1,99 – Um supermercado que vende palavras
Marcelo Masagão, Brasil, 2003

Os primeiros minutos de 1,99 são, de longe, o que ele possui de mais instigante e inteligente, principalmente pelo sutil detalhe que nos faz definir quais são estes primeiros minutos. Geralmente, no Brasil, os filmes começam com uma pré-cartelada de apoios, patrocínios, leis, e só aí começa o que pode se chamar de filme de fato. Nunca estas cartelas foram incorporadas ao discurso do filme em si (como às vezes acontece no cinema americano, onde vários cineastas já brincaram com as logos de seus estúdios, incorporando-as à narrativa). Masagão teve esta idéia, que funciona muito bem. O motivo pelo qual podemos afirmar que estas logos são parte da narrativa é que, sutilmente, o nome do filme aparece na tela antes delas. Ou seja, ele inverte a ordem de apresentação, e assim incorpora as marcas ao seu discurso, o que está diretamente ligado a seu projeto. A forma como Masagão usa as marcas é pelo ridículo da exaustão: ele coloca logomarcas de todos os inúmeros apoiadores do filme por sobre uma tela branca, em grande silêncio, e dá muito tempo de tela a cada série delas. Com isso, cria-se automaticamente um incômodo com a platéia, que parece assistir minutos de desfilar de logomarcas. A crítica ao excesso do comercialismo, e até mesmo dos meios de produção do cinema brasileiro funciona assim de forma pouco óbvia, sutil, e inteligente. Pena que tudo isso falte ao filme que começa logo depois das marcas.

Masagão realiza, de fato, um grande filme-ensaio, onde as categorias mais tradicionais de ficção, documentário e experimental não se aplicam exatamente ao seu trabalho. Esta falta de filiação a priori a algum gênero (embora algumas vozes mais maldosas possam dizer que o filme serviria perfeitamente como instalação na Bienal de SP) é o grande interesse que o filme tem no seu todo. Mas, seus problemas são muitos, passando do conceitual à realização em si, e finalmente chegando ao efeito produzido. Começando pela realização, o principal problema do filme é ser, de fato, uma série de pequenas idéias cuja duração individual não é de mais de um minuto (o fato do diretor ser o responsável pelo Festival do Minuto deve ter algo a ver com isso). Claro que este é o formato escolhido propositadamente pelo filme, mas o efeito da seqüência destas idéias é de um grande esvaziamento delas mesmas ao longo da exibição. Isso acontece, basicamente, porque todas elas giram em torno da mesma grande idéia: o mundo contemporâneo visto como uma sociedade onde consumir e ser consumido viraram parte de um mesmo jogo, e onde o Homem e o Comprador/Vendedor se equivalem. Idéias não particularmente novas (não por acaso, há nos créditos finais uma lista de "referências"), como deixam bem claro cenas como as do excesso do celular ou a "denúncia" da espetacularização da miséria ou da violência, mas que poderiam até funcionar neste novo formato. O problema é que, talvez por falta de interesse em articular autêntica fabulação ficcional onde estas idéias pudessem ser discutidas, Masagão faz pouco mais do que dar forma audiovisual a conceitos teóricos. Com isso, e mesmo por resolver não articular seu discurso de forma contínua, e sim reiterativa, o filme torna-se rapidamente óbvio e repetitivo (no que em nada ajuda a trilha de Wim Mertens, aliás). Retomando o chiste sobre a Bienal acima, talvez seja melhor dizer que o filme parece mais funcional se exibido vinheta a vinheta nos comerciais de uma MTV (que, aliás, já produziu algumas idéias sobre temas como este com menor grau de obviedade argumentativa).

Se a forma em si não ajuda muito, o fato é que o conceito por trás do filme também é, para dizer o mínimo, complicado. Porque, aplicado como imagem e som numa encenação onde pessoas-autômatas se locomovem como zumbis, reproduzem uma bizarra dinâmica social e se relacionam de forma sempre esquemática, o filme tenta de fato afirmar que a experiência humana contemporânea está cercada por clichês e regras onde qualquer outra forma de contato torna-se impossível. Para comprovar sua tese, Masagão usa de uma manipulação bastante precária, uma vez que se utiliza de artifícios óbvios para ser exposta. Um exemplo é o fato dos "personagens" nunca terem direito à palavra falada (embora muitas vezes apareçam falando, só que sem emitir sons, porque a trilha sonora impede isso), já que a linguagem permite a articulação individual de idéias, e a diferenciação entre as pessoas. Um outro exemplo é a manipulação do passado dos "personagens" (nos momentos à la Nós que Aqui Estamos..., primeiro longa do diretor) pelo diretor, onde tenta-se construir um mínimo denominador comum de experiências humanas (sempre com a idéia de que somos todos parecidos) que pouco funciona, porque no máximo prova de que só somos iguais ao olhar do diretor. Esta necessidade de pegar a realidade e disfarçá-la de outra forma, tira boa parte da força do filme, porque parece fazer conclusões sobre a experiência contemporânea que, para serem comprovadas, precisam excluir totalmente elementos desta mesma experiência. Em suma, toda a construção de Masagão, que tenta se escorar numa série de "constatações" comuns a todos nós (como as frases de publicidade, etc) revela menos sobre o "ser humano hoje", por assim dizer, do que sobre o olhar do diretor sobre este. O que, embora seja condição de todas as obras artísticas, é importante destacar num filme totalizador como este, porque suas falhas não são as falhas da raça humana, como queira fazer crer, e sim do diretor.

Mas, talvez, o pior do filme não seja a forma nem o conteúdo, e sim o resultado da junção dos dois. Seja visto como um "filme-manifesto", ou mesmo como um "filme-desesperança", 1,99 não possui permanência ou poder de choque. O fato é que seus argumentos nem apresentam qualquer novidade que possa causar revelações sobre o estado do mundo, nem mesmo contundência para buscar um novo olhar. No seu formato de pequenas esquetes/piadas encenadas com trilha onipresente, 1,99 é um filme de recepção ligeira. Em menos de 10 minutos, o espectador está completamente anestesiado a seus efeitos, e a beleza asséptica de sua construção de imagens a partir de um ideário passado em "pequenas pílulas de sabedoria" igualam o filme a qualquer propaganda de TV. E seu efeito final é mais ou menos tão profundo quanto qualquer uma delas. Fica muito pouco além da ânsia de trocar o canal, e talvez pegar no início aquele filme inteligente e sutil que poderia começar depois da seqüência das logomarcas. Se o mundo é um supermercado que vende palavras, 1,99 é apenas mais um produto nas prateleiras.


Eduardo Valente