Enquanto meditava sobre o que poderia apresentar para fazer justiça ao convite de Damon Smith e Kate Taylor para escrever sobre crítica e cinefilia contemporânea, um amigo que não fazia ideia de que eu ponderava sobre esse problema me deu a resposta. Essa resposta ganhou forma a partir do link para um novo artigo de David Bordwell no site da Film Comment, chamado “Acadêmicos vs. Críticos: O par nunca se encontrará: Por que cinéfilos e acadêmicos não podem simplesmente se dar bem?”, onde, com a sua clareza habitual, Bordwell propõe sua visão sobre a atual configuração das abordagens de escrita sobre cinema. Não tenho desejo de entrar numa batalha com Bordwell, nem tenho a intenção de levantar maiores questões sobre o seu trabalho em geral. Quero apenas usar a oportunidade propiciada por este texto em particular dele para demonstrar, por contraste, meus próprios pontos-de-vista sobre a situação atual da crítica, da cinefilia e dos estudos acadêmicos de cinema.
Bordwell traça o antagonismo entre os professores de estudos de cinema e os “críticos cinéfilos” (retornarei a essa expressão) desde os anos 1970, quando os departamentos de ciências humanas em todo os EUA (escopo de referência tácito de Bordwell ao longo do artigo) foram tomados por algo que ele chama de “Grande Teoria” – basicamente, tudo o que vai da semiologia aos estudos culturais, com Althusser, Lacan e feminismo entre eles. (As ramificações da “Grande Teoria”, junto com outras partes do argumento de Bordwell aqui, foram desenvolvidos mais longamente em seu “Estudos de Cinema hoje e as vicissitudes da Grande Teoria”, um ensaio incluído no livro Post-Theory: Reconstructing Film Studies, de 1996, editado por Bordwell e Noël Carroll). Bordwell sente que essa hostilidade mútua é baseada em um mal-entendido. Ainda que os acadêmicos, ele diz, desdenhem da “film buffery” (1) pela falta de rigor, os críticos cinéfilos não apenas são “indispensáveis à saúde da cultura cinematográfica”, mas realizam de fato um “tráfico de ideias”. Por outro lado, apesar de alguns críticos (Bordwell menciona David Kehr e Joseph McBride) detestarem os acadêmicos de cinema pelo fato de estes rejeitarem o autorismo e usarem um jargão impenetrável, “nem todos os acadêmicos”, Bordwell nos assegura, “acreditam que o autor está morto, subscrevem a semiologia, desdenham de cinema popular ou sufocam o que é vivo nas obras sob o cobertor da Grande Teoria.”
Tanto por tanto, como diria a encarnação de Roland Winters para Charlie Chan (ok, eu acabo de sair do armário como um film buff no mais alto grau). Os trechos mais notáveis de “Acadêmicos vs. Críticos” são aqueles que concernem a divisão do trabalho entre críticos e acadêmicos.
Para Bordwell, crítica é igual a “avaliação e apreciação”. Sem dúvida, essa definição sintetiza adequadamente as contribuições de alguns críticos muito bons. Mas ela ignora uma tradição vital da crítica, encarnada mais ilustremente por Manny Farber, que, ao ser perguntado em uma entrevista sobre a parte da avaliação em suas críticas, respondeu: “É praticamente sem valor para um crítico. A última coisa que eu quero saber é se você gostou ou não; os problemas da escrita vêm antes disso. Não acho que tenha qualquer importância; é um daqueles apêndices abandonados da crítica. Crítica não tem nada a ver com hierarquias.” (Jonathan Rosenbaum, “They Drive by Night: The Criticism of Manny Farber”)
Ao reduzir a crítica à avaliação, Bordwell encarna um gesto que é característico dos acadêmicos. Já tive mais de um contato com professores de cinema ou estudantes de graduação onde, quando estabelecido que me importo mais com crítica do que em estudar os filmes em relação à cultura e à sociedade, meu interlocutor (sem dúvida aliviado por poder encerrar o assunto) conclui confidentemente que o que eu faço, então, é “análise textual.” Se tenho dificuldade em aceitar esse rótulo, é porque não tenho certeza de que o que está diante de mim na tela, e menos ainda o que recordo ou contemplo posteriormente, é um texto. Um texto é (1) um corpo de linguagem: composto todo de um único material; mas um filme não é todo composto de um único material, e nem todos os seus materiais podem ser chamados inteligivelmente de “linguagem”; 2) um corpo de linguagem, determinável e anatomizável; mas o que atrai os cinéfilos para o cinema talvez seja principalmente a instabilidade e a evanescência de suas formas, mais do que qualquer coisa tornada sólida; (3) alguma coisa objetiva, mas o que interessa a muitos críticos é o intercâmbio entre consciências, diferentes em cada época, nos encontros entre o filme e o espectador, entre o diretor e os vários outros elementos que atuam dentro e para o filme, entre um espectador e outro. Não um objeto, mas um processo, e não um processo enquanto objeto, mas um processo no qual o crítico também está dentro. Isso não é “análise textual” nem “avaliação”.
Onde repousam as diferenças cruciais entre as abordagens “crítica” e “acadêmica”? Até bem recentemente eu talvez desse duas respostas a essa questão – autorismo e cinefilia -, mas não acredito mais que estes sejam os principais pontos de distinção. O autorismo, depois de passar boa parte dos anos 1980 e 90 em descrédito, agora parece estar se saindo muito bem nos estudos de cinema, a julgar pelo número de monografias sobre diretores publicadas pela imprensa acadêmica e pelo número de disciplinas universitárias focadas em diretores. Quanto à cinefilia, sua emergência recente enquanto legítimo objeto de estudo acadêmico talvez sinalize que a nova safra de Ph.D.s em cinema é menos reticente do que a anterior em reconhecer a sua própria cinefilia.
Além disso, não é evidente que a cinefilia seja necessária à crítica. A ligação entre as duas, que Bordwell estabelece naturalmente em seu segundo parágrafo e mantém ao longo do texto sem examinar, precisa ser questionada. Essa ligação parece indicar uma mudança histórica maior. Pauline Kael, a crítica americana mais famosa de sua geração, não era menos feroz do que os colegas acadêmicos de Bordwell em sua animosidade contra a “film buffery” e faria pouco caso de alguém que quisesse pôr nela o rótulo de “crítica cinéfila”.
Se a crítica hoje é dominada pela cinefilia, e a associação que Bordwell faz entre os dois termos faz sentido, deveríamos nos perguntar como isso aconteceu. Deveríamos também perguntar se isso implica numa restrição da crítica: quer dizer, estamos perdendo algo de valioso com a ausência de uma crítica não-cinéfilia? (Na mesma extensão em que os escritos sobre cinema de, digamos, Kracauer ou Adorno ou, talvez mais apropriadamente, Dwight Macdonald são válidos para nós, talvez possamos medir a nossa perda pela ausência de figuras equivalentes no cenário contemporâneo). Ou isso tudo significa, como pode parecer, uma expansão da cinefilia?
Se uma tal expansão ocorreu, é devido ao amplo desenvolvimento da internet que a facilitou e a acelerou – desenvolvimentos que são bem conhecidos e cuja relação com a crítica já foi discutida muitas vezes, e que aqui, para pôr esse argumento em contato com o texto de Bordwell novamente, eu gostaria de conectar com a academia. Se a academia representa a profissionalização da cultura cinematográfica, a internet se tornou o lugar da desprofissionalização dessa cultura, na medida em que proliferam pessoas escrevendo sobre cinema de graça, ou, de todo modo, sem meios visíveis de suporte.
Talvez esteja aqui a pista real da fissura entre a academia e a crítica, uma fissura que é descrita em “Academics vs. Critics” em termos que podem ser já sejam obsoletos. O que os críticos rejeitam ao rejeitaram a academia talvez seja essa própria profissionalização da apreciação fílmica, a obrigação de se especializar, de tornar-se identificado a uma área relativamente pequena de conhecimento: você encontrará dificuldades em se dar bem como acadêmico de cinema se seu campo de estudo for a estética, mas suas chances aumentam se você pegar um ramo particular da “Grande Teoria”, uma cinematografia nacional em particular, ou estudos sobre os fãs da série Crepúsculo.
Além disso, a despeito de todas as maneiras encontradas pelos estudos acadêmicos de cinema para tornarem-se mais relevantes (ou mais populares), e de todas as formas encontradas pela crítica – em especial em sua forma “cinéfila” – para sê-lo menos, a academia permanece como um mundo à parte do lugar onde as coisas acontecem, como o próprio Borwell reconhece quando diz que os “acadêmicos também podem contribuir com novas ideias que os críticos podem experimentar nas linhas de frente.” As linhas de frente – produção, distribuição, festivais e tudo o que está entre e no entorno destes – podem ser um lugar interessante, e estar lá não é apenas viciante, mas pode levar a trabalhos pagos, o que não é uma consideração ruim para os críticos que conhecem a verdade das palavras de Shigehiko Hasumi, o grande crítico de cinema (e presidente emérito da Universidade de Tóquio – falávamos sobre o par se encontrar): “No início do século XXI, a profissão do crítico de cinema é semifictícia.”
Uma outra diferença entre academia e crítica tem a ver com a escrita. A crítica só pode ser escrita: pode haver escrita nas imagens e sons, mas é preciso ela seja consciente de si enquanto escrita – sendo responsável (como disse Barthes) por uma dimensão simbólica, sendo capaz de ironia, e sendo baseada numa certa insegurança da qual se deve sempre partir, indo em direção a um lugar que se sabe que não pode ser preenchido. Nem todos os críticos são bons escritores; mas um crítico deve ao menos querer escrever e amar a escrita. Esse amor é mais definitivo, para a crítica, do que o amor pelo cinema.
Provavelmente não há esfera profissional onde a falta de desejo de escrever e a falta de interesse na escrita seja mais endêmica do que na academia. O sistema do “publique ou pereça”, junto com a segurança de que o que for publicado permanecerá não lido (não infrequentemente, eu imagino, mesmo por aqueles que são pagos para editá-lo e avaliá-lo) garante a abundância de uma terrível escrita acadêmica, e ainda que eu não possa dizer com certeza que, em conjunto, os professores de cinema são piores escritores do que os professores de história da arte ou de literatura comparada, eu suspeito que este possa ser o caso (excluem-se daí próprio Bordwell e vários outros, desnecessário dizer).
Bordwell tem consciência da escrita como um valor da crítica, mas o que ele diz sobre isso é breve e um pouco reducionista. “Através de um uso habilidoso da língua, o crítico tenta transmitir a identidade única do filme e reunir, em um tipo de mimetismo tonal, os efeitos despertados pelo filme.” Sem dúvida uma boa parte da crítica tenta fazer isso, com mais ou menos sucesso. Mas mimetismo, tonal ou não, não é sempre algo que procuramos ou admiramos na escrita. O exemplo que Bordwell nos dá, Kent Jones falando de Adeus ao sul, é válido por conta do estilo de Hou Hsiao-hsien (“o tamanho das pessoas em relação ao que está em torno delas fica sempre no limite entre observação e envolvimento, entre respeito e interesse”); eu não descreveria isso como mimetismo, é mais como uma metáfora: o autor tem consciência da dificuldade de escrever sobre formas visuais baseadas no tempo utilizando a linguagem verbal e faz dessa dificuldade uma parte do assunto do texto. (Sei que é hora de baixar minhas cartas sobre o que é uma boa escrita crítica, então segue uma lista de alguns textos que já li muitas vezes com prazer: Bazin sobre Renoir; Rivette sobre Rossellini, Preminger e Lang; Film as film, de V. F. Perkins; Robin Wood sobre Hitchcock; os textos de Manny Farber e Patricia Patterson dos anos 1970; Persévérance de Serge Daney; Hasumi sobre cinema japonês).
O que talvez falte aos estudos acadêmicos de cinema é o reconhecimento da estética como uma categoria que mereça ser estudada. De fato, Bordwell utiliza a palavra “estética” duas vezes em “Academics vs. Critics”. A primeira é na observação irrepreensível de que a “boa pesquisa histórica frequentemente envolve adiar o julgamento estético”. A segunda é que é irônica: um grupo de acadêmicos que tabalha no “nível intermediário” está preocupado em “formular questões estéticas precisas sobre os filmes, seus marcos, seus espectadores, e em propor respostas em uma prosa lúcida.” Bordwell alega aqui que a estética, se não está florescendo, ao menos encontrou uma sala para desenvolver-se na academia, embora o fato de que ele consiga fornecer uma lista de profissionais atuantes nessa área (nove nomeados individualmente, além de “vários” [não nomeados] pesquisadores do cinema dos primórdios) sugira que eles permanecem o movimento de uma minoria. De todo modo, alguns talvez achem essas menções a um “nível intermediário” aterrorizantes, já que a tomada dessa zona pelos acadêmicos ameaça empurrar os críticos para ainda mais longe.
Mas o nível intermediários talvez não seja um território atrativo para os críticos de qualquer maneira. Após citar Kent Jones sobre Adeus ao sul como um exemplo da habilidade da crítica em evocar a “identidade única” de um filme, Bordwell cita sua própria abordagem de Hou (em Figuras traçadas na luz) como um exemplo de trabalho de nível intermediário, que busca “fornecer uma explicação causal e funcional para alguns efeitos de precisão e densidade pictórica.” O nível intermediário é a enumeração e a análise das condições da prática cinematográfica: uma poética, para usar o termo de Bordwell em seu trabalho. Sua tarefa termina após identificar todas as condições que são determinantes para um dado filme ou um grupo de filmes (mais precisamente, determinante para aquele filme ou aquele grupo de filmes enquanto uma amostra de “efeitos” notáveis), e o exaustivo esclarecimento do filme é de fato possível (e desejável).
Os objetivos da crítica são diferentes: é responder ao que é aberto, perturbador ou contraditório em um filme; é mostrar porque algumas coisas não imediatamente perceptíveis nele são profundamente interessantes; é reinventar, criar metáforas, encontrar mais e mais no infinito de um filme (em sua recusa a terminar); é segui-lo para onde ele levar (com o conhecimento dele ou não, e a despeito das intenções dos cineastas) e levá-lo aonde ele puder ir, talvez naquilo que ele possa revelar ou inventar em outros filmes (incluindo aqueles possam tê-lo precedido). A crítica não procura causas para explicar um efeito de um filme, mas busca intensificar a eficácia do efeito. (O pequeno livro de Frieda Grafe sobre O Fantasma Apaixonado da série BFI Film Classics, selecionado aqui de forma mais ou menos aleatória, é um bonito exemplo do tipo de crítica que, sem buscar explicar um filme, traz à luz, sabia e imaginativamente, as forças que atuam nele e as implicações do filme em outros filmes, na história do cinema, e na recepção de um filme; seu texto é repleto de sugestões provocativas, de insights iluminados e de lacunas inesperadas, pelas quais uma imensidão de possibilidades que estendem a visão do filme de Mankiewicz são reveladas).
Portanto, se a “Grande Teoria” busca nos filmes a afirmação de seus próprios temas e princípios, e se o “nível intermediário” explica os filmes nos termos das condições de sua aparição, há muito deixado ainda para a crítica fazer para além de avaliar e apreciar. A questão que precisa ser perguntada finalmente é sobre as condições nas quais a crítica deve atuar em suas funções. Bordwell não reconhece a realidade econômica subjacente da situação, na qual, enquanto existe muito pouco suporte aos críticos de cinema (e aproximadamente nenhum para os “críticos cinéfilos”), uma quantia considerável de dinheiro é disponibilizada para a academia. (É claro que os professores sempre reclamam, como todo mundo, sobre os cortes de orçamento, mas espero que eles compreendam que se eles têm um salário regular e seguro-saúde, estão melhores do que 98% das pessoas que fazem crítica de cinema). Consequentemente, os críticos não só são forçados a pegar trabalhos parciais como professores, mas aspiram, conscientemente ou não, a emular os estudos acadêmicos na sua própria escrita não-acadêmica. E não há uma certa dissimulação no anseio melancólico de Bordwell por uma “aproximação” entre críticos e acadêmicos? Afinal, se há pessoas poderosas dentro dos estudos acadêmicos de cinema (e aparentemente há pelo menos uma) que acreditam que Dave Kehr, Joseph McBride e outros críticos são importantes, eles poderiam começar repassando alguns trabalhos e dinheiro eles próprios (McBride, na realidade, é professor associado na Universidade de São Francisco, então acho que ele está remediado).
Tentarei, para resumir, ser tão claro e direto quanto Bordwell. O que é a crítica? O processo de traçar os efeitos de um filme ao escrever, buscando prolongá-los e intensificá-los. Há uma fissura entre a crítica e os estudos acadêmicos de cinema? Sim, porque a academia não reconhece o processo da crítica como algo que deveria ser estudado ou ensinado e que mereça suporte institucional. Quais são as perspectivas para os críticos de cinema? Hmm... se você ainda não tem o seu doutorado, irmão, é melhor pôr alguma força nisso.
Chris Fujiwara
(1) Film buffery: expressão em inglês usada para indicar obsessão e vício em cinema.
(Traduzido do inglês por Calac Nogueira. Link original: http://projectcinephilia.mubi.com/2011/05/23/criticism-and-film-studies-a-response-to-david-bordwell/.)
Abril
de 2013
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