Entrevista com Nelson Pereira dos Santos



Nelson Pereira dos Santos

Primeira parte: Formaηγo, Primeiros filmes, Vidas Secas.

DC – Com relação à sua formação cinematográfica, Nelson... perto de onde você morava tinha muito cinema?

NPS – Bem, eu nasci no Brás. Em frente à minha casa, quando eu nasci, tinha um cinemão, um cinema enorme, que meu pai freqüentava, durou muitos anos...E aí eu morei perto da cidade, quer dizer, tinha a praça da Sé, que tinha vários cinemas, o Largo João Mendes tinha outro, o famoso Recreio, com filmes B e seriados, juntava a garotada toda... e a cinelândia ali, né, Avenidas Ipiranga e São João, não era também muito longe, tudo era perto.

DC – Toda a nossa geração foi educada pelo cinema americano, a gente só via filme americano quando era criança.

NPS – Mas eu também só vi filme americano. Foi no final da guerra que surgiram os filmes europeus. Antes, no tempo do Estado Novo, tinha a produção alemã, que era distribuída por uma distribuidora alemã, a UFA, que tinha um cinema, se chama hoje Art-Palácio, era o UFA, e foi construído pelos alemães.

DC – Aqui no Rio ou em São Paulo?

NPS – São Paulo. Eu acho que o daqui também, porque tinha o mesmo emblema, a mesma marca.

DC – E passava os filmes nazistas?

NPS – Passava os filmes dos nazistas, era... mas eu não via, não me lembro. Mas segundo uma grande figura da distribuição, ele diz que comprou um filme do Eisenstein, o... como se chama? Não é o Ivan o Terrível...

RG – Alexandre Nevski?

NPS – Isso, Alexandre Nevski... ele comprou uma cópia do Alexandre Nevski, botou a marca UFA na cabeça e exibiu no cinema alemão, ganhou um bom dinheiro. Quer dizer, podia ser mentira dele, era muito chutador... Mas não existia muito, era cinema americano ou cinema americano... havia, no começo dos anos trinta, alguma coisa já do cinema mexicano, cinema argentino, mas eram coisas muito raras. Depois da guerra é que o cinema mexicano começou a aparecer, o cinema argentino... pelo menos em São Paulo.

DC – Você fala do cinema mexicano, seriam os filmes do Cantinflas, no caso?

NPS – Tinha o Cantinflas, mas junto dele tinha todo o cinema do melodrama...

DC - E o cinema neo-realista, a partir de quando você viu?

NPS – Só a partir da minha mocidade. Quando terminou a guerra eu tinha em torno de dezessete anos...

DC – E aí os filmes do Rosselini já passavam aqui...?

NPS – O esquema foi o seguinte: até o final da guerra, só cinema americano. Durante a guerra então, puxa, os filmes de guerra americanos dominavam...

DC – E quais eram seus prediletos?

NPS – Minha formação toda é do cinema americano, eram os grandes, Charles Chaplin, John Ford, Howard Hawks, mais tarde John Huston, vários diretores... na realidade, eu via todos os filmes, saía de uma sala e ia para outra, sitiado nos cinemas, sem parar. Na adolescência, muito western, policial, filmes B, tinha a Columbia, a Republic, eu via um atrás do outro, e os seriados maravilhosos.

RG – No livro da Helena Salem, fala-se muito do ambiente que te circundava, que seu pai assistia a muitos filmes, tinha o hábito de ir ao cinema. Em que momento você imaginou que você iria ter uma carreira de cineasta?

NPS – Acho que foi por volta de 1947, ’48... Aliás, em ’46, na escola de direito tinha um cineclube, e eu comecei a frequentar o cineclube, ’46, ’47, e começou a haver um movimento de cinema em São Paulo, o Alberto Cavalcanti foi para São Paulo, fez uma palestra, todo mundo correu para ver a palestra do Cavalcanti.

DC – Ele já estava montando a Vera Cruz na época, não?

NPS – Exatamente. E aí criou aquele clima de que cinema era possível, em São Paulo principalmente. Aí eu comecei a pensar "poxa, vou fazer cinema, meu caminho é o cinema". Eu tinha feito um pouco de teatro, meus amigos mais próximos eram pintores, são pintores ainda, e eu ficava naquela de "o cinema é a saída". O caminho clássico era a literatura, escrever, mas quando apareceu o cinema eu vi, "o caminho é por aí"...

DC – Já estava se envolvendo com o Partidão (PCB)?

NPS – Já. Eu estava no partido desde 1947.

DC – Mais ou menos na mesma época...

NPS – Um pouco antes, o Partido. O Partido, eu ainda estava no colégio, no segundo ciclo, antes de ir para a universidade.

RG – Mas a relação política foi só a partir da faculdade?

NPS – Política? Não, no colégio já tinha, eu já estava na Juventude Comunista. Mas na faculdade a atividade política era mais intensa.

RG – E logo de início você imaginou que tenderia para um cinema de conotação mais realista, com uma tentativa de filmar as classes populares e etc.? Ou de início era só um desejo de ser diretor de cinema?

NPS – Não... uma vez eu disse "Por que eu queria ser diretor de cinema? Porque queria comer as estrelas...", parafraseando Olavo Bilac... Mas a minha geração é toda impregnada dessa grande e generosa idéia que é de mudar o país... não só o cinema, toda a literatura, todos os pensadores do Brasil, em torno do século XX... Então tem toda essa combinação... O bom artista brasileiro, o grande intelectual brasileiro, são todos da esquerda. Nem todos marxistas, mas tinham um pensamento com o caminho da transformação, de acabar com os arcaísmos da sociedade brasileira, e tal... inclusive Gilberto Freyre. Agora estou lendo Sérgio Buarque, e também, rapaz, é um grande explicador do Brasil, e também tem uma proposta de transformação do Brasil. Enfim, a minha geração é toda formada nesse cadinho, aí eu fazia cinema, e mais essa influência cinematográfica do neo-realismo, uma influência mais de produção do que estética, de fazer cinema com poucos recursos, não necessitar de grandes esquemas financeiros, não precisar de estúdio, como o cinema das grandes estrelas internacionais, e fazer diretamente com o povo. Então essa regra do neo-realismo ficou valendo para uma série de cineastas do mundo inteiro, da Índia, Grécia, Brasil, Argentina, e tal...

DC – Você contou que, quando apresentou Rio quarenta graus, ele passou em alguns festivais junto do filme de Satyajit Ray, Canção da Estrada.

NPS – Isso, são da mesma geração, é do mesmo ano do filme dele, e tem aquele outro, um grego...

RG – Cacoyannis?

NPS – É, Cacoyannis... enfim, o neo-realismo criou uma grande influência nos países do chamado Terceiro Mundo, que tinham uma cinematografia incipiente, porque ele ensinou que era possível fazer cinema com poucos recursos. O que veio dar na "câmera na mão e idéia na cabeça", do Glauber.

DC – Naquele livro que você publicou com seus roteiros, você fala muito do seu aprendizado do seu primeiro para o seu segundo, do Rio quarenta graus, com um roteiro mais detalhado, para o Rio Zona Norte, que tinha um roteiro mais leve, e aí eu queria perguntar dos filmes em si, qual era a sua visão na época, o amadurecimento que você percebeu, nesse pulo do gato de um realismo à brasileira transformado numa versão pessoal do próprio cinema realista, lidando com a possibilidade de uma visão subjetiva.

NPS – Aquilo que eu conto, no tempo do Rio quarenta graus, é aquela história, eu não sabia quando ou se poderia fazer o filme algum dia... então tinha todo o tempo do mundo... podia pensar, "ah, a câmera vai ficar aqui...", aí tomava nota... fazia um roteiro de ferro, "a câmera em primeiro plano", uma nomenclatura do Alex Viany... muito engraçado, porque aí eu aprendi. Na equipe, ninguém leu o roteiro, porque o que é o roteiro? Numa indústria como a americana ou mesmo a francesa, vai fazer com que diversos setores trabalhem, a divisão de trabalho é perfeita, o roteiro vai lá para o eletricista, o chefe de maquiagem, cada um vê o que tem que fazer, reuniões de trabalho, briefing, aquela coisa toda. Eu não sou contra não, acho ótimo, mas primeiro que não tem salário para pagar tanta gente, e segundo que não tem tanta gente qualificada, agora tem, mas naquele tempo nem pensar... então eu me dei conta, é um trabalho enorme, quando eu estou escrevendo para mim mesmo. E também, roteiro, como literatura, é intragável. Para fazer um roteiro que dê gosto de ser lido você precisa ser um bom escritor. Se descrever a seqüência de um jeito literal, fica com um roteiro horrível...

DC – Aí você passou a escrever roteiros mais ‘legíveis’?

NPS – É, você pegava um roteiro, e era assim "ele entra pela esquerda, olha para a direita, o cara diz ‘bom dia’", e tal, uma babaquice total... além do mais, ninguém lê, não há nenhuma comunicação para combinar, não há bom um trabalho conjunto. Aí no Rio Zona Norte fiz um roteiro ligeiro. Mesmo no Rio quarenta graus, todos aqueles primeiros planos, teve muitas modificações, tinha que fazer, faz assim, faz assado, correndo porque vai acabar a luz... aí, no Rio Zona Norte, deixa em aberto, eu sei qual é a cena... E tem uma coisa muito importante, que é a contribuição do ator. O roteiro de ferro exige que o ator seja subordinado à câmera. Mas isso, nos tempos do cinema mudo, com aquele negócio pesado da maquiagem, da luz, era porque o plano tinha que ser aquele. Nem todos os filmes feitos assim viraram obras primas, aliás a grande maioria desapareceu. Então, o problema era aquela combinação entre a linguagem desejada e a realidade que está sendo filmada. Aí você tem outra psicologia em ação, que muitas vezes passa ser até antagônica ao diretor, o ator fica puto, vira as costas, derruba o personagem... Você tem que fazer o ator criar o personagem e filmar...Quer dizer, na minha concepção, né? E aí eu percebi, no Rio Zona Norte, deixei, "não vou escrever roteiro", era a mesma equipe, todo mundo já sabia o modo que ia filmar, um pouco diferente do Rio quarenta graus, mas era por ali...

DC – Mas e como diretor...? Porque mesmo durante o Rio quarenta graus você já tinha problemas com o Partidão, e o Rio Zona Norte já é bem distante disso, mesmo retratando o universo do samba, do Zé Ketti, de Bento Ribeiro, é bem distante dessa proposta neo-realista original. O que te levou a fazer essas opções?

NPS – Na verdade, o próprio neo-realismo já tinha se esgotado... lancei o Rio Zona Norte em 1958. Quer dizer, quando eu terminei o Rio quarenta graus, o neo-realismo já tinha ido pra cucuia... como tudo no Brasil (ri)... ainda vamos chegar a fazer filmes expressionistas...

RG – Mas o seu começo é mais ou menos na grande época das chanchadas, e você lê nos manuais de cinema que o Cinema Novo tem uma relação complicada com a chanchada, alguns textos do Glauber desconsideravam totalmente, e tal, e eu queria saber sua relação com a chanchada, antes do Rio Zona Norte e antes do Rio quarenta graus.

DC – Até porque o Rio Zona Norte era com o Otelo.

NPS – É, o Otelo fez tudo, sabia o que era a chanchada e o que era... a grande vocação do Otelo era para ser um ator chamado de "dramático", era um ator dramático. Não dá para esquecer que ele fez um filme, chamado Moleque Tião, que desapareceu, que foi o primeiro filme da Atlântida, e era sobre a vida dele. Era um filme em que ele era o personagem, realista e tal...

DC – Fez Amei um Bicheiro...

NPS – Fez... fez o segundo filme da Atlântida, Somos todos irmãos, ou coisa assim...

RG – Também Somos Irmãos. Esse filme existe ainda.

NPS – Pois é, acharam a cópia uns anos atrás, eu fui ver. Quando eu vim para o Rio, esse filme era mitológico, em 1952, eu vim para o Rio, para fazer Uma Agulha no Palheiro. E acabei ficando no Rio. Eu morava, logo que cheguei, na casa do Alinor Azevedo, grande argumentista da Atlântida, e o Alinor falava desse filme, mas a cópia estava desaparecida, não tinha mais cópia, olha só como as coisas são perdidas no Brasil. Esse filme deve ser de quarenta e... 1947, 1948, por aí. E eu cheguei quatro anos depois do filme, e já não tinha mais, ficou na história como desaparecido!...

DC – Foi encontrado agora...

NPS – Foi encontrado agora. É uma história com uma questão racial, embora tratada de uma forma fechada, um ambiente de família, e tal... vocês viram o filme?

RG – Eu conheço.

NPS – Ele é muito interessante. E o Otelo tem um personagem fantástico, é muito bom ator. Agor, a relação com as chanchadas... O livro do Glauber é um livro crítico, não é? Daquele momento das chanchadas... e evidentemente que a chanchada era um pouco o que é hoje a Rede Globo, há uma diferença, quer dizer, sem preconceitos, mas quem quer fazer um cinema que naquele tempo era chamado de ‘cinema autoral’, um cinema com uma linguagem, estrutura e propósitos, evidentemente que não vai seguir o padrão Globo. Quem conhece a história do cinema e o cinema contemporâneo tem uma ambição de criação mesmo, de originalidade, porque é fundamental na obra cinematográfica a originalidade de cada filme, o que cada um quer fazer e trabalhar. Então, havia um fosso entre os jovens que estavam começando, e logo o Cinema Novo, no começo do Cinema Novo, e os chanchadeiros, que ganhavam dinheiro, tinham uma vida boa e tal... Eu nunca tive uma relação torta com eles, sempre trabalhei muito bem, e politicamente também, na hora de defender o cinema brasileiro, eu fiz tudo para evitar que esse racha estético se estendesse à política, não podia ter um racha estético num cinema brasileiro tão debilitado, tinha que ser todo mundo do cinema brasileiro, esquece se um é assim e outro é assado, como aliás é o exemplo do cinema francês. O cinema francês se une e ninguém está discutindo se um faz comédia pastelão e o outro é um intelectual refinadíssimo, na hora de brigar estão todos juntos, porque é o interesse básico e comum. E nesse ponto então eu ficava ao lado dos chanchadeiros, que sempre foram gente interessante, gente fina... Cheguei a fazer uma chanchada, chamada Balança mas não cai, fui assistente de direção e eu acabei o filme.

DC – Você terminou dirigindo o filme?

NPS – Foi, eu acabei dirigindo.

DC – Mas esse filme foi antes do Rio...

NPS – Foi, foi antes do Rio Quarenta Graus. Eu tinha feito Uma Agulha no Palheiro como assistente, e aí veio esse, Balança mas não cai.

DC – Do Rio Zona Norte para seu próximo filme a gente já tem um momento de ruptura, que é a entrada dos cinemanovistas na jogada, você uma vez inclusive contou que não era cinemanovista, que você foi cooptado...

NPS – É, eu fui cooptado.

DC – Aí eu queria saber tua avaliação de como foi essa mudança entre a feitura do Rio Zona Norte, que foi o filme que você imaginou, até o Vidas Secas, o outro filme que você imaginou, todo esse percurso do Mandacaru... e do Boca de Ouro, que você fez com o Jece Valadão a partir de Nelson Rodrigues, eu justamente queria saber como você sentiu o impacto dessa discussão com esse grupo de jovens que estavam aparecendo.

NPS – Esse contato aconteceu por causa da proibição do Rio Quarenta Graus.Aí eu fui para a Bahia mostrar o filme, o Glauber eu conheci na Bahia, ele não lembrava disso, mas foi na Bahia, no Clube de Cinema, o pessoal do Walter Silveira, que já morreu. Tinha também Belo Horizonte, tinha a Sociedade , os mineiros tinham uma Sociedade de Estudos Cinematográficos, eram todos críticos refinados.

RG – Eles lançaram uma revista.

DC – Era quem, Gomes Leite...?

NPS – Era, o Maurício, tinha outros, vários caras muito bons, bons críticos e escritores. Tinha São Paulo, voltei para São Paulo com um filme já, proibido no Rio... no Rio de Janeiro apareceram Leon e Joaquim Pedro, no Instituto de Filosofia, o Joaquim estudava física, o Leon engenharia. O Cacá veio depois, com aquele jornal "O Metropolitano"...

RG – David Neves também...

NPS – Isso, o David...

DC – Essa turma que se reuniu no IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Socias da UFRJ), que tinha também o Saulo Pereira de Mello, chegou a fazer um cineclube lá, não é?

NPS – Isso... Era um movimento bastante agitado na época, e o Rio Quarenta Graus levantou aquela bandeira, da não-proibição, era época de campanha eleitoral, Juscelino, golpe, contra-golpe, e o Rio Quarenta Graus no meio disso tudo, quer dizer, houve uma grande combinação do momento político com o cinema. E começamos a nos reunir, a nos encontrar, foi muito interessante, um momento muito legal. Aí veio Rio Zona Norte e os curtas do CPC, eu trabalhei na montagem do Leon, o Ruy Guerra trabalhou na montagem do Cacá, os considerados veteranos foram trabalhar com os mais jovens.

DC – Abrindo um parêntese, você contou uma vez que se envolveu com montagem a partir de uma situação do Rio Zona Norte.

NPS – É, o montador, grande figura...

DC – Era o (Rafael) Valverde?

NPS – Não, o Valverde fez o Rio Quarenta Graus, mas no Rio Zona Norte ele não podia. Aí veio o Mario Del Ryo, um espanhol que morou na Argentina, passou pelo México... Foi na sequência da Angela Maria, eu tinha feito uma estrutura na sequência, e aí ele chegou e cortou à americana, tá-tá-tá, para ignorar o ritmo do que estava no quadro e se preocupar só com o ritmo mecânico, e não deu certo. Porque quando a Angela Maria começa a cantar, a reação do Otelo é o que interessa, não é ela começando a cantar. Porque ela vem de fora, e ele valoriza, porque o Otelo é um ator do cacete, ele valoriza... Cortando para ela ficava chinfrim, era ela cantando aquilo como ela canta qualquer coisa. O mito da Angela Maria tinha que estar nos olhos do Otelo. Aí eu falei "não, espera aí, vamos fazer isso aqui de novo", e eu refiz a sequência toda. E aí eu saquei que a montagem do filme é um infinito de opções, essa atenção que você tem que dar para o trabalho dessa combinação do ritmo interno com o ritmo externo, mecânico, essa combinação é básica. Que eu lia no Kuleshov, o grande professor de cinema da minha geração se chama Kuleshov, vocês conhecem? O Tratado... era o único que existia em espanhol, ia todo mundo com o Kuleshov debaixo do braço, e no outro braço, para alguns entendidos, o Eisenstein na montagem, os dois livros do Eisenstein, também em espanhol. Enfim... Essa trajetória, do Rio Zona Norte ao Vidas Secas...

DC – Na verdade você também montou, além dos filmes do Leon, o filme do Sérgio Ricardo, O Menino da Calça Branca, e o Barravento. A sua ligação com a nova geração era diretamente pela moviola.

NPS – Era, pela moviola e pelos papos também. Na minha cabeça eu tinha o seguinte, trabalhamos muito nisso, o caso do Rio Zona Norte foi esclarecedor, e também depois, na filmagem do Boca de Ouro, era o seguinte, que eu considerava, também com um pouco de paranóia nisso, que se não dominar os meios de realização, se não dominar a moviola, a câmera, a fotografia, o som, o cinema não vai ser descolonizado. Porque uma forma de colonização era, por exemplo, na fotografia, que tinha a fórmula da Kodak que o laboratório obedecia, você tinha que fazer como o laboratório queria, para filmar com negativo Kodak tinha que fazer isso e isso, já fazer aquilo não pode, e isso aqui também não pode. Era sempre o dono da técnica, que sempre foi o dono da criação, o diretor muitas vezes era considerado um débil mental, porque era o cara que tinha as idéias, mas o diretor não precisa saber muito da técnica, ele tem que saber que resultado ele quer alcançar, o que ele prefere, o que ele quer experimentar. E não interessa se pode ou não pode, tem que impor isso ao fotógrafo, ao cara do som, "eu quero esse resultado". "Ah, mas tecnicamente não pode", isso é desculpa esfarrapada, porque na hora, também, são essas coisas muito próprias do subdesenvolvimento, muitas vezes, competições por causa da vaidade... Mas a idéia era essa, nós precisamos conhecer os meios de realização e dominá-los. Porque havia não só o caso do Mario Del Ryo, tinha também um montador maravilhoso, Nello Melley, grande figura, argentino, e houve o caso da Vera Cruz, que só tinha montador alemão, fotógrafo inglês, pereré-pão-duro e tal... E lá era realmente a ditadura dos grandes técnicos, não podia isso, não podia aquilo... Enquanto na história do cinema brasileiro você tem uma figura como o Edgar Brazil, fotógrafo, que inventava tudo, não tinha nada que o doido do Mário Peixoto pedia que ele não fizesse. O Mário tinha, sei lá, vinte anos de idade, coisa assim, e não interessa, vai lá, se vira e faz.

DC – Você viu Limite quando?

NPS – Eu vi Limite só quando foi recuperado.

DC – Pelo Saulo Pereira...

RG – Já nos ’70.

DC – Até então era um filme mítico, não?

NPS – É, o Glauber falou "não interessa esse filme!", e tinha razão. Porque todo mundo dizia "Você não viu Limite? Você nunca vai fazer um filme tão bom quanto Limite...", e dava um ódio, cadê o filme?! "Nunca!...". Especialmente os intelectuais que não eram de cinema, os literatos e tal... Fechavam o caminho para o cinema... Mas um dia eu dei um depoimento, com um pouco de demagogia, naturalmente, mas eu disse que eu ficava com ódio do Limite, porque era sempre "o melhor filme brasileiro", mas, quando eu vi, eu disse que , realmente, é o melhor filme brasileiro! Foi assim, tomou conta...

DC – Mandacaru Vermelho e Boca de Ouro...?Até que ponto você considera trabalhos naturais em sua carreira, filmes seus? Você tem prazer em rever? Eu sei que Mandacaru... você não gosta de ver, por ser o protagonista...

NPS – (Ri) É, Mandacaru... não muito... Tem uma coisa engraçada em Mandacaru..., é um rascunho...

DC – Eu acho um filme bem interessante.

NPS – Ele é um rascunho, teria que fazer um filme em cima daquele, com atores de verdade, cenários...

DC – É um primeiro faroeste de terceiro mundo...

NPS – Mas a estrutura da história está bem montada, rola direitinho. Evidentemente que é uma produção de amadores na frente da câmera, o negócio fica meio...

DC – Já o Boca de Ouro teve uma produção bacana... Como foi essa idéia de fazer naquela época Nelson Rodrigues?

NPS – Quando o Valadão me convidou, disse "Quer fazer o Boca de Ouro?", eu falei "Vamos nessa!", e ele: "Mas você não é comunista?", "Mas o que tem o cu com as calças? Eu já deixei de ser comunista há muito tempo, vamos fazer o Boca de Ouro...".

DC – Você já não se considerava comunista, marxista?

NPS – É, eu já não estava mais, já não tinha muita relação. Eu saí em ’56 do partido, o Boca de Ouro é de ’62.

DC – E você se afastou totalmente do marxismo? A idéia de revolução já não te interessava mais nessa época?

NPS – Não, acho que não tinha mais... eu fui à Tchecoslováquia em ’56, vi tudo lá acontecendo, o degelo, derrubando a estátua do Stalin... Quer dizer, aquele caminho da revolução era um caminho burro, que ainda dava em grandes cagadas, como em ’35, então eu não estava mais nessa não. Em ’56 houve o desligamento do Partidão, e nunca mais tive contato, mas sempre respeitei.

DC – Mas, por outro lado, o pessoal do Cinema Novo ainda acreditava, ou não?

NPS – Não... Era muito heterogêneo o grupo do Cinema Novo. Quer dizer... O Leon sim, uma cabeça marxista, organizadíssimo, o Cacá não, o Jabor não, Joaquim também acreditava...

DC – Então quando você fez sua leitura do Graciliano já era uma leitura...

NPS – Já da minha experiência com o Partido, somada à experiência do Graciliano.

DC – Vidas Secas feito em ’60 seria muito diferente do de ’63...

NPS – Seria outro filme, não teria nada a ver...

DC – Não teria Luiz Carlos Barreto... (Nelson ri) Como foi essa idéia da transformação da luz, feita pelo Luiz Carlos Barreto?

NPS – Naquele tempo, branco e preto trabalhava com filtro amarelo, para evitar luz muito forte, põe o filtro, aí corta cinqüenta por cento, e o primeiro plano fica sem luz. Então o quê que faz? Tem que iluminar o primeiro plano. Os americanos usavam arcos para iluminar, o chinfrim aqui usava um rebatedor, aquela coisa de papel prateado que o ator não podia abrir o olho... E o que acontecia com as nuvens? Ficavam escuras, volumosas, lindas, no exterior, então, adoravam... Era a fotografia do Figueroa, mexicano, e aqui quem fazia era o Ruy Santos, trabalhei com o Ruy Santos no filme O Saci, ele fazia esse tipo de fotografia. Era bom fotógrafo... Então a idéia era assim, tem que fazer um deserto, não ter nuvem, uma coisa inóspita, tem que fotografar a luz do lugar... Então a única forma foi essa, o Luiz Carlos propôs a câmera com lente nua, que é uma coisa dele que vem do Cartier-Bresson, é uma coisa que, aqui entre nós, os nordestinos, o pessoal do Aruanda, foi o Aruanda que inventou essa fotografia... Mas, para dizer a verdade, eu não vi Aruanda antes de fazer Vidas Secas, e o Barreto sempre foi por aí, já no Cruzeiro, com o Jean Manzon, que também é Cartier-Bresson, e ainda tinha José Medeiros, cria uma patota, Manzon, Barreto, Zé Medeiros, Luciano Carneiro, basicamente esses, que fazem uma fotografia à maneira do Cartier Bresson, muito bem feita. E é o Cruzeiro, eu não sei se vocês viram o álbum do Barreto, eu escrevi lá que o Cinema Novo começou no Cruzeiro, o "Brasil real", a preocupação de fotografar o "Brasil real", eles todos tinham essa preocupação, e faziam isso muito bem, com essa luz. Não dá para fotografar o retirante, a criança abandonada, com requintes de iluminação, tem que fazer com a lente nua. E a rapidez, e tudo isso, criou uma escola, realmente, se estendeu. Mas aí aquela reivindicação nordestina de que o Aruanda é que começou o Cinema Novo, depois veio o Glauber, e tal, a minha posição é a seguinte, como eu fui cooptado, eu acho que cada um tem seu Cinema Novo, e é verdade, quer dizer, o Cinema Novo também começou no Rio, com Arraial do Cabo...

DC – Que é quando Mário Carneiro botou a câmera na mão.

NPS – Pois é. Tinha vários Cinemas Novos... O problema da fotografia foi esse, encontrar um resultado que pudesse passar a sensação de um espaço inóspito, com uma luz vigorosa, que é seco, mesmo...

DC – E vocês tiveram vários problemas, com laboratório e afins...

NPS – Foi, o primeiro empecilho que a gente teve foi com laboratório.

DC – Na equipe técnica você mesmo contou que tinha problemas...

NPS – É que era uma combinação, do Barreto com o Zé Rosa, o Zé Rosa era o homem da fotografia do Herbert Richers, era operador de câmera, estava habituado a trabalhar assim, então ele via e dizia "Ih, vai estourar! Não pode usar assim que vai estourar, tem que pôr um filtro...", e aí ele discutia, "não, espera aí, tem que fazer...", já havia essa resistência, que era compartilhada, lá no laboratório, pelo chefe do laboratório.

DC – O José Rosa era contra usar lente nua?

NPS – Ele duvidava, porque estava habituado a fazer da maneira tradicional, e a gente dizia "Olha, vamos tentar, quando chegarem os copiões a gente vê, se não for bom, faz de novo, mas vamos tentar...". "Não, porque não pode, porque não pode", era uma sacanagem...

DC – E aí revelou lá mesmo ou mandou para o Rio para revelar?

NPS – Não, vinha tudo para revelar. Aí aconteceu o seguinte, normalmente vinha rolo de negativo para revelar, e tirava um metro de ponta para fazer o teste. Marcava ali, o laboratório fazia o teste e dava o tempo de revelação. E a gente escrevia assim: "Tem que revelar normal, não faça testes", porque sabia que, fazendo testes, eles iam corrigir o tempo de revelação, estava estourado, então era assim, não pode fazer teste, revela normal direto. Pô, o cara não aceitava!... "Peraí, eu que sou o dono daqui!", "Não, mas tem que fazer assim", foi uma briga, até que finalmente o cara aceitou, pereré-pão-duro, e o material chegou em Alagoas, fomos ver o copião no cinema da cidade, durante o dia, entrava luz no cinema, foi horrível, não via nada, puta, que tristeza... "Ah, não, não, vamos para Maceió, ver no cinema São Luiz, e de noite, depois que acabar a sessão vamos ver o copião lá, com uma projeção boa, com tudo fechado", porra, aí foi um desbunde. Apareceu aquilo e a gente "Ah, finalmente!", foi uma batalha, rapaz...

RG – Por ocasião de uma pesquisa que a Contracampo fez sobre os filmes mais queridos do cinema brasileiro, nós publicamos um texto do Waldemar Lima da época do Deus e o Diabo na Terra do Sol, em que ele reclamava da mesma coisa, que o revelador não queria revelar daquele modo, porque seria considerada uma revelação porca, e que, desde o nível técnico de foto até a revelação, fazer um cinema que tentasse quebrar os códigos estabelecidos do cinema mais clássico era bastante difícil...

NPS – É, porque acima da estética tem a técnica da Kodak, você não pode, é aquela coisa do subdesenvolvimento apavorado diante da Técnica, e tal... Pô, tem lá os padrões, eu quero romper aqui para ter tal resultado. "Não pode!" Agora, o bundão que está lá embaixo é mais importante que o dono da Kodak, parece que ele é sócio da Kodak... Qualé, pô, deixa rolar... Mas não, tem aquela atitude de subserviência, a deificação da técnica, fica com medo de cometer algum pecado. Mas depois deu tudo certo. Mas continua dando cagada, sempre. Eu fui ver uma cópia em vídeo da Riofilme, a Maria Ribeiro tá um carvão, e por quê? Na hora de fazer a cópia da telecinagem, o marcador de luz do laboratório também não acreditou, quis compensar o fundo estourado. Então, na hora de compensar a luz, o primeiro plano fica preto.

DC – Você me contou uma vez que o negativo do Vidas Secas estava começando a perder o cinza...

NPS – É, mas está no laboratório, vai ser recuperado. O negativo original.

DC – Vai ser recuperado? O Ministério da Cultura está cuidando disso?

NPS – Não! Ministério da Cultura porra nenhuma, chega!... eu sou do tempo do Sartre, do Jean-Paul Sartre, eu contei essa história para uma jornalista francesa, ela não acreditou, e é verdade, o Jean-Paul Sartre estava no Brasil quando o De Gaulle criou o Ministério da Cultura, e foram perguntar o que ele achava, e ele disse assim "La culture n’a pas besoin de Ministre" ("a cultura não precisa de ministro"), e cortou assim. "Mas isso nunca foi publicado na França?", e ela "Não!", mas não é possível, rapaz, ele falou ali na esquina. Enterraram isso do Sartre... nisso, eu sou Sartreano.

DC – Na época o ministro francês era o Malraux, não?

NPS – Era, o Malraux. Mas eu não estou brigando com o Ministério da Cultura, isso é brincadeira... Mas essa recuperação é iniciativa da Labocine, é a Labocine quem vai fazer.

DC – E o Barreto vai cuidar da fotografia?

NPS – Na hora ele vai lá remarcar a luz... E nosso projeto é fazer o relançamento do filme, vai ser a versão do diretor de fotografia, não tem a versão do diretor? Esse vai ser o filme que tem que ter a versão do fotógrafo, "Eu fotografei assim..."

DC – É a versão do produtor, no caso...

NPS – Também, nós todos somos produtores, eu produzi também. Naquele filme ele foi mais o autor da luz. Mas até hoje tem que brigar com os caras, "Não, pelo amor de Deus...". O marcador de luz nasceu ontem, o filme tem quarenta anos, então o cara que aparece com um marcador de luz tem a mesma visão tecnocrática, imbecil, e tal...

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(Entrevista realizada por Ruy Gardnier e Daniel Caetano)