ALI
Michael Mann, Ali, EUA, 2001

É patente a importância da palavra no cinema de Michael Mann. A oposição e a semelhança entre os discursos do mocinho Vincent Hanna e do bandido Neil McCauley em Fogo contra Fogo, materializada no campo/contracampo do diálogo de Al Pacino com Robert De Niro. Os limites éticos que permitem ou não ao Dr. Jeffrey Wigand (Russel Crowe) quebrar o voto de silêncio com a indústria tabagista para testemunhar sobre os males do cigarro, em O Informante, bem como o direito da CBS em divulgar tal informação, estando ela própria sob controle acionário daquela a quem acusa. Ou os diálogos imaginários que o agente do FBI Will Graham (William Petersen) trava com a Fada-dos-Dentes (Stephen Lang) na tentativa de solucionar os assassinatos por ele cometidos, em Dragão Vermelho (Manhunter, 1986), melhor adaptação de Thomas Harris para as telas. Em Ali, a força da palavra já está no título: não Cassius Clay ou Muhammad Ali, mas simplesmente Ali, mito da luta contra a discriminação racial e pelos Direitos Civis nos EUA durante os anos 60 e 70.

Frustrando as expectativas que esperavam outra cinebiografia exótica a respeito do maior pugilista de todos os tempos, Michael Mann surpreende com este híbrido estranho e fascinante, pois se Ali não deixa de representar mais uma variante do sonho americano – de como, na terra das oportunidades, pode-se controlar o próprio destino –, ele também aponta para a indissociabilidade das esferas pessoal e social, isto é, mostra de que forma a conquista da plena liberdade individual por Muhammad Ali se relaciona ao contexto político no qual o personagem se insere. Assim, Mann estrutura o filme a partir das constantes mudanças de nome de seu protagonista (em excelente atuação de Will Smith) durante a trama: de Cassius Clay para Cassius X, de Cassius X para Muhammad Ali e, finalmente, deste para apenas Ali, todas partes da evolução do boxeador rumo à sua conscientização como símbolo político, para se tornar, nas suas palavras, "não o campeão que vocês querem que eu seja, mas o campeão que eu quero ser: o campeão do povo".

Ao ser perguntado sobre os Beatles, Muhammad Ali responde que o único inteligente (aquele de óculos) disse-lhe: "quanto mais real você é, mais irreal se torna". Ou seja, a realidade do indivíduo Ali se fundamenta sobre a irrealidade do Ali mítico, de modo que, na busca pela compreensão de sua própria lenda, o pugilista progressivamente se liberta das influências que o moldaram e que o manipularam ao longo da carreira, a fim de tanto alcançar a independência pessoal quanto, invertendo os papéis, passar ele mesmo a influir na sociedade que o gerou.

São as etapas da construção mítica de Ali, e a jornada do herói para compreender a lenda na qual se transformou. De início, a revolta com a segregação racial ainda na infância, com o pai que pinta Jesus loiros e de olhos azuis, canalizada, através da amizade com Malcom X (Mario Van Peebles, que nada deve a Denzel Washington), na conversão ao islamismo que o leva de Cassius Clay a Cassius X, em repúdio ao nome escravo de seus antepassados. Em seguida, da glória de campeão mundial à decadência do cidadão que se recusa a servir no Vietnã, trajetória marcada, respectivamente, pelo apoio e pela negação da Nação do Islã ao agora Muhammad Ali, feito fantoche nas mãos de Elijah Muhammad. Por último, a volta por cima na carreira com a espetacular vitória sobre George Foreman no Zaire, onde Muhammad Ali finalmente encontra Ali, o mito, pintado nos muros da capital miserável, para se conscientizar do papel simbólico que possui: representante e voz ativa das camadas negras marginalizadas, não somente dos EUA, como também da África e do restante do mundo.

No célebre combate de 30 de outubro de 1974, Muhammad Ali vence devido à capacidade de absorver e de resistir aos golpes mais potentes de Foreman. Fora dos ringues, de Cassius Clay e Ali, é igualmente a resistência do protagonista às injustiças de seu tempo que o faz triunfar.


Paulo Ricardo de Almeida