Quando
a TV norte-americana passou a ter canais de notícia
24 horas por dia, isso com a Guerra Fria ainda em curso,
parecia responder a um estado de alerta permanente,
à necessidade de cobrir um perigo constante,
que a qualquer momento poderia eclodir. A lógica
MAD (Mutually Assured Destruction) – pela qual ficava
estabelecido que se um dos lados ataca nuclearmente
o outro, este automaticamente responde e os dois são
destruídos – não assegurava a dissuasão
nuclear de forma irrestrita: restava o fator surpresa,
a possibilidade de algo totalmente fora do previsível
ou do imaginável acontecer e tornar a catástrofe
inevitável. Uma vez que o mundo corria esse risco,
de um desastre monumental e brusco, ele não mais
comportava o tempo de elaboração de uma
matéria jornalística – seria uma notícia
de urgência, sem roteiro e sem decoro. Só
mesmo um canal 24 horas poderia dar a notícia
do fim do mundo.
Terminada a Guerra Fria, a paranóia nuclear esmaeceu.
Agora praticamente só um dos lados possui o poder
de destruição em massa – e o povo que
o sustenta não é de índole suicida.
Se não há antagonismo à altura,
não há medo. Certo? Como todos obviamente
sabem, o raciocínio de modo algum se aplica à
situação por que passa o mundo (vide incidente
recente em Madri – aliás, cabe aqui um breve
comentário sobre a matéria exibida no
Fantástico daquela semana: desde o episódio
de Iñarritú para o filme 11 de Setembro
que não se via tão nefasta incursão
numa estética de choque, seguida de um tom melodramático
que só agravou a estranheza). Com a perda da
nitidez do inimigo (interno? externo? – as autoridades
norte-americanas insistem na segunda opção,
mas no fundo não têm tanta certeza assim...),
e sua infiltração por toda parte, cai
a crença no ideal de nação ordenada,
segura, cuja estabilidade política e econômica
seria o suficiente para a manutenção da
paz. O destaque, naturalmente, fica com a grande potência
mundial em foco, os EUA, que depois do 11 de setembro
veio recrudescendo uma política de caça
ao Terror (sim, é com letra maiúscula
que os americanos sempre se referem ao Mal) e de afirmação
da sua posição de "sozinhos no mundo".
O mais curioso dessa postura atual, e de toda a base
da doutrina Bush (combater os inimigos em potencial
antes mesmo que eles se manifestem, legitimar a guerra
preventiva), é que ela contradiz o establishment
na medida em que se sustenta na atitude liberal que
ele próprio tanto condena: a vitimização
como modelo de autoridade. Cabe agora à nação
que foi vitimada, aos olhos e câmeras de todo
o mundo, falar e agir de uma posição de
autoridade (incontestável) e pôr em prática
o revide que lhe é de direito: é mais
ou menos assim que funciona o programa preventivo do
governo Bush, tão repleto de paradoxos quanto
de arbitrariedades, e que parece sempre afirmar que,
passado o idílio delirante do governo Clinton,
é hora de voltar à realidade – o inimigo
bateu à porta.
De tão radical que foi o gesto, o ataque ao World
Trade Center não só acordou os americanos
de um sonho de consumo que ganhara novas cores (e efeitos
semi-hipnóticos) após o incremento econômico
dos anos 90, mas os mergulhou numa vigília interminável,
numa jornada sem descanso. Justamente aí reside
a substância central da série televisiva
24 Horas: em três temporadas, três
inimigos do Estado – três ameaças fatais.
Nesse contexto, tudo deve ser vigiado simultaneamente,
e são eliminadas as pausas para descanso. Por
aí caminha a narrativa e até o visual
de 24 Horas, com suas imagens tremidas, seus
enquadramentos sujos (não raro claustrofóbicos)
e sua incessante variação de ponto de
vista (a uma realidade instável e sua multiplicidade
de eventos deve corresponder uma imagem confusa e saturada
e uma narrativa fragmentada em vários núcleos).
Expressão mais bem acabada e direta do "pancinema
transpolítico" gerado pela abertura para
o imprevisível a partir da era nuclear, 24
Horas traduz de modo claro e concentrado a paranóia
norte-americana reativada pelo 11 de setembro.
Em ano de eleição nos EUA, o desdobramento
social da série criada por Joel Surnow e Robert
Cochran se reforça: se todo o programa político
de Bush pautou-se exclusivamente no combate ao inimigo
externo – o que o torna um governo alimentado e movimentado
pela ação terrorista e sua conseqüente
lógica de medo e retaliação –,
em hipótese alguma pode soar aleatória
a escolha temática e sua aplicação
na ficção televisiva que mais repercutiu
ao longo desse governo. Com sua terceira temporada correspondendo
ao último ano de presidência de David Palmer
(na primeira temporada, ainda candidato) e sua tentativa
de reeleição, a série se assume
como espelho ficcional do presente, como sua reflexão
imediata, uma cobertura "24 horas" da América
atual, a América que nunca dorme. Nesse panorama,
não sobra muito tempo para relações
afetivas – os dramas amorosos e familiares de 24
Horas se insinuam nos intervalos dos problemas "maiores"
da nação. O presidente Palmer, em conflito
por conta das inclinações claramente humanistas
com que os autores da série o tingiram (ele é
uma espécie de produto moderno do ideal liberal
norte-americano atirado ao ninho de cobras, ou falcões,
que é a América de hoje), está
sempre tendo de enfrentar a inevitabilidade de sacrificar
o indivíduo (leia-se Jack Bauer, personagem de
Kiefer Sutherland) em prol do coletivo (o país
inteiro ameaçado por uma bomba nuclear ou por
um vírus mortal). Como disse Jean-Sébastien
Chauvin: "Essa articulação do individual
e do coletivo sempre foi uma das pedras angulares do
cinema americano (basta pensar em Nascimento de uma
Nação de Griffith) mas ela é
trazida a um grau de incandescência que somente
uma matéria folhetinesca, diante da complexidade
do que está em jogo, parece poder autorizar"
(cf. Cahiers du Cinéma nº 581, texto "L’Amérique
ne dort jamais"). O tom da série é
propositalmente exagerado, não poupando alguns
atores de interpretações que beiram a
canastrice permanente. Um relatório-folhetim
de um dia de trabalho pesado. A série faz questão
de obrigar a realidade política a se acomodar
ao esquema funcional da narrativa de ação,
e nunca o contrário. Desse modo, a vida política
dos EUA é enquadrada sem o menor pudor como se
tratando de um filme de aventura do tipo "adrenalina
máxima" (e uma das coisas que o 11 de setembro
fez não foi justamente recolocar a questão
sobre o que vem primeiro, se a realidade ou a ficção?).
O lema da América retratada em 24 Horas
é simples e direto: "Não pense, aja!".
O humano precisa ceder espaço ao político.
A gratidão e a simpatia de David Palmer por Jack
Bauer deve ceder espaço à decisão
estratégica do presidente da república
de autorizar o disparo contra um agente federal de modo
a garantir o sucesso da operação de segurança
pública. E Jack está disposto a tamanho
sacrifício. Quem acompanhou a segunda temporada
certamente lembra dele de joelhos no chão – posição
de sacrifício par excellence – ameaçado
pela metralhadora de Nina Meyers (que no passado já
assassinara a esposa de Jack), aliada de terroristas
internacionais que detinha a informação
sobre o dispositivo nuclear que seria detonado em Los
Angeles. Ela pede para entrar em contato direto com
o presidente e estabelece como única condição
para a entrega da informação o perdão
oficial antecipadamente pelo assassinato de Jack Bauer.
Como sempre contra a parede, Palmer aceita a condição,
mas deixando escapar uma lágrima de tristeza
por Jack, que o tranqüiliza afirmando ser aquela
a opção correta e acatando a condição
de sacrificado. Afinal de contas, "a prova da verdadeira
fidelidade ao Líder não é o fato
de se estar disposto a receber uma bala atirada contra
ele; acima disso, é necessário estar pronto
a receber uma bala atirada por ele – aceitar
ser abandonado ou até sacrificado por ele em
nome de objetivos mais altos" (Slavoj Zizek no
livro Bem-vindo ao Deserto do Real!, São
Paulo: Boitempo Editorial, 2003).
A série enreda um embate que jamais abandona
a oposição nacional/estrangeiro, é
verdade, mas que não nega um lado – tão
americano quanto a Guerra de Secessão pôde
ser – fratricida (como no confronto, na segunda temporada,
entre as irmãs Kate e Marie Warner, esta última
envolvida com a rede terrorista liderada pelo árabe
Syed Ali). A família em 24 Horas é
o local de assimilação dos valores conservadores,
mas isso não a impede de ser também um
casulo de interesses divergentes e uma base de lançamento
para traidores da pátria. A sensação
de que não se pode confiar em ninguém
e de que a face do inimigo é não mais
prontamente identificável, aspecto constante
nos atuais filmes americanos de investigação,
condensa boa parte do conteúdo. É o mal
infiltrado em qualquer parte, mesmo nos altos escalões
do governo. Quando Jack diz a Marie que no fundo ela
não quer ir até o fim e deixar que milhões
de inocentes morram, ela responde imediatamente: "Ninguém
é inocente neste país". Por mais
que a caracterização de Marie não
deixe dúvidas quanto à sua posição
de vilã dentro da intriga, é com frases
fortes como essa que o seriado constrói seu subsolo
de questionamentos em relação à
idéia de nação unanimista, potente
e paternalista – cujo pilar de sustentação
é a violência contra o "outro"
– que permeia o discurso oficial norte-americano mais
típico. Os focos de dissidência podem vir
de dentro (da família, do governo, do casamento,
da CIA). Não há no seriado qualquer forma
de legitimação das ações
anti-americanistas, tampouco uma mão na (má)
consciência: há simplesmente o presente
em pauta, com tudo que ele pode carregar de idiossincrasia
e indeterminabilidade.
***
Foi no cinema que se desenvolveu a narrativa de ação
full time que inspirou o formato elevado à
potência máxima em 24 Horas. Fundado
em princípios de instabilidade, multiplicidade
e claustrofobia, o seriado busca construir com a câmera
na mão um misto de reportagem televisiva (em
seu extremo de impacto visual, ou seja, a cobertura
de uma guerra) e filme de aventura à John McTiernan,
tendo Duro de Matar - A Vingança como
"piloto" (um herói branco e um herói
negro, um grupo terrorista internacional, uma bomba
a ser encontrada, uma jornada contra o tempo). No percurso
de Jack Bauer põe-se em jogo uma avalanche de
eventos que remete também ao Hitchcock de Intriga
Internacional, por conta do repertório de
estratégias do protagonista: disfarçar-se,
passar por inimigo, mentir para conseguir um meio de
transporte rápido, fugir de um carro, ou de um
helicóptero, ou de um avião. Mas a base
é mesmo o McTiernan de Duro de Matar e
do recente Violação de Conduta:
adotar um disfarce e derrotar o inimigo no seu próprio
nicho, fazendo-o involuntariamente se entregar.
A dinâmica de tempo real mobilizada pela série
é bastante atraente, uma vez que a narrativa
tanto não comporta elipses quanto elimina tempos
mortos e o resultado passa a milhas da obviedade – o
que não é nada simples, bastando lembrar
que outras propostas do gênero chafurdaram em
esterilidade formal e flacidez narrativa antes que pudessem
despertar o interesse que 24 Horas desperta (Timecode
encabeçando essa lista negra). A imobilidade
dos rostos é a única forma de estancar
o tempo em 24 Horas, sua nesga de inércia
interina. E, de fato, a cena de dois aviões colidindo
contra o WTC, num primeiro momento, apenas paralisa
o pensamento, choca. A reação só
pode vir depois. À exceção de agentes
supertreinados ou terroristas igualmente "capazes",
os personagens de 24 Horas só reagem num
segundo momento, passado o pânico. Assim opera
a construção dramática mais recorrente
de 24 Horas: uma frase ou um acontecimento de
impacto é sempre seguido de um rosto imóvel,
olhar arregalado, e um movimento em zoom, a câmera
sempre oscilando, nunca posicionada num suporte estável.
Cada frase do diálogo implica uma solução
de mise-en-scène (McTiernan outra vez
é a referência obrigatória). Depois
a ação se desenrola, o tempo reflui –
e embora o counter apareça constantemente
na tela, com os segundos avançando, objetivamente
é sempre uma contagem regressiva, uma corrida
contra o tempo. Interessante como o próprio conceito
da série obstrui a passagem de alguns tiques
nervosos, verdadeiros atalhos estéticos contemporâneos,
de investidas realistas, a exemplo dos jump cuts
intermitentes que acompanham onze entre dez filmes
com câmera na mão e abordagem aos moldes
realísticos pós-dogma 95. Não há
elipse possível, por menor que seja. 24 Horas
é tela(-tempo) total, o que justifica seu admirável
uso do split-screen.
Continuidade do tempo e fratura do indivíduo:
ainda que Jack Bauer congregue o patriotismo, a convicção
missionária e o sentimento paterno que o herói
tradicional deve possuir, pouco a pouco se abrem fissuras
em sua personalidade. A cada temporada ele recebe um
golpe desestabilizador, o que teve sua primeira expressão
estrondosa com a morte traumática de sua esposa
ao término da primeira temporada. A culminação
desse mecanismo de desestabilização do
herói nos últimos episódios aqui
exibidos reside na suspeita de que ele esteja viciado
em heroína. Bauer caminha cada vez mais na direção
de um "herói fissurado" (no sentido
de alguém tanto perturbado por drogas como acometido
por rachaduras morais). E não seria justamente
um estado de torpor por tempo indeterminado o que define
e viabiliza o projeto de hiper-atividade e hiper-consumo
do capitalismo em sua fase tardia? Não é
um estado de transição entre o sono e
a vigília, quando os pensamentos se tornam acromegálicos
e variam entre o onírico absoluto (ideal para
o consumo) e uma lógica que de tão lógica
pouco se vê no dia-a-dia – uma lógica obscena
(ideal para a guerra)? O cinema catástrofe tratou
de dar asas a fantasias de perigos absurdos das nações
bem-estabelecidas e com poucas dificuldades materiais
(e por isso mesmo tendo de fantasiar a destruição
vinda de fenômenos da natureza ou de falhas de
segurança a princípio inimagináveis),
mas os pesadelos catastróficos dessa mesma sociedade
hoje são habitados por fatos consumados. A brincadeira
antiga era especular sobre as possíveis falhas
de um sistema aparentemente perfeito. A nova consiste
em varrer escombros verdadeiros.
Se as primeiras temporadas foram praticamente catárticas
em relação aos dois principais traumas
da história recente dos EUA (o assassinato de
Kennedy e o 11 de setembro de 2001), o terceiro ano
de 24 Horas revela um vigoroso apego ao que ainda
está por ser escrito, parecendo preparar seu
roteiro ficcional em paralelo à realidade. Nada
mais justo, num mundo em que o "prazer pelo real"
(principal característica do século XX,
segundo Alain Badiou) transfigurou-se em ausência
da realidade em si e primazia do "semblante"
(Zizek). A realidade está agora entre aspas (do
meio acadêmico à mais livre publicação,
há um desconforto generalizado quando do referir-se
ao "real" – cá está ele entre
aspas novamente –, este soando por demais ingênuo
se tomado ao pé da letra). 24 Horas é
o presente da América filtrado pelo imaginário
cinematográfico que lhe é tão peculiar;
uma série que passa no canal Fox (cujo elevado
nível de audiência é indiscutível)
e não titubeia em tratar de temas urgentes com
urgência, afirmar que o inimigo não é
necessariamente o estrangeiro, encarar de frente a conjuntura
de seu país, assumindo sua face paranóica
e insone e corajosamente projetando seu destino – a
terceira temporada é a mais dark até
agora – muito menos na luz do que nas sombras. E tudo
isso sem soar hipócrita e sem abrir mão
do heroísmo.
(A continuar)
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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