Nancy
Meyers é uma mulher com uma missão, quanto
a isso não restam dúvidas. Seu cinema
é tão obcecado, exagerado, disperso e
francamente tendencioso na defesa de uma tese que só
resta uma constatação: Meyers é
a Michael Moore do feminismo - embora, como bem nota
o amigo Ruy Gardnier, se trate aqui da escola do "feminismo
Marie Claire". Como comparar Nancy Meyers a Michael
Moore? - poderiam perguntar os de coração
mais bondoso, ainda crentes na separação
do mundo da sétima arte entre, por exemplo, "cinema
político" e "cinema de entretenimento". Ora,
se o cinema de Moore só pode ser visto como político
pela sua utilização da máquina
do entretenimento, o cinema de Meyers faz o movimento
oposto, mas claramente complementar: na sua aparência
"divertida", é altamente político na defesa
de uma visão do mundo filtrada pelo tal "marieclairismo"
(uma doutrina como outra qualquer).
Senão, vejamos: como se ler de outra forma um
filme que começa com uma sequência toda
ela narrada com voz em "off", com imagens "proto-documentais"
de figuras anônimas no meio da rua, na qual se
expõe uma situação, por assim dizer,
de cunho sociológico? Toda a tese da diretora
está lá exposta, nesta sequência
inicial, cuja relação com o resto do filme
só pode ser lido com as tintas didáticas
de um cinema político toscamente realizado: ali
se explica qual o tema do filme e o que se discutirá
depois. Muito mais monografia do que cinema de entretenimento,
não? E, diga-se: não é acaso, porque
o filme anterior de Meyers, Do Que as Mulheres Gostam,
começava absolutamente da mesma forma - vale
ou não vale falar em "estilo pessoal" e "cinema
autoral"? Só que o filme anterior tinha o valor
de uma monografia de graduação, enquanto
este aqui discutido é sua tese de mestrado- nos
assusta a possibilidade do doutorado vindouro.
E qual a tese, afinal, destes trabalhos monográficos?
Bom, aí existem duas camadas a serem discutidas:
a tese que a diretora pensa apresentar, e a que devemos
de fato ler nas suas entrelinhas. Começando pelo
mais simples: Meyers quer nos dizer que, basicamente,
os homens são uns calhordas, e que só
há possibilidade de mudá-los pela ação
"redentora" de uma mulher especial. No filme anterior,
Mel Gibson era apresentado como o famoso "pica doce"
(perdão pedido aos mais pudicos), o calhorda-mor,
em suma. Trata-se de uma categoria bem geral, mas deve-se
lembrar que era apenas um trabalho de graduação.
Gibson era o homem que não fazia idéia
do que acontecia à sua volta, especialmente no
que se referia a mulheres (como sua filha, sua ex-mulher,
sua superior no trabalho, etc), mas pegava todas que
passavam pela frente, tratando-as como "objetos".
Para além do fato do filme (bem à la Michael
Moore) precisar usar com o personagem masculino os mesmos
tons de clichê que o acusa de tratar as mulheres,
a tese era fraca. Especialmente porque parecia esquecer
que mais patético do que Gibson deveriam ser
as mulheres que não resistiriam a tal troglodita.
Mas, pior que a tese era sua exposição,
que ao pedir uma ajuda divina para solucionar tal problema
(Deus realmente não deve ter mais o que fazer...),
dava a Gibson o poder de ler os pensamentos das mulheres.
Ora, ora, mas que surpresa: ao ler o pensamento das
mulheres, segundo Meyers, descobríamos que o
que elas pensavam era ainda mais clichê do que
podíamos esperar, fazendo quase valer toda a
lógica do que Gibson fazia. Assim sendo, aí
estava a tese que Meyers comprovava (diferente em tudo
da que pensava comprovar): as mulheres são mesmo
apenas aquilo que homens como Gibson pensam que elas
são - mas pelo menos os homens podiam tratar
elas melhor, né?
Neste trabalho de mestrado que é Alguém
tem que Ceder, a coisa toda melhora um pouco. Não
só a filmagem está bem mais competente,
tanto na sua brincadeira com tons farsescos quanto no
trabalho de mise-en-scène como um todo, como
o personagem a ser redimido (agora interpretado por
Jack Nicholson) ganha tintas mais complexas - o que,
por conseguinte, dá ares mais dignos às
mulheres que se interessam por ele. Ao invés
do bobalhão machista, trata-se de um homem sensível,
com capacidade incomum de compreender as almas femininas,
tornando-se irresistível justamente por isso
(ao invés do que supúnhamos no filme anterior:
apenas a aparência física de Mel Gibson).
No entanto, ele continua sofrendo de um problema na
sua relação com as mulheres: não
consegue se prender a apenas uma delas (no início
o filme parece ser sobre a incapacidade de se relacionar
com mulheres mais velhas, mas logo vemos que a questão
é mesmo a monogamia). Este é seu aspecto
a ser redimido, portanto: "se ele é tão
fantástico, porque ele não é só
meu?" Chega a ser comovente a entrega da diretora a
este drama, com alguns diálogos efetivamente
pungentes entre os dois personagens, e cenas de sexo
bem filmadas, com humor e sem muita vergonha. Entrega
esta, aliás, tornada puro cinema na cena em que
a câmera rodopia num transe em torno da escritora
interpretada por Keaton, que transforma toda sua dor
de cotovelo em catarse criativa.
Concordando todos que a tese e sua apresentação
estão bem mais interessantes, o filme parece
mesmo levá-los adiante a contendo, encaminhando-nos
a um aparente final muito mais "inteligente" - inclusive
pela negação a uma suposta condição
indefesa do gênero feminino que Meyers parece
indicar muitas vezes. A personagem de Keaton consegue
tornar saudavelmente sua dor de amor em vingança
artística deliciosa (as cenas com a peça
encenada e as piadas metalinguísticas efetivamente
funcionam), e Nicholson parece "pagar o preço"
(no melhor sentido, não moralista) de sua opção
- a eterna condição solitária do
conquistador volúvel.
No entanto, no final, Meyers manda tudo para as cucuias,
em troca do mesmo ideal romântico idiótico:
em Paris (de todos os lugares), Keaton e Nicholson celebram
uma nova união "eterna", redenção
conquistada finalmente. Não podemos considerar
as implicações deste final como apenas
uma demonstração de "mais um final feliz
hollywoodiano" inclusive porque precisamos tentar entender
porque tal final seria mais feliz que um passeio de
Keaton com o personagem de Keanu Reeves pelas ruas de
Paris. Precisamos colocar este desfecho (tradicionalmente
o espaço onde o cineasta conclui suas idéias,
ainda mais num cinema de tese como o de Meyers) dentro
da idéia do "marieclairismo", do qual ela parecia
escapar.
Senão, vejamos: o personagem que Keanu Reeves
interpreta é o sonho de todas as mulheres. Digamos
que é um Mel Gibson do filme anterior melhorado
(por ter pelo menos uns 20 anos a menos): para além
de simplesmente "ser Keanu Reeves" (como Mel Gibson
"era Mel Gibson" no início do outro filme), ele
já vem com as atualizações de software
pedidas pelo filme anterior: sensível, fiel,
romântico, disposto a perdoar tudo (até
mesmo um bolo no primeiro encontro romântico ou
a sua mulher estar claramente obcecada escrevendo uma
peça sobre um outro homem que não ele).
Segundo o ideário de Meyers, era praticamente
uma mulher, por assim dizer. Mesmo assim, protótipo
do desejo feminista-marieclaire de tornar o Homem uma
Segunda Mulher, no final ele é descartado como
uma uva chupada, em troca de uma "regeneração"
de Nicholson - e disso não mais se fala: deixado
no hotel em sua lua-de-mel, esquecido, possivelmente
perdoando de novo. Ao final, Keaton trata Reeves como
Gibson ou Nicholson tratavam suas mulheres antes de
suas redenções - e tudo bem com isso,
nos diz Meyers. Ou seja é tudo meio à
toa: o que se defende aqui não é uma certa
"ética" de relações, e sim um moralismo.
"Precisamos recuperar os homens, nem que para isso tenhamos
que agir como eles".
Para além da simples calhordice que isso implica,
há que se ver um outro aspecto: o que os filmes
de Meyers parecem não perceber é que o
que torna Gibson irresistível no início
do filme anterior, ou Nicholson neste, é que
eles são quem são. Torná-los outra
coisa, redimi-los, é torná-los desinteressantes.
Aqui, é preciso retorna ao sempre seminal Peter
Pan, de J. M. Barrie: Pan é a paixão impossível
de Wendy, como de todas as mulheres (sua mãe,
sua filha, sua neta) - mas nunca se pode questionar
o estatuto do que Pan representa: a liberdade, a irresponsabilidade,
a falta de "idade adulta" que o torna único,
irresistível. Nunca Wendy pensa que Pan possa
ficar com ela fora da Terra do Nunca - porque aí
já não seria Pan, seria apenas mais um
dos maridos que abundam no livro, e que por mais encantadores
e gentis que possam ser (e podem) não são
Pan.
Pois bem, aprisionar Gibson e Nicholson fora das suas
Terras do Nunca nestes filmes é não ter
a maturidade ou a inteligência (ou simplesmente
ter o rancor descabido e irracional de uma pessoa abandonada)
de perceber que fora destas eles não são
mais quem são - portanto são apenas mais
um, mais dois. O que torna os filmes-tese de Meyers
(por mais que melhorem de um para o outro na sua arquitetura)
não apenas mal intencionados nas suas conclusões,
mas francamente deprimentes - porque seus finais não
são as "fantasias de finais felizes" que podem
nos deixar de sorrisos escancarados, e sim as ilusões
dementes de quem não apenas não separa
real de sonho. E, principalmente: se agarra ao sonho
irrealizável como única solução
para lidar com o real (fronteira esta, afinal, a que
separaria sanidade de loucura). Meyers não percebe
que seus filmes (como o "marieclairismo" em geral),
sob a desculpa de afirmarem a Mulher, apenas reforçam
a sensação de sua incapacidade de defesa
não só perante homens como Nicholson e
Gibson (no meio tempo, pobre do Keanu Reeves...), mas
perante a vida. E, afinal, há que se acreditar
que a Mulher é capaz de mais do que isso, com
certeza - ou só vamos ao cinema e rimos desta
derrota feminina disfarçada?
Eduardo Valente
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