O Destino do Crítico

Antes de tudo, claro, o medo.
Serge Daney

O começo da cinefilia, e portanto também da crítica, começa no medo ao cinema. Essas crianças medrosas, melindradas pelo que o cinema lhes entregava: não sua escuridão, ou sua tela enorme, ou o mundo das fantasias que lá perambulavam. Não é bem isso o que dava medo. É que havia muita liberdade no cinema. Mas essa liberdade não nos pertencia, e nós sabíamos bem disso. Era um medo que se confundia com culpa, a consciência culpada por só dispor dessa liberdade no cinema. É onde a crítica começa para mim: em perceber que o cinema era muito grande; ou antes, em perceber que éramos muito pequenos.

Estou convencido que só vieram a escrever aqueles que inicialmente sentiram medo. Que são os que guardaram consigo uma zona escura, de desconhecimento, de hesitação, de dúvida, os que se apaixonam pelo cinema, e não os que viram tudo às claras, os que facilmente souberam entender, explicar, julgar, por fim, descartar. É preciso uma parcela de incompreensão para se chegar à paixão. O crítico escreve por paixão. Paixão a este medo, ao perigo que havia os despertado.

Mesmo hoje em dia, as obras-primas ainda me provocam espanto – eu diria até mesmo que, para utilizar “obra-prima” com cautela, é preciso que a obra provoque um susto, uma mudez. A impossibilidade da escrita – a paralisia do medo, isto é, a incompreensão (a reação) a esta liberdade – é paradoxalmente a primeira chama do crítico a escrever. Não é o fato de “saber” que o leva a escrever, mas precisamente o de não-saber, de estar furioso consigo com esta lacuna incompleta, que agora passa a lhe incomodar. Mas, o que é novamente paradoxal, é que inicialmente o crítico não sente vontade alguma de preencher aquela ausência, esclarecê-la como quem justifica um mal-entendido. O primeiro impulso crítico, na realidade, está na descrição – a valoração, o julgamento só chegam (se chegam) mais tarde. Esta descrição, evidentemente, não é do enredo, ou de detalhes técnicos. É uma maneira de passar a transpiração da obra, seu tom, seu humor, sua personalidade. A descrição não entende nada, mas viu tudo. Vejo a crítica descritiva como a continuação da relação de um filme com um espectador desavisado, sem expectativas ao que se passará na tela, pego de surpresa, agora espantado, sem saber o que fazer dali em diante. Colocando-se então ao papel ele dá o testemunho de sua visão como que passiva; seu olhar, perdido entre tantos outros, tornado anônimo pela escuridão da sala; sua própria existência apagada pelo o que o atacou. Diante da indiferença do filme, e do próprio cinema, é como se ele nem estivesse ali. E ele se sente bem em sua clandestinidade, não querendo causar nenhum ruído, nenhum arranhão, nada que possa revelar a sua presença. Como uma criança medrosa, querendo vasculhar os cômodos de uma casa enorme, tentando passar despercebida.

Como se vê, o crítico não é uma pessoa que fala de si mesmo. Ele só se sente à vontade para escrever quando não está presente. Tudo o que escreve está, idealmente, incrustrado na obra, é também próprio da obra. Ele se esconde de si na obra. É abrigado por ela, mas numa casa solitária, e pouco calorosa. Instalado dentro da tela, ele não pode ver com distância. Ele simplesmente a abraça, dança ao seu lado, se submete ao que o filme lhe entrega. Este medo que não repele, mas atrai...

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Se a crítica se adéqua tão bem ao filme, e é como que moldada por ele, ela busca, portanto, se equivaler ao filme, se indiferenciar dele, mesmo se sacrificar por ele. Mas a crítica não é subserviente ao filme – ela não se abaixa ao filme; torna-se também, no limite, parte integral do filme. A crítica não é uma adição externa ao filme: não se trata de uma fórmula como “filme+eu” (cujo resultado é a “opinião”), “filme+significado” (a crítica como uma “explicação” ao filme), etc. A crítica transforma para forma de texto o que a obra provoca em sua experiência particular. Ao invés de somar, este processo, como é natural de qualquer transferência, tende a perder informação. Pode-se querer aí alegar que a crítica é incompleta diante da obra, que se mantém intacta, muda, secreta, dispensada de apresentações, absurdamente presente e material. Mas a subtração também é positiva, uma vez que é um processo de síntese e de concentração para aquilo que o crítico julga como o essencial da obra. Passar o testemunho de um filme em palavras sempre o transforma a algo mais elementar, mais simplificado, mais brutalizado. Tenho isso em mente como algo que seja independente da prolixidade que o crítico eventualmente tenha...

Aqui encontro um ponto de viragem fundamental: não se trata mais, como quando criança, de pincelar sensações fortuitas que a obra nos anima e nos leva a escrever. A crítica desenha, ao contrário, com um traçado bruto, de arestas pontiagudas e grosseiras, simples e bestas como as palavras. É um novo desenho da mesma obra, mais simples, feito sob um novo suporte. Sob esta perspectiva, vemos que a crítica também intervém e cria. Nesse sentido também, o crítico já está mais exposto, a força de seu trabalho é mais transparente.

É importante entender também que o processo da crítica não é impessoal. O crítico não é capaz de escrever sobre qualquer filme. Existem filmes que, de fato, o movem a escrever. Está é a primeira razão pela qual a crítica não é imparcial. Neste seu processo de seleção, que é intuitivo, forma-se aquilo que é do interesse do crítico, aquilo sobre o qual ele é impelido a escrever. Portanto, mesmo que a crítica fale “pela” obra, está implicado, ao interior do texto e do crítico, um interesse que lhe é particular de escrever sobre aquele filme, e não outro. Portanto, ele se foca sobre aquele objeto, vê nele uma razão especial de ser. Ele não só extrai sentido da obra, ele extrai o que lhe interessa para escrever. Mesmo que não o saiba, e até mesmo que não o queira, ali ele já está defendendo uma visão de cinema, o seu olhar pessoal sobre as coisas.

Isto quer dizer que o crítico se coloca no texto, afirma-se. É o que Calac Nogueira, em seu último parágrafo, chama de honestidade. Entendo por honestidade, não somente dizer se gostou ou não, em melhor ou pior termos. É mais forte que uma opinião. Na verdade, por honestidade, considero uma extensão da personalidade do crítico perante o mundo (como também é dito no texto de Michel Mourlet). Ela cria, assim, um limite muito bem definido dele com o mundo, mas não por egoísmo, ou arrogância, antes o contrário – por humildade, de certa forma, por reconhecer sua posição individual diante do mundo. Quanto mais o crítico se reconhece na obra, naquela parcela da obra que é sua, e este reconhecimento se espelha no texto, mais o crítico é capaz de provar a unicidade e valor do filme. E mais a crítica é capaz de criar. Mas ela não cria a partir do nada, do vazio; ela cria do interior da obra, e sua visão passa também a valer como a própria visão da obra. É então que a crítica refaz a própria trajetória do cineasta, pois ela conquista, através de sua honestidade, a capacidade de ser igualmente única em sua visão de mundo, em sua forma e estilo, na capacidade de sua expressão. Tal como os próprios filmes, não se passará ilesa da crítica: diante de seus limites tão bem definidos, articulados pela clareza e a honestidade, será necessário, aos demais, se posicionar. A crítica, neste momento, é tão forte quanto a própria sensação que a provocou – e, aos demais, pode ser ainda mais forte, pois ela transmite, não a energia evanescente de um filme, mas a significação, contida nesta energia, liberada via o poder da elucidação. A crítica torna os demais espectadores atentos, alertas. Um mistério veio à luz, a público, e já não se enxerga mais da mesma forma. Os filmes, sem nunca terem mudados, jamais serão os mesmos. Pode-se dizer que a influência da crítica, nesse sentido, pode ser exagerada, perniciosa – os automatismos na forma de olhar e julgar; o vocabulário que se torna modismo; os filmes e diretores a se ver etc. Isso não me interessa neste momento tanto quanto o fato de que a crítica torna-se tão criadora quanto os próprios filmes.

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Um mistério, ainda assim, persiste no ato crítico: se ela se molda sempre a partir dos filmes, se o seu movimento é centrípeto ao interior da obra, como pode ser também criadora, autônoma, em outras palavras, como ela pode ter se externalizado à obra? Vejo, em último grau, que o crítico recebe o filme como uma doença que precisa ser curada, expurgada. A crítica é o antídoto que, claro, contém porções diluídas da doença. Mas isso tudo não quer dizer que o crítico não goste dos filmes: quer dizer, ao contrário, que ele é o mais fraco a eles, o que é mais lesado, a vítima mais fácil. Estranha gangorra: aquele que, inicialmente, parece o mais carente e o mais apegado aos filmes, exatamente no gesto final de aproximação, termina por afastar-se, momento em que vence a incompreensão e se desfaz de sua fragilidade. O maior prazer do crítico não é sua demonstração de gostar dos filmes, mas, através da escrita e de um sentimento de maldade batailleiano, de ser capaz, em última instância, de descartá-los. Esqueça a cordialidade em quem diz “gostei” – não se confessa facilmente nossas doenças. Mas a crítica começa na dor desta confissão.

João Gabriel Paixão


 Abril de 2013