33
Kiko Goifman, Brasil, 2003

Não há novidade no uso da primeira pessoa em 33. Muitos documentários no mundo e alguns no Brasil já usaram o expediente. Uns com mais êxito, outros com menos, muitos sem êxito algum. O grande problema desse recurso narrativo é atolar-se no egocentrismo, sem haver, na exploração da subjetividade, algo de interessante para resultar em assunto e narrativa de cinema. Ou esbarrar em um limite contrário, ou seja, no pudor de exibir-se para a câmera, não apenas a imagem, mas sobretudo o lado pessoal em questão. Um exemplo recente, Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut, tropeçou no segundo caso. Ao enfocar a busca por um documento para se ganhar cidadania húngara, a diretora, empregando-se como ponto de partida temático, mas não como tema e sujeito de sua narrativa, expôs as questões referentes ao processo burocrático e ao lado histórico da imigração, sem revelar qual sua posição enquanto herdeira da "hungaridade". Como já se disse na Contracampo, talvez tenha lhe sobrado pudor, ou faltado rigor no conceito, talvez até um pouco das duas razões. A primeira pessoa deixa ali de ser dramática e torna-se só recurso.

No caso de 33, a primeira pessoa de Kiko Goifman, diretor de origem mineira e paulistano por opção profissional, é tema e forma, não apenas um pretexto narrativo executado pela metade. E a auto-revelação de Goifman, a pretexto de investigar o paradeiro da mulher por quem foi gerado e a quem nem chegou a conhecer, é só uma armadilha, sem a pretensão de se vender como a verdade de um sujeito diante de seu material. Porque a verdade, no filme e para o diretor, é sempre fugidia. Enquanto entrevista detetives, médicos, tia, mãe adotiva e sua babá, a construção progressiva de certezas, diante de versões contraditórias e omissões de evidências, resulta em um edifício de areia. A única verdade de Goifman, a única possível e a única praticada, está na desconfiança. 33 é um documentário que, ao desconfiar dos entrevistados, desconfia de si mesmo. Não é apenas uma opção ao documentário de pretensão objetiva, totalizador, arquivista, baseado em pesquisas dadas como última palavra sobre algum assunto, mas uma falta de opção. Estamos em um escancaramento da crise do "gênero".

A permanente auto-desconfiança, explicitada na narração em of e em primeira pessoa do diretor, é mais ampla que pode aparentar. Não se trata de um diretor desconfiado de tudo, não apenas isso, mas de um diretor que estimula a desconfiança nele mesmo. É impossível saber se a busca da mãe é autêntica, uma questão real para o diretor fora do filme, ou se é sobretudo pretexto para a narrativa. Pode haver em suas falas um tanto de representação. Elas foram escritas e lidas, afinal, depois da captação das imagens. Essa penumbra sobre as motivações e a prática constitui o motor e o fôlego de 33. Não por acaso, e não por maneirismo ou culto ao gênero, a aparência é de um noir. O diálogo com o gênero se dá, sobretudo, por sua origem no expressionismo. Em uma vertente e outra, impera a evidência enganosa. O dito e o mostrado são menos documentos e mais despistes, pois revelam a impossibilidade de se ler uma superfície.

Ao contrário da maioria dos noir, que descortinam a verdade por trás dos enganos e a luz por trás das cores escuras, Goifman insiste nas sombras. E não o faz apenas como postura no trato do material, mas também no tratamento formal adotado. Imagens em preto e branco, música tradutora de incertezas do duo Tetine, trechos desfocados. Tudo visa a imprecisão. Mas uma imprecisão precisa, com seleção feliz de trechos de entrevistas, com escolha caprichada de ângulos, de texturas, de soluções cromáticas. Temos então uma tensão entre o real captado e a ficção modeladora do material. Assume-se a estética como manipulação e a associação dela com o conteúdo. Goifman comenta sobre o processo do filme no próprio filme e chega a verbalizar sua visualização do plano final perfeito para 33.

Cabe por isso uma aproximação, apenas para se propor a distância, com o modelo dos reality shows. É uma tentação para lá de fácil a comparação com este formato, mas compreensível em um mundo de representações em que as aparências embotam a arquitetura de suas construções, criando o império da fachada e enterrando os processos. Coloquemos então as fronteiras entre um objeto e outro. Os reality shows são elaborados de forma a se transmitir, a partir da edição, a sensação de vermos uma dramaturgia em fragmentos necessariamente modelados, sem sentido em si, mas de forma a não deixar essa modelagem audiovisual, de forma alguma, sabotar a impressão de novela ao vivo e sem interferências. Vende-se nesses programas uma idéia de um realismo renovado, no qual a construção não se dá fora da narrativa, por diretores e editores, mas pelos próprios personagens incumbidos de se auto-representar. Em 33, temos o contrário. Toda possibilidade de impressão de real sem interferência vai sendo pouco a pouco desmontada por meio do escancaramento dos artifícios de manipulação. Goifman faz questão de salientar que, como ator ou diretor, personagem ou autor, está criando sobretudo uma obra, não a verdade dos fatos sobre si mesmo.

Ainda sobre a primeira pessoa, quando o diretor-personagem é chamado a se colocar, a expor sua posição, ele não tem nenhum pudor. Emite opiniões pouco lisonjeiras sobre as colocações de dois entrevistados, questiona o depoimento de uma tia, explora a incoerência da afirmação de uma vidente-queromancista. Também não têm receio de se exibir para a câmera, embora o faça com parcimônia, inclusive na decisão de se auto impor limites. Goifman só mostra no filme o que pode ser interessante para o filme. O que é importante, no julgamento dele, só para ele, espertamente, fica de fora. Essa é sua forma de extrair de sua história pessoal algo de alcance maior, sem transformar o filmar em uma atitude narcízica. Uma forma de atenuar a gravidade de sua questão é o contraste da narração em forma de diário policial com as imagens urbanas e noturnas. O signo metrópole, ainda que vazia, solitária na madrugada, ainda que povoada, relativiza tudo. A história de Goifman é apenas uma história, não a história, algo perceptível diante de imagens de prédios. Muitas outras histórias podem morar ali.

A opção por contar a sua, e não a de outros, é um corte na produção recente. Essa é obstinada em dar voz ao outro, por mais que o outro, como sempre lembra Jean-Claude Bernadet, esteja mediado pelo diretor, seja nas perguntas, seja nas edição. Os outros de 33 também falam. São ouvidos. Mas não falam de si, nem de seu problema. Falam da questão de Goifman. E por meio dessas falas surge uma porta de entrada para questões mais horizontais, como a atividade dos detetives e das parteiras, como a tradição das famílias promoverem viagens para as grávidas solteiras, até elas darem a luz e deixarem o rebento com alguém. Goifman faz parte deste contexto que o ultrapassa sem deixar de levá-lo junto. Está dentro e fora desse universo. Filme de dentro e de fora simultaneamente. Mas a questão dele não é a maior questão. A insistência nessa particularidade é importante, até porque gere talvez a melhor imagem do filme. Goifman está em um quarto de hotel, no 19º andar, como ficamos sabendo pela narração do diretor momentos antes. A câmera enquadra a janela do ambiente. Lá fora, Belo Horizonte, vista do alto. Na janela, o reflexo do rosto de Goifman. A imagem do rosto funde-se com a da cidade vazia. O eu narrador coloca-se dentro de um conjunto de outros "eus" ausentes. Poucos planos foram tão simples e felizes nos últimos anos. Poucos documentários foram tão bem sucedidos em sua proposta.


Cléber Eduardo