Debate sobre a Crítica

CRÍTICA POSITIVA E NEGATIVA / CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O ATO EM SI DA CRÍTICA

JGP: Hoje fui ler o texto do Calac sobre Holy Motors e daí veio a ideia de comentar sobre algo que já estava pensando: sobre o comportamento da crítica no caso de um texto positivo e negativo. Lembro do Jacques Serguine no texto "Educação do Espectador": "Somente falo daquilo que amo; para mim, é uma questão de honestidade." Quando li isso na época, não poderia discordar mais! Achava fundamental a crítica, positiva ou negativa. Há de haver uma razão para aquilo que rejeitamos e talvez isso seja elucidativo para nós, os outros. Uma crítica destrutiva pode ser iluminadora. Sem contar que sentimos a coçeira na mão de escrever tanto num caso como no outro.

Passa um tempo, entendo melhor o que ele sentia ao escrever aquilo. A crítica negativa tem uma desvantagem, digamos assim, de ser muito reativa, um choque muito forte do crítico com a obra. Quando lemos uma crítica negativa sobre um filme que adoramos frenquentemente pensamos que o crítico "não entendeu o filme", ou então que não soube "entrar no filme". Claro que o oposto (ler a crítica positiva de algo que não gostamos) também deve existir... Mas fiquei pensando sobre isso, essa aceitação mais complicada da crítica negativa, como se ela tivesse um gesto diferente da crítica positiva, que é o gesto da rejeição, este "isso não". Todo texto, como é óbvio, deve provocar uma reflexão, e é onde ele deve se basear sua qualidade. Mas a reflexão da crítica negativa pode transmitir essa rejeição forte que cria um curto-circuito com o leitor que gostaria de se aproximar mais do filme ao ler uma crítica.

Um exemplo óbvio de texto negativo é “Da Abjeção”, do Rivette. O que é desconcertante no texto é que ele praticamente não fala do filme. Ele fala de um plano, aliás curtíssimo, que sequer me provocou o efeito que havia provocado em Rivette (o Daney também fala algo nesse sentido em "O travelling de Kapò"), e fala deste plano em tipo 10% do texto. O restante é sobre Mizoguchi, Ophüls, sei lá. E é um texto tão bom que não precisa do filme, basta compreender sua ideia.

E vocês, sentem uma divisão entre o texto positivo e o negativo?


AG: Estou inclinado a acreditar que um crítico se faz, sobretudo, pelos filmes que ajuda a construir ou estender após a projeção. Por isso, sempre me incomodou a celebridade da Pauline Kael, na minha primeira impressão, alguém mais conhecida pelos filmes que falava mal do que por aqueles que exaltava. Mas com o passar do anos, é evidente, a questão ficou mais complexa. Posicionar-se, às vezes, com virulência contra um filme também é um forma de amar, de defender a paixão por um certo tipo de cinema em detrimento de outro. Há um juízo de valor aí, não uma verdade, mas um afeto com implicações morais e estéticas. Como lembrado pelo João, considero o texto do Rivette um paradigma, pois ele aponta para essa possibilidade de construir um pensamento a partir de algo negativo (o filme do Pontecorvo). Quer dizer: transforma essa rejeição, também mencionada pelo João, em adesão a outra coisa (Ophüls, Mizoguchi). É uma afirmação do amor, tal qual o Pickpocket, do Bresson, quando Martin Lassale ao final da sua jornada diz: "Oh Jeanne! Que estranhos caminhos me levaram até você..." Não é de se espantar que um filme que nos desagrade seja capaz de nos conduzir a uma ideia preciosa.


CN: Sim, penso que a crítica negativa é melhor quando consegue apontar para questões que extrapolam o filme. Mudando um pouco a lógica: um filme ruim pode te fazer pensar em muitas coisas, ou pode não te provocar nada (já um bom filme sabemos que sempre provoca alguma coisa). Não adianta nada fazer uma crítica para apontar que o filme falha em tudo aquilo que tenta ou poderia construir (nesse caso, é como chutar cachorro morto). A crítica negativa será melhor se se concentrar naquilo que o filme faz "bem", naquilo que realiza plenamente, e que é problemático de alguma forma. 

Por outro lado, acredito plenamente que há filmes que se auto-sabotam, que se auto-destroem pela próprio contato com o tempo. Em alguns casos, o tempo pode fazer um papel melhor do que qualquer crítico: mais vale deixar que os filmes se apaguem na sua própria anodinia do que se exasperar diante de um galho seco. Penso nisso quando vejo um filme como Febre do Rato, por exemplo. Diferentemente de Baixio das bestas, que tinha algum interesse pela estética abjeta e pelo seu moralismo, neste novo filme vejo apenas uma estética morta do primeiro ao último plano. Alguém há de ver algo de interessante para dizer sobre o filme, mas eu sinceramente não vejo nada, e penso que o melhor é deixar que o filme encontre o lugar que lhe é devido no tempo. Não me interessa combatê-lo. Claro que sempre se pode estar errado, futuramente o filme pode se revelar uma obra impactante no cinema brasileiro, mas hoje é isso o que penso sinceramente. E me parece fundamental que o crítico compreenda sua atuação como algo circunscrito no seu tempo presente (podendo, eventualmente, mirar o futuro). No caso de Febre do Rato, eu confio no tempo. 


JGP: Sim, concordo com você dois. De fato, a crítica negativa (como também a positiva) que fica somente elecando características que não deram certo no filme, como se só pudesse observar detalhes que se desprendem do todo, não é uma verdadeira crítica. De forma que um bom texto crítico, para mim, sempre escreve sobre a obra em sua totalidade, aceitando-a ou rejeitando-a. Razão pela qual me é muito difícil escrever um texto que eu fale um pouco bem, depois um pouco mal... Prefiro focar sempre em uma coisa ou outra.

Um plus na questão da crítica que influencia o meio... Hahaha, do Hong Sangsoo, estreou na última sexta no Rio (acho que em São Paulo também). O filme só estreou na Sala 3 do Espaço Sesc Rio (antigo Espaço de Cinema), uma sala de 100 lugares. O Ruy Gardnier deu bonequinho em pé no Globo.

Fui ver o filme ontem e ele estava passando na sala 1 (a maior das 3 salas do cinema, com 250 lugares). Daí perguntei na bilheteria e me disseram que realmente tinha estreado na sala 3, mas passou para a 1 no Sábado, o dia seguinte à estréia.

O que é curioso é que eu havia dito pessoalmente ao Ruy que um filme como esse, com distribuição pequena, poderia ganhar uma sobrevida em cartaz. Pelo visto, foi até mais do que imaginava. As pessoas se baseiam sim na cotação do filme – acredito que é mais a cotação do que o texto em si. Holy Motors, por exemplo, foi bonequinho olhando e mingou no circuito.

Evidente que são só alguns filmes do circuito que reagem dessa maneira com a crítica (a de jornal, evidentemente), mas existe sim, inegavelmente.

Isso sem contar que a própria distribuição já foi influenciada pela crítica e especificamente pelo Ruy... Enfim...


WS: Antes de seguir com as novas questões do debate, gostaria de repensar uma das argumentações que utilizei: refiro-me, especificamente, ao uso da palavra "acrítico". Sem dúvidas a utilizei de maneira pouco precisa. Concordo que existe algum tipo de relação crítica quando uma pessoa, que não precisa ser cinéfila, ou estudante, ou algo do tipo, sai do cinema e emite uma opinião sobre o filme. Só não acho que esse estado introdutório possa ser visto como algo além de... introdutório. Há que ser ter algum critério para separar uma emissão de gosto, pura e simples, de um posicionamento estético, que permite vislumbrar um gosto, mas que vai além disso. Ou seja, não se pode dizer que um texto de Jean Douchet, uma redação de um jornalista qualquer em um caderno cultural sobre o blockbuster da semana e a opinião de um estudante de engenharia que acabou de ver Homem-Aranha cabem todas dentro do mesmo balaio escrito "posicionamento crítico". Não insinuo que deva haver uma separação elitista. Alguma separação deve haver, no entanto. Inclusive por motivos combativos: a crítica que eu adoro e tento praticar não tem qualquer relação com aquela praticada atualmente na maioria dos jornais. Sendo assim, quero poder dizer, ao me deparar com um texto escrito nas folhas ou gazetas espalhadas por aí: isso não é crítica.


JGP: Wellington, é exatamente por aí o que estava pensando. É porque isso é realmente um ponto interessante de debate: onde começa a crítica? O que separa a crítica, então, de uma coisa mais leviana? Tem a ver com saber colocar em palavras aquilo que sente com o filme – razão pela qual o gosto pela escrita, pelo amor de escrever, é algo muito forte (ou deveria ser forte) em um crítico, tão forte, digamos, quanto seu amor pelo cinema (o texto do Chris Fujiwara fala sobre isso). Além disso, podemos dizer que aquilo que o crítico "sente", a visão que ele tem do cinema vai se refinando, vai se sofisticando... Ele passa a reparar mais ativamente nos elementos de direção, roteiro, os componentes do filme... Mas isso (de saber "decompor" o filme; ou, pior ainda, de saber "lê-lo") não é o suficiente, embora essa visão mais ativa com certeza facilite (ou então crie um atalho) à reflexão.

Mudando de assunto, gostaria de comentar um pouco sobre a crítica, de maneira geral, e lhes convido a fazerem o mesmo, caso queiram. Lembro-me do Luiz Carlos Oliveira Jr. alegando que o crítico é um débil mental. Afinal, o que leva alguém a escrever sobre algo que ele viu? E que, ao ver, desempenhou uma atividade com o filme bem mais precisa, e mais intensa, do que ao escrever? A incompreensão maravilhosa de um filme, em sua completude que nada precisa dizer ou explicar, a falta de palavras, essa descida ao abismo, já não seria totalmente suficiente? Sem contar que, nesse tipo de relação com a obra, pode-se acabar chegando em textos esquizofrênicos, confusos, perdidos em si mesmos. Ou seja, um texto crítico, para esclarecer a obra, para acrescentar a ela um lado de lucidez, para, de alguma maneira, explicá-la, sustentá-la, não estaria neste momento (o da escrita) destruindo sua experiência inicial de incompreensão? E ainda correndo o risco de, ao retirar essa forte incompreensão, substitui-la por uma compreensão equivocada, ou superficial, e ainda necessariamente incompleta? Coisa de débil mental...

Mas, tentando responder a isso, eu diria que é porque sentimos necessidade de entender. Esse é mais um lado meu otimista: acho que há qualquer coisa que quer nos guiar à compreensão, à clareza. Pode ser que falhemos, mas é o que nos move.

Outra coisa interessante, mais ou menos em relação a isso, chama-se coerência. É uma palavra que tem se tornado meio antipática. Eu particularmente não gosto de usá-la. Mas o que impressiona na coerência é a capacidade de, por exemplo, ligarmos uma série de filmes uns com os outros e, mesmo que não consigamos nada dizer, mesmo que permaneçamos na incompreensão, ainda assim já vamos ter algo entendido, e talvez até melhor entendido, a partir destes elos. A criação dos elos, dos laços, é também a criação de um olhar para os filmes.

Por isso que – agora chego num ponto que me é importante – me incomodo com os críticos tidos como imparciais, querendo ter a mesma relação seja com o filme que for. Eles se ferem, antes de tudo, a si mesmos, pois querem ignorar suas intuições. E depois porque essa imparcialidade, tão cordial e respeitável com os filmes a posteriori, não nos serve de nada. A crítica deve almejar a visão da obra, não a aceitação à obra. Ela tem que visar a criação de um olhar, e não omissão de olhar. A imparcialidade pode explicar a obra, mas não explica porque a obra é grande e importante. Por isso, sua clareza não é suficiente. A energia que mais clareia é a que cria um olhar da obra. O crítico que faz o seu "hall de diretores", que não pára de citar as mesmas referências, não cria uma identidade para si – cria uma identidade aos outros, aos filmes, ao cinema. Sem contar que é uma relação mais verdadeira, e, portanto, mais duradoura.


MK: Eu sempre gostei de fantasiar que a crítica era uma espécie de filmmaking, como a gente já comentou por aqui. Como se a crítica fosse reter o tempo do filme, fazendo-o descorrer mais devagar. A crítica "perfeita" seria aquela que alcança a suspensão do sentido, suspensão da sucessão dos fotogramas. Se você pegar o texto do Lourcelles sobre Os Amantes Crucificados, eu diria que é mais ou menos isto o que ele alcança.

Me incomodo quando leio esses textos que procedem em alta velocidade, como os filmes. Há ainda os textos que querem condizer com o tempo do filme muito rapidamente, o que só os torna mais caricaturais, como alguns do (para falar de um crítico que eu gosto bastante de ler) Jean-Baptiste Thoret que eu andei lendo.

Tanto quanto eu me lembro, sempre gostei de imagens animadas, tanto das técnicas que as fundamentam quanto do que elas têm a dizer. E, sei lá, é só um soco no ar, mas não sei se é compartilhado pela crítica (aqui, grosseiramente, me refiro a ela como o "corpo profissional") esse prazer (ou amor ao qual o Wellington se referiu no último e-mail). No fundo, prefiro um face a face com silêncio total do que o barulho de um objeto inanimado.


WS: Não sou médico, nem programa anti-vírus, mas vou fazer um diagnóstico: falta singeleza na crítica atual, de internet. As aproximações do crítico em direção ao filme são quase sempre munidas de coletes à prova de bala. Lemos poucos textos escritos de peito aberto. O Michel Ciment fala um pouco sobre isso, em uma entrevista: “Nós íamos ao cinema e amávamos um filme mais do que outro. E então começávamos a racionalizar. Então, começávamos a aplicar a nossa estética, ou mesmo a psicanálise, ou até mesmo a sociologia, o que fosse, todas as ferramentas críticas. Mas a primeira coisa não era o fato de que o filme se encaixava na minha ideologia ou na minha estética. E assim podíamos amar Marienbad tanto quanto um western."

Esta fala do Ciment, claro, está conectada ao período em que a revista rival estava afundada no estruturalismo, no neo-Marxismo etc. A crítica de hoje não chega a sofrer do “problema da ideologia”. Não temos lido textos em que ela obscurece a visão do crítico. Em compensação, críticos que gostam de filmes que se encaixam em seu imutável sistema estético, não faltam. O Calac já falou um pouco sobre essa falta de abertura da crítica, dessa intolerância. Há pouca contradição nos críticos atuais e isso é sinal de falta de amor. O amor é paradoxal, incoerente. Poucos espaços na internet, aliás, são tão conservadores quanto as revistas de crítica (não todas elas, evidentemente). E, mais uma vez, conservadorismo é a armadura daquele que não ama – nem é preciso citar o título do famoso texto de Douchet sobre crítica para explicar o meu recorrente uso da palvra “amor”. O amor arrebata e destrói convicções, faz do certo o errado, e vice-versa. O conservadorismo, disfarçado de vanguarda, de vontade de estar em sintonia com o cinema do agora, do futuro, ao invés das velharias nefastas e cheias de fungos do passado, é como um pedaço de pano colocado por cima de uma lâmpada. Ao invés de vermos o brilho da paixão, que deveria ser o filme em si, e o efeito que este causa no crítico, um efeito tão incontrolável ao ponto de fazê-lo transformar-se na fofoqueira do bairro, que precisa dividir com os outros aquilo que viu e ouviu, vemos uma luz fraca, iluminando através do pano conceitual que, tal o santo sudário, ao fim exibe apenas um abstrato retrato do que foi a obra...  

Uma ideia solta: eu gostaria de ler mais textos sobre as paixões proibidas dos críticos.


Parte 1: Quem lê a crítica? Para quem a crítica escreve? Qual a relação da crítica com o universo do cinema?


 Abril de 2013