O Exercício do Olhar

A faculdade mais valiosa do crítico é, sem dúvida, seu olhar. É sua única arma (a escrita nada mais é do que sua retórica). O que molda o olhar de um crítico? De que ele é feito? Ele é composto tanto de sua cultura cinematográfica (seu conhecimento: técnico, filosófico, histórico) quanto de sua personalidade (sua visão de mundo) – em iguais parcelas (1). No entanto, sua habilidade fundamental é saber se colocar: o crítico não é um artista, é um observador, o que torna sua maneira de posicionar-se diante dos filmes uma virtude decisiva para ele. Posicionar-se da maneira correta implica, posteriormente, em levantar as questões que são corretas e pertinentes ao filme.

Insisto na ideia do olhar: um crítico tem a oferecer tão somente a sua sensibilidade. Sua maneira de olhar as coisas. Quando penso nos críticos que admiro e gosto de ler, o que me atrai neles é sobretudo o olhar. Penso em dois nomes enquanto escrevo este texto: Serge Daney e Inácio Araújo. Todo o prazer que experimento ao ler esses críticos deriva menos do conteúdo e das ideias repassadas do que no próprio exercício do olhar. É a maneira como se colocam diante dos filmes e, posteriormente, sua maneira de colocar as coisas, a capacidade de sintetizar em poucas palavras uma visão de mundo e de cinema, o que faz deles, a meu ver, críticos de fato, merecedores de uma relação mais longeva entre o autor e seu público leitor. Neles, um filme nunca é um evento isolado e arbitrário, mas um objeto em contato com uma percepção maior sobre as coisas – seja sobre o mundo ou o cinema. Me parece que todo texto crítico deveria ter como ponto de partida sempre uma mesma pergunta inicial: o que é o cinema?

São também críticos que jamais possuem respostas prontas, mas que preferem, ao contrário, constantemente levantar questões. Se colocar questões, hipóteses. Daney era evidentemente um homem de ideias, mas sua obra é composta principalmente por intuições, hipóteses, e o que é vibrante nele é sobretudo o raciocínio – o encaminhamento supera ou, em alguns casos, é a própria conclusão. Em Inácio, me comove particularmente sua maneira de se colocar diante dos filmes: sempre com humildade, mas nunca da maneira subserviente. A humildade é necessária para que se vá até os filmes, para escutá-los, perguntar a eles, e a não-subserviência para manter-se à altura deles, realizando um diálogo honesto e frontal.

Perguntar aos filmes: ser crítico passa, primeiramente, por perguntar aos filmes o que eles querem nos dizer (o que tentam e o que conseguem de fato nos dizer). Se a crítica pode ser considerada uma forma de construção de conhecimento (acredito que sim), este deve ser, no entanto, um conhecimento que deriva dos filmes. Deve-se sempre primeiro passar pelos filmes para depois chegar à ideia, se ela existir. É relativamente comum ver críticos fazendo o caminho inverso e aportando um conhecimento externo a fim embasarem sua visão sobre os filmes. A erudição vem a socorro, chega para “iluminar” o filme. O que se ignora aqui é que os filmes possuem uma luz própria, e é com essa luz que o crítico deve lidar. Penso que o gesto crítico envolve sempre algum desnudamento, tanto do autor do texto quanto do filme. O conhecimento prévio não pode obscurecer ou substituir o conhecimento que se obtém diretamente da matéria dos filmes. Não digo que citar Heidegger, Kant ou Agamben seja proibido, mas isso não pode esconder a essência intuitiva do trabalho do crítico. Dito de outra forma, o embasamento teórico não compensará a falta de tato, de sensibilidade do olhar.

Um crítico não é um “especialista”, ou seja, uma autoridade dotada de um determinado saber que “iluminará” o filme para o leigo. Ele é, antes, um espectador (e todo espectador é um crítico em potencial). É sua sensibilidade que importa. O “conhecimento” é como uma faca de dois gumes: se por um lado é inegável que o contato com os filmes “educa” nosso olhar, fazendo-nos atentar a certas possibilidades e a evitar determinadas armadilhas, por outro é relativamente comum que um “repertório” muito pesado acabe por embaçar a visão do crítico. Há tanto críticos que viram filmes “demais”, o que faz de seus textos um passeio confortável e acomodado na própria cinefilia, como aqueles que “leram demais” e tendem a um pensamento hipertrofiado, acadêmico. Esses últimos, uma vez diante dos filmes, complicam o que é simples e simplificam o que é complexo, desfazendo todo o encantamento misterioso das obras. Há também o caso de críticos donos de um olhar excessivamente domesticado (são como cães treinados para encontrar sempre o que há de positivo e respeitável num filme, ignorando que suas “boas intenções” acabam por anular o próprio exercício da crítica, tornando-a burocrática). O olhar do crítico deve preservar alguma selvageria, alguma violência e alguma solidão. Só assim é possível obter algo de fato dos filmes.

É preciso também franqueza e honestidade. Esta última qualidade é bem mais rara do que se supõe. Honestidade leva tempo, implica em se ter alguma segurança –  muitas vezes se é desonesto consigo próprio sem que nem mesmo se dê conta disso. E, retomando novamente Inácio: humildade sem subserviência. O crítico não está acima nem abaixo dos filmes. É preciso falar dos filmes sem parcimônia, sem colocá-los num pedestal. Extrair e roubar deles aquilo que importa para nós, em nosso íntimo.

Calac Nogueira

(1) O que nos leva a concluir que um crítico que careça de contato e visão sobre o mundo, ou que procure camuflá-la no texto, só desempenhará metade de seu papel, alcançando, no máximo, textos medianos.

 Abril de 2013