Não
há novidade no uso da primeira pessoa em 33.
Muitos documentários no mundo e alguns no Brasil
já usaram o expediente. Uns com mais êxito,
outros com menos, muitos sem êxito algum. O grande
problema desse recurso narrativo é atolar-se
no egocentrismo, sem haver, na exploração
da subjetividade, algo de interessante para resultar
em assunto e narrativa de cinema. Ou esbarrar em um
limite contrário, ou seja, no pudor de exibir-se
para a câmera, não apenas a imagem, mas
sobretudo o lado pessoal em questão. Um exemplo
recente, Passaporte Húngaro, de Sandra
Kogut, tropeçou no segundo caso. Ao enfocar a
busca por um documento para se ganhar cidadania húngara,
a diretora, empregando-se como ponto de partida temático,
mas não como tema e sujeito de sua narrativa,
expôs as questões referentes ao processo
burocrático e ao lado histórico da imigração,
sem revelar qual sua posição enquanto
herdeira da "hungaridade". Como já
se disse na Contracampo, talvez tenha lhe sobrado pudor,
ou faltado rigor no conceito, talvez até um pouco
das duas razões. A primeira pessoa deixa ali
de ser dramática e torna-se só recurso.
No caso de 33, a primeira pessoa de Kiko Goifman,
diretor de origem mineira e paulistano por opção
profissional, é tema e forma, não apenas
um pretexto narrativo executado pela metade. E a auto-revelação
de Goifman, a pretexto de investigar o paradeiro da
mulher por quem foi gerado e a quem nem chegou a conhecer,
é só uma armadilha, sem a pretensão
de se vender como a verdade de um sujeito diante de
seu material. Porque a verdade, no filme e para o diretor,
é sempre fugidia. Enquanto entrevista detetives,
médicos, tia, mãe adotiva e sua babá,
a construção progressiva de certezas,
diante de versões contraditórias e omissões
de evidências, resulta em um edifício de
areia. A única verdade de Goifman, a única
possível e a única praticada, está
na desconfiança. 33 é um documentário
que, ao desconfiar dos entrevistados, desconfia de si
mesmo. Não é apenas uma opção
ao documentário de pretensão objetiva,
totalizador, arquivista, baseado em pesquisas dadas
como última palavra sobre algum assunto, mas
uma falta de opção. Estamos em um escancaramento
da crise do "gênero".
A permanente auto-desconfiança, explicitada na
narração em of e em primeira pessoa do
diretor, é mais ampla que pode aparentar. Não
se trata de um diretor desconfiado de tudo, não
apenas isso, mas de um diretor que estimula a desconfiança
nele mesmo. É impossível saber se a busca
da mãe é autêntica, uma questão
real para o diretor fora do filme, ou se é sobretudo
pretexto para a narrativa. Pode haver em suas falas
um tanto de representação. Elas foram
escritas e lidas, afinal, depois da captação
das imagens. Essa penumbra sobre as motivações
e a prática constitui o motor e o fôlego
de 33. Não por acaso, e não por
maneirismo ou culto ao gênero, a aparência
é de um noir. O diálogo com o gênero
se dá, sobretudo, por sua origem no expressionismo.
Em uma vertente e outra, impera a evidência enganosa.
O dito e o mostrado são menos documentos e mais
despistes, pois revelam a impossibilidade de se ler
uma superfície.
Ao contrário da maioria dos noir, que
descortinam a verdade por trás dos enganos e
a luz por trás das cores escuras, Goifman insiste
nas sombras. E não o faz apenas como postura
no trato do material, mas também no tratamento
formal adotado. Imagens em preto e branco, música
tradutora de incertezas do duo Tetine, trechos desfocados.
Tudo visa a imprecisão. Mas uma imprecisão
precisa, com seleção feliz de trechos
de entrevistas, com escolha caprichada de ângulos,
de texturas, de soluções cromáticas.
Temos então uma tensão entre o real captado
e a ficção modeladora do material. Assume-se
a estética como manipulação e a
associação dela com o conteúdo.
Goifman comenta sobre o processo do filme no próprio
filme e chega a verbalizar sua visualização
do plano final perfeito para 33.
Cabe por isso uma aproximação, apenas
para se propor a distância, com o modelo dos reality
shows. É uma tentação para
lá de fácil a comparação
com este formato, mas compreensível em um mundo
de representações em que as aparências
embotam a arquitetura de suas construções,
criando o império da fachada e enterrando os
processos. Coloquemos então as fronteiras entre
um objeto e outro. Os reality shows são
elaborados de forma a se transmitir, a partir da edição,
a sensação de vermos uma dramaturgia em
fragmentos necessariamente modelados, sem sentido em
si, mas de forma a não deixar essa modelagem
audiovisual, de forma alguma, sabotar a impressão
de novela ao vivo e sem interferências. Vende-se
nesses programas uma idéia de um realismo renovado,
no qual a construção não se dá
fora da narrativa, por diretores e editores, mas pelos
próprios personagens incumbidos de se auto-representar.
Em 33, temos o contrário. Toda possibilidade
de impressão de real sem interferência
vai sendo pouco a pouco desmontada por meio do escancaramento
dos artifícios de manipulação.
Goifman faz questão de salientar que, como ator
ou diretor, personagem ou autor, está criando
sobretudo uma obra, não a verdade dos fatos sobre
si mesmo.
Ainda sobre a primeira pessoa, quando o diretor-personagem
é chamado a se colocar, a expor sua posição,
ele não tem nenhum pudor. Emite opiniões
pouco lisonjeiras sobre as colocações
de dois entrevistados, questiona o depoimento de uma
tia, explora a incoerência da afirmação
de uma vidente-queromancista. Também não
têm receio de se exibir para a câmera, embora
o faça com parcimônia, inclusive na decisão
de se auto impor limites. Goifman só mostra no
filme o que pode ser interessante para o filme. O que
é importante, no julgamento dele, só para
ele, espertamente, fica de fora. Essa é sua forma
de extrair de sua história pessoal algo de alcance
maior, sem transformar o filmar em uma atitude narcízica.
Uma forma de atenuar a gravidade de sua questão
é o contraste da narração em forma
de diário policial com as imagens urbanas e noturnas.
O signo metrópole, ainda que vazia, solitária
na madrugada, ainda que povoada, relativiza tudo. A
história de Goifman é apenas uma história,
não a história, algo perceptível
diante de imagens de prédios. Muitas outras histórias
podem morar ali.
A opção por contar a sua, e não
a de outros, é um corte na produção
recente. Essa é obstinada em dar voz ao outro,
por mais que o outro, como sempre lembra Jean-Claude
Bernadet, esteja mediado pelo diretor, seja nas perguntas,
seja nas edição. Os outros de 33
também falam. São ouvidos. Mas não
falam de si, nem de seu problema. Falam da questão
de Goifman. E por meio dessas falas surge uma porta
de entrada para questões mais horizontais, como
a atividade dos detetives e das parteiras, como a tradição
das famílias promoverem viagens para as grávidas
solteiras, até elas darem a luz e deixarem o
rebento com alguém. Goifman faz parte deste contexto
que o ultrapassa sem deixar de levá-lo junto.
Está dentro e fora desse universo. Filme de dentro
e de fora simultaneamente. Mas a questão dele
não é a maior questão. A insistência
nessa particularidade é importante, até
porque gere talvez a melhor imagem do filme. Goifman
está em um quarto de hotel, no 19º andar, como
ficamos sabendo pela narração do diretor
momentos antes. A câmera enquadra a janela do
ambiente. Lá fora, Belo Horizonte, vista do alto.
Na janela, o reflexo do rosto de Goifman. A imagem do
rosto funde-se com a da cidade vazia. O eu narrador
coloca-se dentro de um conjunto de outros "eus"
ausentes. Poucos planos foram tão simples e felizes
nos últimos anos. Poucos documentários
foram tão bem sucedidos em sua proposta.
Cléber Eduardo
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