É
patente a importância da palavra no cinema de
Michael Mann. A oposição e a semelhança
entre os discursos do mocinho Vincent Hanna e do bandido
Neil McCauley em Fogo contra Fogo, materializada
no campo/contracampo do diálogo de Al Pacino
com Robert De Niro. Os limites éticos que permitem
ou não ao Dr. Jeffrey Wigand (Russel Crowe) quebrar
o voto de silêncio com a indústria tabagista
para testemunhar sobre os males do cigarro, em O
Informante, bem como o direito da CBS em divulgar
tal informação, estando ela própria
sob controle acionário daquela a quem acusa.
Ou os diálogos imaginários que o agente
do FBI Will Graham (William Petersen) trava com a Fada-dos-Dentes
(Stephen Lang) na tentativa de solucionar os assassinatos
por ele cometidos, em Dragão Vermelho
(Manhunter, 1986), melhor adaptação
de Thomas Harris para as telas. Em Ali, a força
da palavra já está no título: não
Cassius Clay ou Muhammad Ali, mas simplesmente Ali,
mito da luta contra a discriminação racial
e pelos Direitos Civis nos EUA durante os anos 60 e
70.
Frustrando as expectativas que esperavam outra cinebiografia
exótica a respeito do maior pugilista de todos
os tempos, Michael Mann surpreende com este híbrido
estranho e fascinante, pois se Ali não
deixa de representar mais uma variante do sonho americano
– de como, na terra das oportunidades, pode-se controlar
o próprio destino –, ele também aponta
para a indissociabilidade das esferas pessoal e social,
isto é, mostra de que forma a conquista da plena
liberdade individual por Muhammad Ali se relaciona ao
contexto político no qual o personagem se insere.
Assim, Mann estrutura o filme a partir das constantes
mudanças de nome de seu protagonista (em excelente
atuação de Will Smith) durante a trama:
de Cassius Clay para Cassius X, de Cassius X para Muhammad
Ali e, finalmente, deste para apenas Ali, todas partes
da evolução do boxeador rumo à
sua conscientização como símbolo
político, para se tornar, nas suas palavras,
"não o campeão que vocês querem
que eu seja, mas o campeão que eu quero ser:
o campeão do povo".
Ao ser perguntado sobre os Beatles, Muhammad Ali responde
que o único inteligente (aquele de óculos)
disse-lhe: "quanto mais real você é,
mais irreal se torna". Ou seja, a realidade do
indivíduo Ali se fundamenta sobre a irrealidade
do Ali mítico, de modo que, na busca pela compreensão
de sua própria lenda, o pugilista progressivamente
se liberta das influências que o moldaram e que
o manipularam ao longo da carreira, a fim de tanto alcançar
a independência pessoal quanto, invertendo os
papéis, passar ele mesmo a influir na sociedade
que o gerou.
São as etapas da construção mítica
de Ali, e a jornada do herói para compreender
a lenda na qual se transformou. De início, a
revolta com a segregação racial ainda
na infância, com o pai que pinta Jesus loiros
e de olhos azuis, canalizada, através da amizade
com Malcom X (Mario Van Peebles, que nada deve a Denzel
Washington), na conversão ao islamismo que o
leva de Cassius Clay a Cassius X, em repúdio
ao nome escravo de seus antepassados. Em seguida, da
glória de campeão mundial à decadência
do cidadão que se recusa a servir no Vietnã,
trajetória marcada, respectivamente, pelo apoio
e pela negação da Nação
do Islã ao agora Muhammad Ali, feito fantoche
nas mãos de Elijah Muhammad. Por último,
a volta por cima na carreira com a espetacular vitória
sobre George Foreman no Zaire, onde Muhammad Ali finalmente
encontra Ali, o mito, pintado nos muros da capital miserável,
para se conscientizar do papel simbólico que
possui: representante e voz ativa das camadas negras
marginalizadas, não somente dos EUA, como também
da África e do restante do mundo.
No célebre combate de 30 de outubro de 1974,
Muhammad Ali vence devido à capacidade de absorver
e de resistir aos golpes mais potentes de Foreman. Fora
dos ringues, de Cassius Clay e Ali, é igualmente
a resistência do protagonista às injustiças
de seu tempo que o faz triunfar.
Paulo Ricardo de Almeida
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