ALGUÉM TEM QUE CEDER
Nancy Meyers, Something's gotta give, EUA, 2003

Nancy Meyers é uma mulher com uma missão, quanto a isso não restam dúvidas. Seu cinema é tão obcecado, exagerado, disperso e francamente tendencioso na defesa de uma tese que só resta uma constatação: Meyers é a Michael Moore do feminismo - embora, como bem nota o amigo Ruy Gardnier, se trate aqui da escola do "feminismo Marie Claire". Como comparar Nancy Meyers a Michael Moore? - poderiam perguntar os de coração mais bondoso, ainda crentes na separação do mundo da sétima arte entre, por exemplo, "cinema político" e "cinema de entretenimento". Ora, se o cinema de Moore só pode ser visto como político pela sua utilização da máquina do entretenimento, o cinema de Meyers faz o movimento oposto, mas claramente complementar: na sua aparência "divertida", é altamente político na defesa de uma visão do mundo filtrada pelo tal "marieclairismo" (uma doutrina como outra qualquer).

Senão, vejamos: como se ler de outra forma um filme que começa com uma sequência toda ela narrada com voz em "off", com imagens "proto-documentais" de figuras anônimas no meio da rua, na qual se expõe uma situação, por assim dizer, de cunho sociológico? Toda a tese da diretora está lá exposta, nesta sequência inicial, cuja relação com o resto do filme só pode ser lido com as tintas didáticas de um cinema político toscamente realizado: ali se explica qual o tema do filme e o que se discutirá depois. Muito mais monografia do que cinema de entretenimento, não? E, diga-se: não é acaso, porque o filme anterior de Meyers, Do Que as Mulheres Gostam, começava absolutamente da mesma forma - vale ou não vale falar em "estilo pessoal" e "cinema autoral"? Só que o filme anterior tinha o valor de uma monografia de graduação, enquanto este aqui discutido é sua tese de mestrado- nos assusta a possibilidade do doutorado vindouro.

E qual a tese, afinal, destes trabalhos monográficos? Bom, aí existem duas camadas a serem discutidas: a tese que a diretora pensa apresentar, e a que devemos de fato ler nas suas entrelinhas. Começando pelo mais simples: Meyers quer nos dizer que, basicamente, os homens são uns calhordas, e que só há possibilidade de mudá-los pela ação "redentora" de uma mulher especial. No filme anterior, Mel Gibson era apresentado como o famoso "pica doce" (perdão pedido aos mais pudicos), o calhorda-mor, em suma. Trata-se de uma categoria bem geral, mas deve-se lembrar que era apenas um trabalho de graduação. Gibson era o homem que não fazia idéia do que acontecia à sua volta, especialmente no que se referia a mulheres (como sua filha, sua ex-mulher, sua superior no trabalho, etc), mas pegava todas que passavam pela frente, tratando-as como "objetos".

Para além do fato do filme (bem à la Michael Moore) precisar usar com o personagem masculino os mesmos tons de clichê que o acusa de tratar as mulheres, a tese era fraca. Especialmente porque parecia esquecer que mais patético do que Gibson deveriam ser as mulheres que não resistiriam a tal troglodita. Mas, pior que a tese era sua exposição, que ao pedir uma ajuda divina para solucionar tal problema (Deus realmente não deve ter mais o que fazer...), dava a Gibson o poder de ler os pensamentos das mulheres. Ora, ora, mas que surpresa: ao ler o pensamento das mulheres, segundo Meyers, descobríamos que o que elas pensavam era ainda mais clichê do que podíamos esperar, fazendo quase valer toda a lógica do que Gibson fazia. Assim sendo, aí estava a tese que Meyers comprovava (diferente em tudo da que pensava comprovar): as mulheres são mesmo apenas aquilo que homens como Gibson pensam que elas são - mas pelo menos os homens podiam tratar elas melhor, né?

Neste trabalho de mestrado que é Alguém tem que Ceder, a coisa toda melhora um pouco. Não só a filmagem está bem mais competente, tanto na sua brincadeira com tons farsescos quanto no trabalho de mise-en-scène como um todo, como o personagem a ser redimido (agora interpretado por Jack Nicholson) ganha tintas mais complexas - o que, por conseguinte, dá ares mais dignos às mulheres que se interessam por ele. Ao invés do bobalhão machista, trata-se de um homem sensível, com capacidade incomum de compreender as almas femininas, tornando-se irresistível justamente por isso (ao invés do que supúnhamos no filme anterior: apenas a aparência física de Mel Gibson). No entanto, ele continua sofrendo de um problema na sua relação com as mulheres: não consegue se prender a apenas uma delas (no início o filme parece ser sobre a incapacidade de se relacionar com mulheres mais velhas, mas logo vemos que a questão é mesmo a monogamia). Este é seu aspecto a ser redimido, portanto: "se ele é tão fantástico, porque ele não é só meu?" Chega a ser comovente a entrega da diretora a este drama, com alguns diálogos efetivamente pungentes entre os dois personagens, e cenas de sexo bem filmadas, com humor e sem muita vergonha. Entrega esta, aliás, tornada puro cinema na cena em que a câmera rodopia num transe em torno da escritora interpretada por Keaton, que transforma toda sua dor de cotovelo em catarse criativa.

Concordando todos que a tese e sua apresentação estão bem mais interessantes, o filme parece mesmo levá-los adiante a contendo, encaminhando-nos a um aparente final muito mais "inteligente" - inclusive pela negação a uma suposta condição indefesa do gênero feminino que Meyers parece indicar muitas vezes. A personagem de Keaton consegue tornar saudavelmente sua dor de amor em vingança artística deliciosa (as cenas com a peça encenada e as piadas metalinguísticas efetivamente funcionam), e Nicholson parece "pagar o preço" (no melhor sentido, não moralista) de sua opção - a eterna condição solitária do conquistador volúvel.

No entanto, no final, Meyers manda tudo para as cucuias, em troca do mesmo ideal romântico idiótico: em Paris (de todos os lugares), Keaton e Nicholson celebram uma nova união "eterna", redenção conquistada finalmente. Não podemos considerar as implicações deste final como apenas uma demonstração de "mais um final feliz hollywoodiano" inclusive porque precisamos tentar entender porque tal final seria mais feliz que um passeio de Keaton com o personagem de Keanu Reeves pelas ruas de Paris. Precisamos colocar este desfecho (tradicionalmente o espaço onde o cineasta conclui suas idéias, ainda mais num cinema de tese como o de Meyers) dentro da idéia do "marieclairismo", do qual ela parecia escapar.

Senão, vejamos: o personagem que Keanu Reeves interpreta é o sonho de todas as mulheres. Digamos que é um Mel Gibson do filme anterior melhorado (por ter pelo menos uns 20 anos a menos): para além de simplesmente "ser Keanu Reeves" (como Mel Gibson "era Mel Gibson" no início do outro filme), ele já vem com as atualizações de software pedidas pelo filme anterior: sensível, fiel, romântico, disposto a perdoar tudo (até mesmo um bolo no primeiro encontro romântico ou a sua mulher estar claramente obcecada escrevendo uma peça sobre um outro homem que não ele). Segundo o ideário de Meyers, era praticamente uma mulher, por assim dizer. Mesmo assim, protótipo do desejo feminista-marieclaire de tornar o Homem uma Segunda Mulher, no final ele é descartado como uma uva chupada, em troca de uma "regeneração" de Nicholson - e disso não mais se fala: deixado no hotel em sua lua-de-mel, esquecido, possivelmente perdoando de novo. Ao final, Keaton trata Reeves como Gibson ou Nicholson tratavam suas mulheres antes de suas redenções - e tudo bem com isso, nos diz Meyers. Ou seja é tudo meio à toa: o que se defende aqui não é uma certa "ética" de relações, e sim um moralismo. "Precisamos recuperar os homens, nem que para isso tenhamos que agir como eles".

Para além da simples calhordice que isso implica, há que se ver um outro aspecto: o que os filmes de Meyers parecem não perceber é que o que torna Gibson irresistível no início do filme anterior, ou Nicholson neste, é que eles são quem são. Torná-los outra coisa, redimi-los, é torná-los desinteressantes. Aqui, é preciso retorna ao sempre seminal Peter Pan, de J. M. Barrie: Pan é a paixão impossível de Wendy, como de todas as mulheres (sua mãe, sua filha, sua neta) - mas nunca se pode questionar o estatuto do que Pan representa: a liberdade, a irresponsabilidade, a falta de "idade adulta" que o torna único, irresistível. Nunca Wendy pensa que Pan possa ficar com ela fora da Terra do Nunca - porque aí já não seria Pan, seria apenas mais um dos maridos que abundam no livro, e que por mais encantadores e gentis que possam ser (e podem) não são Pan.

Pois bem, aprisionar Gibson e Nicholson fora das suas Terras do Nunca nestes filmes é não ter a maturidade ou a inteligência (ou simplesmente ter o rancor descabido e irracional de uma pessoa abandonada) de perceber que fora destas eles não são mais quem são - portanto são apenas mais um, mais dois. O que torna os filmes-tese de Meyers (por mais que melhorem de um para o outro na sua arquitetura) não apenas mal intencionados nas suas conclusões, mas francamente deprimentes - porque seus finais não são as "fantasias de finais felizes" que podem nos deixar de sorrisos escancarados, e sim as ilusões dementes de quem não apenas não separa real de sonho. E, principalmente: se agarra ao sonho irrealizável como única solução para lidar com o real (fronteira esta, afinal, a que separaria sanidade de loucura). Meyers não percebe que seus filmes (como o "marieclairismo" em geral), sob a desculpa de afirmarem a Mulher, apenas reforçam a sensação de sua incapacidade de defesa não só perante homens como Nicholson e Gibson (no meio tempo, pobre do Keanu Reeves...), mas perante a vida. E, afinal, há que se acreditar que a Mulher é capaz de mais do que isso, com certeza - ou só vamos ao cinema e rimos desta derrota feminina disfarçada?


Eduardo Valente