O Mito de Aristarco

A crítica não existe. Ela não pode existir na perspectiva que se atribui a ela, pela natureza mesma de seu propósito. Qual é então o propósito presumido deste exercício singular? Discernir as sensações provocadas pela obra, explicitá-las, ordená-las para tentar fazer penetrar na obra o leitor, supondo seguir o caminho inverso e passar da explicitação escrita à sensação bruta. É evidente que eu falo da crítica, não de paráfrases inúteis do relato ou de ideias que proliferam sob este nome. (É a história de um homem que... de uma mulher que... Reencontra-se a tese cara ao nosso autor da redenção pelo dom etc. O leitor vai ver o filme e constata que é, com efeito, a história de um homem que... de uma mulher que...; o crítico não estava enganado). A descrição deve ser de outra ordem. Nós não esperamos um relato do relato, tampouco uma enumeração de temas, que não nos esclarecem em nada sobre o valor estética da obra(1). Nosso desejo se direciona a um deciframento mais secreto desta, aquele que desnuda seu movimento, suas pulsações, seu mecanismo vital, comuns em suas metamorfoses a todas as criações de um homem lançado em uma realização onde sua carne e sua paixão estão engajadas. É dentro da ordem final dada às aparências que o artista se trai, muito mais, seguramente, que em outros estados anteriores da elaboração, onde as partes de acaso e de escolha são maiores.

Mas a crítica não tem por função somente descrever, ela mistura intimamente a esta operação um julgamento perpétuo de valor que carrega, algumas vezes, as mesmas palavras de signos diferentes segundo o humor que os inspira. É aqui que o ser da crítica torna-se extremamente ambíguo e, pelo que se observa com um pouco mais de precisão, termina por se evanescer.

Idealmente, a pura descrição do estilo poderia pretender a objetividade absoluta, se reportando a um sistema de referências que reside no espetáculo e não no espectador. No entanto, já neste nível as divergências de apreciação se sobressaem, porque de nenhuma forma o conhecimento do estilo se separa do sujeito conhecedor. A natureza do estilo é a causa, que é uma maneira particular de ser e de ver diante da maneira de ser e de ver particular de cada espectador. Uma mise en scène será relaxada ou tensa, precisa ou imprecisa, feita de improviso ou controlada, segundo a exigência com que o espectador norteia tais direções. Exigência da qual ele não é o mestre, exigência que faz parte dele próprio, e não de uma vontade abstrata de seu olhar. É por isso que a descrição implica julgamento: não existe um estilo por si mesmo, há apenas um conhecimento do estilo. Nós estamos em plena fenomenologia e em plena relatividade.

Se a apreciação das infraestruturas formais que condicionam a beleza se revela tão imprecisa, o que será da beleza vinda da parte mais distante do ser, e o que será de seu julgamento, cuja consciência encontra-se imergida sobretudo na região passional para receber, através de cem prismas, os clarões?

Assim, o deciframento que nós exigimos não pode ser senão uma introspecção na qual o crítico se desmascara tanto ou mais quanto penetra no autor. À medida que quer ir mais profundo dentro da obra, ele deve se esforçar antes nele mesmo, já que não é nunca a obra o que ele descreve, mas os sentimentos que agitam seu coração. Ah!, mas se há uma verdade incomunicável, é aquela dos movimentos do coração. Eu entendo incomunicável no sentido de indescritível a quem não os sentiu ou, ao menos, os pressentiu, incomunicáveis exteriormente. Toca-se o limite, então, de toda eficácia da crítica, se ela se propõe a convencer. Eu posso alinhar vinte argumentos, analisar o mais sutil de meu pensamento e minhas sensações: como, destas palavras desencarnadas que se extenuam para reter em suas malhas o gênio, passaria você à evidência do gênio, se não a tivesse reconhecido previamente? O absurdo da tarefa salta aos olhos: eu posso dizer que é admirável ou mau por tais excelentes razões; mas se você não sentiu na obra o que é admirável ou mau, como o sentiria nas minhas palavras? Eu me inclino mesmo a pensar que o fato de ser convencido posteriormente pelo vigor da argumentação e pelo brio da expressão seria um provável sinal de fraqueza de espírito.

É preciso ver, com efeito, que se eu me limito a dizer “isto é belo”, ou se eu analiso longamente as razões desta beleza, o processo é estritamente o mesmo e nada foi provado. O que abusa são os porque, os uma vez que e os então, que parecem acrescentar alguma coisa a mais. De fato, eles acrescentam as razões da minha escolha; mas essa escolha assim explicitada não é menos destacada do mesmo fundo irracional ou, se preferirem, subjetivo, pois o conhecimento das minhas razões não provoca nada ao outro com suas certezas. Ela se limita a fazer a escolha parecer ainda mais aberrante se o outro não é convencido de partida; e se ele o é, ajuda-o a ver com clareza nele mesmo e a consolidar suas posições. Há uma mesma diferença, em suma, entre o conhecimento das relações internas que governam a escolha estética e a origem desta escolha que há entre a ciência anatômica do ser vivo e a existência da vida. Aquela não explica esta mais do que a exposição de minhas razões estabelece valor. Este Porque não é mais do que um Como disfarçado. Ele desmonta o conjunto, mas não o demonstra. O todo do processo repousa no nível da evidência subjetiva, seja quais forem os esforços tentados para objetivá-la e fundá-la sobre o assento de uma experiência comum.

Você não me procuraria, ou melhor: você não me encontraria se não já tivesse me achado. Daí esses diálogos de surdos. O espetáculo é sempre divertido pelas boas vontades que se chocam, as certezas que se anulam, o fio de ouro da verdade que vagueia de um campo a outro, insensível ao ruído. Aqui, como alhures, giram planetas fechados que se esfriam, se ignoram e se chocam às vezes. Cada um tem as obras-primas que merece. Por que o sábio critica, se não possui ilusões? Se a crítica é impossível na perspectiva do diálogo, ela é inútil ainda assim?

Não se, renunciando a convencer, ela cava sua própria trincheira, reunindo alguns espíritos e instrumento de seus conhecimentos, fundados sobre evidências comuns de início. Eu quero louvar aqui uma atitude absolutista de crítica, a única que seja lógica em todos os seus termos e instruída de seus poderes. Acumulando afirmações indemonstráveis, porque elas não se sustentam sobre critérios exteriores, de leis matemáticas, mas sobre uma certa qualidade de ser, ela manifesta, no fim das contas, a ardência de uma vontade de potencia sobre o mundo e sobre o pensamento. Se eu me pergunto sobre os impulsos que me levam a escrever sobre um filme, ou ainda sobre uma mise en scène, o primeiro que distingo é o desejo simples, primitivo, de fazer triunfar uma ideia, ou um grupo de ideias, enfim, uma forma de mundo que eu acredito verdadeira, talvez porque a paixão do verdadeiro não seja senão a paixão de si mesmo, e impor ao outro a existência de meu ponto de vista é, na medida em que eu sou profundamente engajado, impor minha própria existência. Aquilo que me contradiz, me nega. O “para outrem” e o “struggle for life(2) têm desvios inesperados... E o segundo impulso, a serviço do primeiro, é o desejo de elucidar e de ordenar minhas sensações e minhas ideias para conferir-lhes claridade e coerência (a relação indissolúvel entre todas as partes), que são o signo de uma visão exata da realidade.

“Mas”, objetarão, “nessas lutas secretas e minúsculas onde se encontram seus demônios puramente pessoais do poder e do conhecimento, qual é então o interesse do outro? Fico satisfeito que escreva, mas por que leríamos?” Eu responderia que você lê para encontrar a confirmação dos seus humores; seja nos aprovando, porque pensamos do mesmo modo e talvez tenhamos a alegria de precisar o seu pensamento, o que lhe proporciona essa euforia do espírito que se reencontra e se dilata no espírito de um outro; seja nos detestando, o que lhe dá também um certo prazer acre, tanto mais vivo quanto sendo a nossa opinião mais categórica, sem apelos e desprovida da mais elementar prudência que fosse com relação à Posteriedade. Quanto àqueles que leem críticas para formar uma opinião, sinceramente eles me espantam e eu lhes tenho pena.

E, ainda assim, é preciso reconhecer que a crítica possui uma eficácia. Essa eficácia na qual apostamos, que nos convida a escrever e que repousa sobre nada mais do que a própria sedução das palavras. A crítica propõe títulos, nomes, marcos, que o leitor verificará e diante dos quais deverá ser obrigado a tomar uma posição. Depois, ela orientará os indecisos, influenciará os disponíveis, que não compreenderão mas seguirão, aqueles que não pretendem ainda julgar e que hesitam na entrada dos templos. Enfim, como dizia, mesmo não se tratando agora mais exatamente de um poder, ela confirmará dentro de sua verdade aqueles que já estão convencidos, descobrindo o implícito, e abrindo-lhes às vezes novas perspectivas na direção em que eles estão engajados.

A cada um a sua verdade, mas nós sabemos bem que só há uma verdade, porque só há um mundo e um olhar adequado. Os espelhos diferem no que eles deformam para mais ou para menos, sem o saber. Nós afinaremos então o nosso espelho, sem compromisso, sem acordos, na certeza da justiça, não esperando nada além de sermos reconhecidos pelos nossos próximos. A escritura não é mais do que uma palavra um pouco mais precisa em um deserto um pouco maior.

Michel Mourlet

(1) Isto não impede, bem entendido, à apreciação de um trabalho fílmico se remeter, para fortalecer seu propósito, à história, à trama, à circunstância anedótica de onde nasce e sobre a qual se articula a mise en scène, da mesma forma que ela pode ter em conta o diálogo, a música ou qualquer componente do filme. Eu, aqui mesmo [neste livro],  não me privei disso, em particular nos capítulos consagrados a Ozu e a Rohmer. No mais, repitamos que o cinema é uma arte narrativa, de maneira que ele conduz uma figuração do espaço através de uma duração. Porém, repitamos também que o propósito da crítica deve ser o de tentar dizer porque neste caso um relato ascende ou não ao status de obra de arte; e que este porquê não é implicado nos eventos do relato propriamente dito.

(2) No original, em inglês. Expressão típica da língua inglesa; literalmente “luta pela vida” (NT).

(Publicado originalmente em La mise en scène comme langage. Henri Veyrier, Paris, 1987. Tradução do francês: João Gabriel Paixão. Revisão: Calac Nogueira).



 Abril de 2013