Os
primeiros minutos de 1,99 são, de longe,
o que ele possui de mais instigante e inteligente, principalmente
pelo sutil detalhe que nos faz definir quais são
estes primeiros minutos. Geralmente, no Brasil, os filmes
começam com uma pré-cartelada de apoios,
patrocínios, leis, e só aí começa
o que pode se chamar de filme de fato. Nunca estas cartelas
foram incorporadas ao discurso do filme em si (como
às vezes acontece no cinema americano, onde vários
cineastas já brincaram com as logos de seus estúdios,
incorporando-as à narrativa). Masagão
teve esta idéia, que funciona muito bem. O motivo
pelo qual podemos afirmar que estas logos são
parte da narrativa é que, sutilmente, o nome
do filme aparece na tela antes delas. Ou seja, ele inverte
a ordem de apresentação, e assim incorpora
as marcas ao seu discurso, o que está diretamente
ligado a seu projeto. A forma como Masagão usa
as marcas é pelo ridículo da exaustão:
ele coloca logomarcas de todos os inúmeros apoiadores
do filme por sobre uma tela branca, em grande silêncio,
e dá muito tempo de tela a cada série
delas. Com isso, cria-se automaticamente um incômodo
com a platéia, que parece assistir minutos de
desfilar de logomarcas. A crítica ao excesso
do comercialismo, e até mesmo dos meios de produção
do cinema brasileiro funciona assim de forma pouco óbvia,
sutil, e inteligente. Pena que tudo isso falte ao filme
que começa logo depois das marcas.
Masagão realiza, de fato, um grande filme-ensaio,
onde as categorias mais tradicionais de ficção,
documentário e experimental não se aplicam
exatamente ao seu trabalho. Esta falta de filiação
a priori a algum gênero (embora algumas vozes
mais maldosas possam dizer que o filme serviria perfeitamente
como instalação na Bienal de SP) é
o grande interesse que o filme tem no seu todo. Mas,
seus problemas são muitos, passando do conceitual
à realização em si, e finalmente
chegando ao efeito produzido. Começando pela
realização, o principal problema do filme
é ser, de fato, uma série de pequenas
idéias cuja duração individual
não é de mais de um minuto (o fato do
diretor ser o responsável pelo Festival do Minuto
deve ter algo a ver com isso). Claro que este é
o formato escolhido propositadamente pelo filme, mas
o efeito da seqüência destas idéias
é de um grande esvaziamento delas mesmas ao longo
da exibição. Isso acontece, basicamente,
porque todas elas giram em torno da mesma grande idéia:
o mundo contemporâneo visto como uma sociedade
onde consumir e ser consumido viraram parte de um mesmo
jogo, e onde o Homem e o Comprador/Vendedor se equivalem.
Idéias não particularmente novas (não
por acaso, há nos créditos finais uma
lista de "referências"), como deixam
bem claro cenas como as do excesso do celular ou a "denúncia"
da espetacularização da miséria
ou da violência, mas que poderiam até funcionar
neste novo formato. O problema é que, talvez
por falta de interesse em articular autêntica
fabulação ficcional onde estas idéias
pudessem ser discutidas, Masagão faz pouco mais
do que dar forma audiovisual a conceitos teóricos.
Com isso, e mesmo por resolver não articular
seu discurso de forma contínua, e sim reiterativa,
o filme torna-se rapidamente óbvio e repetitivo
(no que em nada ajuda a trilha de Wim Mertens, aliás).
Retomando o chiste sobre a Bienal acima, talvez seja
melhor dizer que o filme parece mais funcional se exibido
vinheta a vinheta nos comerciais de uma MTV (que, aliás,
já produziu algumas idéias sobre temas
como este com menor grau de obviedade argumentativa).
Se a forma em si não ajuda muito, o fato é
que o conceito por trás do filme também
é, para dizer o mínimo, complicado. Porque,
aplicado como imagem e som numa encenação
onde pessoas-autômatas se locomovem como zumbis,
reproduzem uma bizarra dinâmica social e se relacionam
de forma sempre esquemática, o filme tenta de
fato afirmar que a experiência humana contemporânea
está cercada por clichês e regras onde
qualquer outra forma de contato torna-se impossível.
Para comprovar sua tese, Masagão usa de uma manipulação
bastante precária, uma vez que se utiliza de
artifícios óbvios para ser exposta. Um
exemplo é o fato dos "personagens"
nunca terem direito à palavra falada (embora
muitas vezes apareçam falando, só que
sem emitir sons, porque a trilha sonora impede isso),
já que a linguagem permite a articulação
individual de idéias, e a diferenciação
entre as pessoas. Um outro exemplo é a manipulação
do passado dos "personagens" (nos momentos
à la Nós que Aqui Estamos..., primeiro
longa do diretor) pelo diretor, onde tenta-se construir
um mínimo denominador comum de experiências
humanas (sempre com a idéia de que somos todos
parecidos) que pouco funciona, porque no máximo
prova de que só somos iguais ao olhar do diretor.
Esta necessidade de pegar a realidade e disfarçá-la
de outra forma, tira boa parte da força do filme,
porque parece fazer conclusões sobre a experiência
contemporânea que, para serem comprovadas, precisam
excluir totalmente elementos desta mesma experiência.
Em suma, toda a construção de Masagão,
que tenta se escorar numa série de "constatações"
comuns a todos nós (como as frases de publicidade,
etc) revela menos sobre o "ser humano hoje",
por assim dizer, do que sobre o olhar do diretor sobre
este. O que, embora seja condição de todas
as obras artísticas, é importante destacar
num filme totalizador como este, porque suas falhas
não são as falhas da raça humana,
como queira fazer crer, e sim do diretor.
Mas, talvez, o pior do filme não seja a forma
nem o conteúdo, e sim o resultado da junção
dos dois. Seja visto como um "filme-manifesto",
ou mesmo como um "filme-desesperança",
1,99 não possui permanência ou poder
de choque. O fato é que seus argumentos nem apresentam
qualquer novidade que possa causar revelações
sobre o estado do mundo, nem mesmo contundência
para buscar um novo olhar. No seu formato de pequenas
esquetes/piadas encenadas com trilha onipresente, 1,99
é um filme de recepção ligeira.
Em menos de 10 minutos, o espectador está completamente
anestesiado a seus efeitos, e a beleza asséptica
de sua construção de imagens a partir
de um ideário passado em "pequenas pílulas
de sabedoria" igualam o filme a qualquer propaganda
de TV. E seu efeito final é mais ou menos tão
profundo quanto qualquer uma delas. Fica muito pouco
além da ânsia de trocar o canal, e talvez
pegar no início aquele filme inteligente e sutil
que poderia começar depois da seqüência
das logomarcas. Se o mundo é um supermercado
que vende palavras, 1,99 é apenas mais
um produto nas prateleiras.
Eduardo Valente
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