autor??", perguntarão aqueles – pensando em Godard, em Glauber, em Bergman. Sim, cinema de autor: A Paixão de Cristo é um dos mais radicais exemplos de autoria no cinema a aparecer em muitos anos nas nossas telas. Senão, vejamos: sem conseguir financiamento de nenhum grande estúdio, Mel Gibson pegou dinheiro próprio seu, de sua produtora (não por acaso a Icon assina o filme sozinha), e foi filmar com pouco mais de 25 milhões de dólares sua Paixão de Cristo em aramaico, com atores desconhecidos. O orçamento, diga-se, claramente não é uma invenção de marketing para dar charme a uma mega-produção: Paixão de Cristo tem características formais e de filmagem típicas de um "filme B" (que é o que seria hoje um épico histórico filmado com este orçamento – que em Hollywood é de comédia romântica contemporânea), e esta é uma de suas características mais interessantes. "Ah, ele filmou em aramaico só para ser diferente" – OK, mesmo que se acredite nisso, certamente não estaria em acordo com um filme de grande estúdio, aonde se odeia bastante o "diferente". Paixão de Cristo era tão desacreditado em sua pré-produção, quanto Titanic às vésperas do seu lançamento.

Aqui, cabe esclarecer uma diferença importante: o filme de Cameron tinha tido um início radicalmente diferente do de Gibson, com um mega-orçamento aprovado na casa dos cento e tanto milhões de dólares. No entanto, uma vez que o perfeccionismo obsessivo de Cameron (característica partilhada por Gibson, dizem) levou o filme a sucessivos estouros de orçamento, chegando perto (ou ultrapassando, dependendo da versão) os duzentos milhões de dólares, o estúdio já tinha desistido totalmente de qualquer "sucesso" – desejava-se no máximo, perder o menos de dinheiro que se pudesse. Isso não é tese "a posteriori" – está registrado nas revistas do mercado de cinema americano às vésperas do lançamento.

Gibson filmou e começou a trabalhar na finalização do filme sempre por conta dele, já tendo fechado com um distribuidor absolutamente independente. Aí é que as coisas começaram a ficar interessantes: com a polêmica que as instituições religiosas (principalmente as judaicas) resolvem comprar com o filme ainda não pronto. Possivelmente foi aí que os estúdios (que hoje estão ligados ao filme no mercado externo – no Brasil o filme é lançamento da Fox, por exemplo) começaram a se dar conta de que, uma vez feito por tão pouco, talvez este filme não fosse de todo um mau negócio – polêmica é sempre (ou, quase sempre) bom para os negócios. Entretanto, a estas alturas um certo abraço do sistema já não mudava mais a independência do produto final que Gibson assina: em aramaico e latim (portanto com legendas nos EUA), sem atores famosos (Monica Bellucci não é ninguém nos EUA, nem mesmo pós-Matrix), ultra-violento e com censura para menores de 17 anos.

Mas, talvez o ponto mais interessante a unir os dois filmes seja o do trabalho com gêneros. Quando o senso comum diz que o cinema é feito hoje para adolescentes interessados, antes de tudo, no cinema de ação com muitos efeitos visuais, ou nas comédias rasgadas e de pouco raciocínio, Titanic vinha propor, do alto de suas três horas e pouco de duração, um retorno ao cinema épico romântico que se considerava enterrado nos áureos tempos hollywoodianos. Um produto cinematográfico atualizado, sem dúvida (basta ver os efeitos visuais abundantes), mas ainda assim filho completamente diferente do que se produzia em torno dele – uma aposta radical num cinema de gênero, romântico e grandioso. De forma análoga, o filme de Gibson vem propor a volta a um gênero ainda mais distante e "enterrado": o filme bíblico, religioso, não só desinteressante a princípio, como de fato proibido (nos EUA) para o público adolescente.

É neste contexto que a presença dos dois como os maiores fenômenos de bilheteria da história recente (ou de sempre) do cinema americano não pode ser vista sem interesse, sem matizes, sem estudo. Me parece pequeno colocá-los na categoria do "marketing puro" (ainda que caiba a provocação, sendo este um filme religioso: o que é a Igreja Católica senão uma genial sacada de marketing?), porque marketing sempre houve e sempre haverá, e isso não garantiu o sucesso comercial a tantos e tantos filmes feitos com este propósito.

Diminuir um filme a "violência de terceira" ou "fenômeno de marketing", simplesmente, é muito legal para quem quer vender jornal, fingindo-se (ou sendo realmente??) incapaz de autocrítica. Para quem queira tratar o cinema (seja como expressão artística, seja como fenômeno cultural) com algum interesse real ou seriedade, é preciso ir um pouco mais longe.


Eduardo Valente