24 Horas no ar
Joel Surnow e Robert Cochran, 24 Hours, EUA

Quando a TV norte-americana passou a ter canais de notícia 24 horas por dia, isso com a Guerra Fria ainda em curso, parecia responder a um estado de alerta permanente, à necessidade de cobrir um perigo constante, que a qualquer momento poderia eclodir. A lógica MAD (Mutually Assured Destruction) – pela qual ficava estabelecido que se um dos lados ataca nuclearmente o outro, este automaticamente responde e os dois são destruídos – não assegurava a dissuasão nuclear de forma irrestrita: restava o fator surpresa, a possibilidade de algo totalmente fora do previsível ou do imaginável acontecer e tornar a catástrofe inevitável. Uma vez que o mundo corria esse risco, de um desastre monumental e brusco, ele não mais comportava o tempo de elaboração de uma matéria jornalística – seria uma notícia de urgência, sem roteiro e sem decoro. Só mesmo um canal 24 horas poderia dar a notícia do fim do mundo.

Terminada a Guerra Fria, a paranóia nuclear esmaeceu. Agora praticamente só um dos lados possui o poder de destruição em massa – e o povo que o sustenta não é de índole suicida. Se não há antagonismo à altura, não há medo. Certo? Como todos obviamente sabem, o raciocínio de modo algum se aplica à situação por que passa o mundo (vide incidente recente em Madri – aliás, cabe aqui um breve comentário sobre a matéria exibida no Fantástico daquela semana: desde o episódio de Iñarritú para o filme 11 de Setembro que não se via tão nefasta incursão numa estética de choque, seguida de um tom melodramático que só agravou a estranheza). Com a perda da nitidez do inimigo (interno? externo? – as autoridades norte-americanas insistem na segunda opção, mas no fundo não têm tanta certeza assim...), e sua infiltração por toda parte, cai a crença no ideal de nação ordenada, segura, cuja estabilidade política e econômica seria o suficiente para a manutenção da paz. O destaque, naturalmente, fica com a grande potência mundial em foco, os EUA, que depois do 11 de setembro veio recrudescendo uma política de caça ao Terror (sim, é com letra maiúscula que os americanos sempre se referem ao Mal) e de afirmação da sua posição de "sozinhos no mundo". O mais curioso dessa postura atual, e de toda a base da doutrina Bush (combater os inimigos em potencial antes mesmo que eles se manifestem, legitimar a guerra preventiva), é que ela contradiz o establishment na medida em que se sustenta na atitude liberal que ele próprio tanto condena: a vitimização como modelo de autoridade. Cabe agora à nação que foi vitimada, aos olhos e câmeras de todo o mundo, falar e agir de uma posição de autoridade (incontestável) e pôr em prática o revide que lhe é de direito: é mais ou menos assim que funciona o programa preventivo do governo Bush, tão repleto de paradoxos quanto de arbitrariedades, e que parece sempre afirmar que, passado o idílio delirante do governo Clinton, é hora de voltar à realidade – o inimigo bateu à porta.

De tão radical que foi o gesto, o ataque ao World Trade Center não só acordou os americanos de um sonho de consumo que ganhara novas cores (e efeitos semi-hipnóticos) após o incremento econômico dos anos 90, mas os mergulhou numa vigília interminável, numa jornada sem descanso. Justamente aí reside a substância central da série televisiva 24 Horas: em três temporadas, três inimigos do Estado – três ameaças fatais. Nesse contexto, tudo deve ser vigiado simultaneamente, e são eliminadas as pausas para descanso. Por aí caminha a narrativa e até o visual de 24 Horas, com suas imagens tremidas, seus enquadramentos sujos (não raro claustrofóbicos) e sua incessante variação de ponto de vista (a uma realidade instável e sua multiplicidade de eventos deve corresponder uma imagem confusa e saturada e uma narrativa fragmentada em vários núcleos). Expressão mais bem acabada e direta do "pancinema transpolítico" gerado pela abertura para o imprevisível a partir da era nuclear, 24 Horas traduz de modo claro e concentrado a paranóia norte-americana reativada pelo 11 de setembro.

Em ano de eleição nos EUA, o desdobramento social da série criada por Joel Surnow e Robert Cochran se reforça: se todo o programa político de Bush pautou-se exclusivamente no combate ao inimigo externo – o que o torna um governo alimentado e movimentado pela ação terrorista e sua conseqüente lógica de medo e retaliação –, em hipótese alguma pode soar aleatória a escolha temática e sua aplicação na ficção televisiva que mais repercutiu ao longo desse governo. Com sua terceira temporada correspondendo ao último ano de presidência de David Palmer (na primeira temporada, ainda candidato) e sua tentativa de reeleição, a série se assume como espelho ficcional do presente, como sua reflexão imediata, uma cobertura "24 horas" da América atual, a América que nunca dorme. Nesse panorama, não sobra muito tempo para relações afetivas – os dramas amorosos e familiares de 24 Horas se insinuam nos intervalos dos problemas "maiores" da nação. O presidente Palmer, em conflito por conta das inclinações claramente humanistas com que os autores da série o tingiram (ele é uma espécie de produto moderno do ideal liberal norte-americano atirado ao ninho de cobras, ou falcões, que é a América de hoje), está sempre tendo de enfrentar a inevitabilidade de sacrificar o indivíduo (leia-se Jack Bauer, personagem de Kiefer Sutherland) em prol do coletivo (o país inteiro ameaçado por uma bomba nuclear ou por um vírus mortal). Como disse Jean-Sébastien Chauvin: "Essa articulação do individual e do coletivo sempre foi uma das pedras angulares do cinema americano (basta pensar em Nascimento de uma Nação de Griffith) mas ela é trazida a um grau de incandescência que somente uma matéria folhetinesca, diante da complexidade do que está em jogo, parece poder autorizar" (cf. Cahiers du Cinéma nº 581, texto "L’Amérique ne dort jamais"). O tom da série é propositalmente exagerado, não poupando alguns atores de interpretações que beiram a canastrice permanente. Um relatório-folhetim de um dia de trabalho pesado. A série faz questão de obrigar a realidade política a se acomodar ao esquema funcional da narrativa de ação, e nunca o contrário. Desse modo, a vida política dos EUA é enquadrada sem o menor pudor como se tratando de um filme de aventura do tipo "adrenalina máxima" (e uma das coisas que o 11 de setembro fez não foi justamente recolocar a questão sobre o que vem primeiro, se a realidade ou a ficção?).

O lema da América retratada em 24 Horas é simples e direto: "Não pense, aja!". O humano precisa ceder espaço ao político. A gratidão e a simpatia de David Palmer por Jack Bauer deve ceder espaço à decisão estratégica do presidente da república de autorizar o disparo contra um agente federal de modo a garantir o sucesso da operação de segurança pública. E Jack está disposto a tamanho sacrifício. Quem acompanhou a segunda temporada certamente lembra dele de joelhos no chão – posição de sacrifício par excellence – ameaçado pela metralhadora de Nina Meyers (que no passado já assassinara a esposa de Jack), aliada de terroristas internacionais que detinha a informação sobre o dispositivo nuclear que seria detonado em Los Angeles. Ela pede para entrar em contato direto com o presidente e estabelece como única condição para a entrega da informação o perdão oficial antecipadamente pelo assassinato de Jack Bauer. Como sempre contra a parede, Palmer aceita a condição, mas deixando escapar uma lágrima de tristeza por Jack, que o tranqüiliza afirmando ser aquela a opção correta e acatando a condição de sacrificado. Afinal de contas, "a prova da verdadeira fidelidade ao Líder não é o fato de se estar disposto a receber uma bala atirada contra ele; acima disso, é necessário estar pronto a receber uma bala atirada por ele – aceitar ser abandonado ou até sacrificado por ele em nome de objetivos mais altos" (Slavoj Zizek no livro Bem-vindo ao Deserto do Real!, São Paulo: Boitempo Editorial, 2003).

A série enreda um embate que jamais abandona a oposição nacional/estrangeiro, é verdade, mas que não nega um lado – tão americano quanto a Guerra de Secessão pôde ser – fratricida (como no confronto, na segunda temporada, entre as irmãs Kate e Marie Warner, esta última envolvida com a rede terrorista liderada pelo árabe Syed Ali). A família em 24 Horas é o local de assimilação dos valores conservadores, mas isso não a impede de ser também um casulo de interesses divergentes e uma base de lançamento para traidores da pátria. A sensação de que não se pode confiar em ninguém e de que a face do inimigo é não mais prontamente identificável, aspecto constante nos atuais filmes americanos de investigação, condensa boa parte do conteúdo. É o mal infiltrado em qualquer parte, mesmo nos altos escalões do governo. Quando Jack diz a Marie que no fundo ela não quer ir até o fim e deixar que milhões de inocentes morram, ela responde imediatamente: "Ninguém é inocente neste país". Por mais que a caracterização de Marie não deixe dúvidas quanto à sua posição de vilã dentro da intriga, é com frases fortes como essa que o seriado constrói seu subsolo de questionamentos em relação à idéia de nação unanimista, potente e paternalista – cujo pilar de sustentação é a violência contra o "outro" – que permeia o discurso oficial norte-americano mais típico. Os focos de dissidência podem vir de dentro (da família, do governo, do casamento, da CIA). Não há no seriado qualquer forma de legitimação das ações anti-americanistas, tampouco uma mão na (má) consciência: há simplesmente o presente em pauta, com tudo que ele pode carregar de idiossincrasia e indeterminabilidade.

***

Foi no cinema que se desenvolveu a narrativa de ação full time que inspirou o formato elevado à potência máxima em 24 Horas. Fundado em princípios de instabilidade, multiplicidade e claustrofobia, o seriado busca construir com a câmera na mão um misto de reportagem televisiva (em seu extremo de impacto visual, ou seja, a cobertura de uma guerra) e filme de aventura à John McTiernan, tendo Duro de Matar - A Vingança como "piloto" (um herói branco e um herói negro, um grupo terrorista internacional, uma bomba a ser encontrada, uma jornada contra o tempo). No percurso de Jack Bauer põe-se em jogo uma avalanche de eventos que remete também ao Hitchcock de Intriga Internacional, por conta do repertório de estratégias do protagonista: disfarçar-se, passar por inimigo, mentir para conseguir um meio de transporte rápido, fugir de um carro, ou de um helicóptero, ou de um avião. Mas a base é mesmo o McTiernan de Duro de Matar e do recente Violação de Conduta: adotar um disfarce e derrotar o inimigo no seu próprio nicho, fazendo-o involuntariamente se entregar.

A dinâmica de tempo real mobilizada pela série é bastante atraente, uma vez que a narrativa tanto não comporta elipses quanto elimina tempos mortos e o resultado passa a milhas da obviedade – o que não é nada simples, bastando lembrar que outras propostas do gênero chafurdaram em esterilidade formal e flacidez narrativa antes que pudessem despertar o interesse que 24 Horas desperta (Timecode encabeçando essa lista negra). A imobilidade dos rostos é a única forma de estancar o tempo em 24 Horas, sua nesga de inércia interina. E, de fato, a cena de dois aviões colidindo contra o WTC, num primeiro momento, apenas paralisa o pensamento, choca. A reação só pode vir depois. À exceção de agentes supertreinados ou terroristas igualmente "capazes", os personagens de 24 Horas só reagem num segundo momento, passado o pânico. Assim opera a construção dramática mais recorrente de 24 Horas: uma frase ou um acontecimento de impacto é sempre seguido de um rosto imóvel, olhar arregalado, e um movimento em zoom, a câmera sempre oscilando, nunca posicionada num suporte estável. Cada frase do diálogo implica uma solução de mise-en-scène (McTiernan outra vez é a referência obrigatória). Depois a ação se desenrola, o tempo reflui – e embora o counter apareça constantemente na tela, com os segundos avançando, objetivamente é sempre uma contagem regressiva, uma corrida contra o tempo. Interessante como o próprio conceito da série obstrui a passagem de alguns tiques nervosos, verdadeiros atalhos estéticos contemporâneos, de investidas realistas, a exemplo dos jump cuts intermitentes que acompanham onze entre dez filmes com câmera na mão e abordagem aos moldes realísticos pós-dogma 95. Não há elipse possível, por menor que seja. 24 Horas é tela(-tempo) total, o que justifica seu admirável uso do split-screen.

Continuidade do tempo e fratura do indivíduo: ainda que Jack Bauer congregue o patriotismo, a convicção missionária e o sentimento paterno que o herói tradicional deve possuir, pouco a pouco se abrem fissuras em sua personalidade. A cada temporada ele recebe um golpe desestabilizador, o que teve sua primeira expressão estrondosa com a morte traumática de sua esposa ao término da primeira temporada. A culminação desse mecanismo de desestabilização do herói nos últimos episódios aqui exibidos reside na suspeita de que ele esteja viciado em heroína. Bauer caminha cada vez mais na direção de um "herói fissurado" (no sentido de alguém tanto perturbado por drogas como acometido por rachaduras morais). E não seria justamente um estado de torpor por tempo indeterminado o que define e viabiliza o projeto de hiper-atividade e hiper-consumo do capitalismo em sua fase tardia? Não é um estado de transição entre o sono e a vigília, quando os pensamentos se tornam acromegálicos e variam entre o onírico absoluto (ideal para o consumo) e uma lógica que de tão lógica pouco se vê no dia-a-dia – uma lógica obscena (ideal para a guerra)? O cinema catástrofe tratou de dar asas a fantasias de perigos absurdos das nações bem-estabelecidas e com poucas dificuldades materiais (e por isso mesmo tendo de fantasiar a destruição vinda de fenômenos da natureza ou de falhas de segurança a princípio inimagináveis), mas os pesadelos catastróficos dessa mesma sociedade hoje são habitados por fatos consumados. A brincadeira antiga era especular sobre as possíveis falhas de um sistema aparentemente perfeito. A nova consiste em varrer escombros verdadeiros.

Se as primeiras temporadas foram praticamente catárticas em relação aos dois principais traumas da história recente dos EUA (o assassinato de Kennedy e o 11 de setembro de 2001), o terceiro ano de 24 Horas revela um vigoroso apego ao que ainda está por ser escrito, parecendo preparar seu roteiro ficcional em paralelo à realidade. Nada mais justo, num mundo em que o "prazer pelo real" (principal característica do século XX, segundo Alain Badiou) transfigurou-se em ausência da realidade em si e primazia do "semblante" (Zizek). A realidade está agora entre aspas (do meio acadêmico à mais livre publicação, há um desconforto generalizado quando do referir-se ao "real" – cá está ele entre aspas novamente –, este soando por demais ingênuo se tomado ao pé da letra). 24 Horas é o presente da América filtrado pelo imaginário cinematográfico que lhe é tão peculiar; uma série que passa no canal Fox (cujo elevado nível de audiência é indiscutível) e não titubeia em tratar de temas urgentes com urgência, afirmar que o inimigo não é necessariamente o estrangeiro, encarar de frente a conjuntura de seu país, assumindo sua face paranóica e insone e corajosamente projetando seu destino – a terceira temporada é a mais dark até agora – muito menos na luz do que nas sombras. E tudo isso sem soar hipócrita e sem abrir mão do heroísmo.

(A continuar)


Luiz Carlos Oliveira Jr.