Uma televisão para a América Latina?
Prevista para estrear em Março de 2004, a TAL (Televisão América Latina), aparece como a promessa de um inovador projeto de integração midiática no continente. Com a proposta de investimento em uma programação à cabo voltada a exibição das produções independentes provindas de tvs universitárias, comunitárias e canais públicos de 17 países, pretende promover a integração entre pólos produtores, programadores e público de forma nunca antes vista. Na batalha diária por uma televisão mais aberta a diversificação estética e temática, fugindo dos estereótipos das grandes emissoras, a TAL aparece como um possível território de cultivo de uma cultura "da" e "na" TV que se interesse pela pluralidade e pelo embate estético. Um grande desafio, tanto estrutural quanto político, a TAL passa agora pelo momento de definições de suas formas de funcionamento, linhas de programação e políticas editorais. Nessa pequena entrevista, Gabriel Priolli (presidente e idealizador da TAL) conta um pouco de que como se planeja o funcionamento dessa tv (inicialmente, um canal à cabo distribuído também às instituições parceiras), e se coloca diante de questões conceituais ainda em processo de formulação. Simples expansão de mercado ou real possibilidade de renovação? Muito cedo para responder. Vamos, então, às perguntas:

Contracampo: A perspectiva de implantação de um canal de interação audiovisual entre os diferentes países da América Latina aparece hoje como a possibilidade de uma maior integração cultural entre os países do continente – o que parece ser urgente, no entanto, se pensar também é: que tipo de políticas práticas dentro dessa estrutura poderão evitar que se confunda integração de programação com homogeneização estética? No Brasil, temos o caso da Rede Globo de Televisão como protagonista de uma integração da identidade audiovisual brasileira (com seus prós e muitos contras): que tipo de estrutura de produção e programação poderá ser implantada na TAL para implementar uma integração que respeite as regionalidades de conteúdo, estética e programação entre os diferentes países da América Latina?

TAL: A programação da TAL será cooperativa, isto é, será um mosaico do que de melhor é produzido pelos canais, produtores e instituições associadas ao projeto. Essa grade somando o melhor do que já existe valerá para os primeiros tempos da TAL, que depois investirá em produção própria, sempre em articulação com os seus parceiros. Teremos um formato de operação, portanto, que garantirá o multilateralismo nas abordagens, visões, linguagens e tudo mais. Não nos interessa a homogeneidade, de forma alguma. Embora tenhamos uma forte identidade comum, temos grandes diferenças na AL e elas devem aparecer no canal que pretenda representar a cultura da região. Considere também que, exatamente por ter um modelo cooperativo, por se propor como um canal da América Latina para ela mesma - e não do Brasil para ela -, tudo na TAL será discutido e pactuado com os parceiros. As definições mais amplas sobre a programação passarão, necessariamente, por esse processo de debates. E, assim sendo, tudo o que eu lhe disser no momento será a minha opinião, ou no máximo a do grupo brasileiro que deu o pontapé inicial para a criação do canal.

Contracampo: No sentido dessa construção ou dedicação a diferentes identidades, uma das coisas que me chamou mais atenção no site da TAL foi a faixa prevista para a Memória da TV. Uma das marcas mais constantes e um dos pecados mais recorrentes da televisão (como costuma ser praticada) é justamente o seu desinteresse e, eu diria, incapacidade funcional de construir memórias e, conseqüentemente, auto-crítica. Além de programas celebratórios (linhagem VideoShow) é raríssimo podermos rever imagens e programas televisivos de décadas passadas, principalmente no sentido da releitura crítica e cultural (não apenas dos eventos narrados, mas da forma de se fazer a TV hoje e ontem). Gostaria que você falasse um pouco sobre o que está sendo pensado para essa faixa e da importância dela.

 TAL: A memória da televisão terá importância na nossa grade e será abordada de forma crítica, como convém a um canal que quer fazer cultura, e não apenas se regozijar na celebração de uma latinidade mitológica, ideológica, que se faz míope para as nossas contradições. Queremos trabalhar a História como matéria viva, seja ela a da própria TV, seja de qualquer outra área. Mas o grande problema, no tocante ao material antigo de televisão, é a precariedade dos arquivos e a péssima conservação das fitas. Exibir esse material, em geral, exige restaurações e remasterizações que são caríssimas, e que certamente estão fora do alcance inicial do orçamento da TAL. Trabalharemos com a memória da TV, portanto, progressivamente, e na medida de nossas possibilidades.

 Contracampo: Sempre que se fala em "diversidade cultural" na televisão, vemos esse discurso elogiar uma diversidade temática muito pouco interessada na descoberta de novas estéticas e formatos para a televisão. O recente fenômeno da invasão dos "reality shows" europeus no Brasil só vem reiterar a fragilidade do investimento brasileiro em "tecnologia de formatos" e a inegável dependência das experimentações estrangeiras para a renovação de conceitos na tv brasileira. De que forma conceitual e prática a TAL pretende não apenas incentivar a diversidade temática mas também a pluralidade de criação de formatos e novas formas de relação estética com o público latino-americano?

TAL: A TAL não busca uma grade de programação que fique engessada pela rigidez dos formatos escolhidos. Vamos trabalhar prioritariamente com documentários e programas culturais, que, em si, já apresentam uma grande variedade de formatos e linguagens. Isso será aceito e estimulado pela TAL. O estímulo à criação de novos padrões televisivos é uma meta central para uma emissora que pretende fazer cultura, e não apenas entretenimento.

Contracampo: Muito se fala em "televisão de qualidade" e "lixo cultural" ao se referir à necessidade de uma renovação da televisão aberta brasileira. Nos canais de Tv a cabo (GNT, Canal Futura, Senac, entre outros) onde essa suposta "qualidade" seria mais praticada, o que se vê hoje, primordialmente, é uma programação voltada para o que poderíamos chamar de um jornalismo cultural televisivo filiado aos clichês culturais do "folclore", da "cultura popular", da "boa forma" e do "marketing social". Essa tão cantada "qualidade" em televisão estaria necessariamente ligada a essa função instrutiva/ferramental? Qual linha de programação a TAL pretende tomar nesse sentido? Quem estará "credenciado" a essa suposta qualidade?

 TAL: Qualidade em TV não é privativa de determinados gêneros de programação. É possível fazer TV de qualidade em todas as áreas: a dramaturgia, o show, o jornalismo, o esporte, em tudo. No caso da TAL, buscaremos a melhor qualidade possível naqueles gêneros que exploraremos prioritariamente, a saber os documentários e os programas culturais (que tanto podem ser debates, como entrevistas, como shows). A TAL será uma emissora cultural na tradição da maioria de suas associadas, que deixam as manifestações da indústria cultural para as emissoras comerciais, tratando-as apenas marginalmente, e de forma crítica, e concentrando-se mais naqueles aspectos culturais que são negligenciados pelo mercado. Isso não significa que queiramos fazer uma emissora alternativa, muito menos de embate à indústria cultural. Apenas desejamos ocupar os espaços de expressão da cultura que não existem nas televisões privadas que atendem a América Latina. Apostamos mais em complementariedade do que em alternativa, e em boa vizinhança do que conflito.

 Contracampo: Alguns programas ditos "inteligentes" na TV a cabo muitas vezes acabam por seguir a mesma cartilha internacionalmente homogeneizada de apresentação e lay-out norte-americano. A "qualidade" na televisão é meramente uma questão de conteúdo e apuro técnico? Programas ditos popularescos não são, muitas vezes, muito mais integrados às tradições culturais brasileiras do que aqueles programas que falam "sobre" elas? A TAL se pretende uma televisão "sobre" ou "da" América Latina? Telenovelas realizadas por produtoras independentes, programas de auditório e humorísticos teriam espaço nessa programação?

 TAL: A questão é pertinente e merece uma reflexão mais aprofundada que ainda não fizemos na TAL. É possível que, a partir de determinado momento de nossas experiências de programação, e diante da perspectiva de atingir a grande massa telespectadora do continente através de canais abertos, tenhamos de explorar os gêneros mais populares de programação. Será um grande desafio fazê-lo de forma inovadora e substantiva, preservando os objetivos culturais do nosso canal. Mas, na configuração inicial, ele será um canal por assinatura, distribuído por satélite ou cabo, e baseado numa programação de documentários e programas culturais. Telenovelas, shows de auditório e humorísticos não estão previstos na primeira fase.

Contracampo: Quais os principais parceiros do projeto (apoiadores e televisões afiliadas) até agora? E que em pé de implantação está a TAL, hoje? Como uma pequena televisão comunitária ou de bairro pode buscar se integrar ao projeto? 

TAL: Já estão associados conosco a TV Cultura de São Paulo, a STV, a Radiobrás, a TV Justiça, a TVE da Bahia, a TVE de Mato Grosso do Sul, a TV UNAM do México e a TV Ciudad de Montevideo. Assinou conosco também a Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), um organismo multilateral. Estão em fase final de tramitação jurídica os acordos com o Canal Futura, TV Escola do Ministério da Educação, Rede Minas, MultiRio, TV Câmara, TV Senado, TVE do Rio Grande do Sul, TV Cultura do Pará, TV UNIFESP, Instituto Cultural Itaú, Funarte, Instituto Moreira Salles, TV Horizonte (BH), Canal Saúde, Canal 7 de Buenos Aires, Canal 11 do México. Estamos negociando com a TVE do Rio de Janeiro, TVE do Paraná, Museu da Imagem e do Som (SP), Canal 22 do México, Novasur do Chile, os 48 canais universitários existentes (no cabo ou abertos), e mais dezenas de canais culturais, educativos ou informativos de toda a América Latina. Neste momento, uma de nossas diretoras está viajando por 17 países da região, fazendo articulações. Outro diretor está na Argentina, discutindo com os canais do país. Entre os patrocinadores contatados, e com os quais estamos negociando, estão o BNDES, Natura, Telefonica, Banco Santander, Ambev e muitas outras empresas e instituições do continente. Os canais comunitários também nos interessam e iniciaremos em breve as articulações também com eles. Estamos às ordens dos que nos procurarem antes disso.


Entrevista
realizada por e-mail por Felipe Bragança