Um Passaporte Húngaro
Sandra Kogut, Brasil/França/Hungria/Bélgica, 2001
Há um filme evidente em Um Passaporte Húngaro. Também há um outro sugerido pelas questões levantadas, e tocadas para a lateral, ao longo do percurso narrativo. O filme evidente é uma kafkiana perambulação pelas burocracias estatais, questão antiga dentro da vida moderna. Já o filme tocado para a lateral trata da construção constante de identidade individuais mediadas-mas-não-limitadas pelos caráteres nacionais. Questão moderna e também atual. Como essa última questão abandonada pelo caminho têm potencial temático-estético superior à questão priorizada (a burocracia), ao menos para a amplitude de uma discussão contemporânea e para as possibilidades da linguagem documental, com a diretora levada à condição de tema, o filme projetado apenas esboça quão bom poderia ter sido caso elegesse o aspecto secundário como principal. E o principal viés adotado é apenas o que vemos lá na tela (não a partir dela): a labiríntica saga burocrática empreendida pela diretora para conseguir cidadania húngara. Ela vai e volta às embaixadas e consulados para entregar várias vezes e sempre continuar devendo os documentos necessários para tirar seu passaporte. Não basta provar que seu avô nasceu em Budapeste. Tem ainda de aprender a língua e obter informações sobre a Hungria para fazer uma prova de admissão à nova cidadania.

Abrem-se, a partir daí, dois caminhos. Um é o mais óbvio: tem como diretriz a insistência da realizadora em conseguir seus papéis de européia e o aparente espanto diante da suposta descoberta sobre a estreita ligação de identidade com nacionalidade e de nacionalidade com a cidadania controlada pelo Estado. Será mostrado durante sua peregrinação que as histórias individuais e coletivas, ainda hoje, tem nos governos o coletor e guardião de suas evidências. Ou o cidadão do mundo tem registrado seus passos em seu país, de origem ou de adoção, ou não terá existência no museu internacional da humanidade. Para conseguir seu documento, a realizadora tem de provar, com muitas provas, a trajetória do avô da Hungria ao Brasil. Tem de encontrar essas provas de um Estado para entregar a outro Estado. Para a realizadora, há nisso um absurdo, supõe-se a partir da própria decisão de se documentar essa jornada. Deveria ser mais fácil, sussura o filme, termos as origens reconhecidas. Reconhecimento pelo Estado, não por ela mesma. Sandra Kogut filma a própria história como se fosse de outra pessoa. Não se reconhece em suas origens. A raiz se quebrou em duas gerações, assim está posto pela ausência da colocação dela. Voltaremos a isso adiante.

O outro caminho aberto pelo filme leva à reconstituição documentada em arquivos, e narrada pela avó e pelos tios, do processo migratório de judeus europeus para o Brasil. Em suas visitas a órgãos oficiais, a diretora aprende que seus antepassados, como outros imigrantes do Leste Europeu na primeira metade do século, também trocaram de cidadania. De nome e religião até. Optaram pela reinvenção do "eu público" e pela mudança para outro país de modo a não caírem na malha fina da patrulha mundial anti-semita. Durante o aprendizado sobre sua pré-existência, com a qual não demonstra ter qualquer intimidade, a realizadora passa a se revelar sujeito histórico, único como todos, mas fruto também de um contexto amplo, cujo ponto mais visível é a origem húngara e o judaísmo. Ela passa a ser vista como indivíduo atado à história do século XX. Na realização do filme, parece descobrir isso. E sua inserção no passado se dá também com imagens de Recife, Budapeste e do Rio em um tom cromático memorialístico, como se aquelas imagem filmadas no século XXI fossem de antanho. Sandra Kogut tenta dar imagem ao passado em seu presente.

Voltamos à questão da origem e da identidade, alavancada por esse processo e posta de lado para se valorizar a questão da burocracia. Um Passaporte Húngaro é mais uma visão irônica sobre os Estados e menos o tatear da realizadora sobre sua pré-existência. No entanto, há uma câmera subjetiva, um eu assumido, expresso na busca dela pelo documento: é a própria trajetória que ela está filmando. Partimos do particular para se revelar o geral, da experiência dela para se mostrar todo um estado de coisas. Já o movimento contrário, do geral para o particular, não está ali tematizado. Não sabemos jamais qual a motivação dela em obter a cidadania húngara. Pode ser por questões práticas, para facilitar o deslocamento pela Europa e para residir/trabalhar em países europeus, ou por razões afetivas, motivadas por um desejo de construir laços com antepassados e de ter o reconhecimento de uma origem - mesmo aparentando ser deslocada em relação a essa mesma origem buscada. A diretora é até questionada sobre isso. Por que deseja um registro de identidade húngaro se nada sabe sobre a Hungria - nem idioma, nem cultura, nem história, informação alguma? Os húngaros com os quais tem contato parecem exigir que a candidata à "hungaridade" mereça o vínculo oficial pretendido. Ela não reage quando perguntada a esse respeito. Parece lidar com a questão apenas como matéria-prima para ser convertida em um filme. Deixa de ser personagem para ser apenas um olho atrás da câmera. Não revela se tem alguma intimidade com sua ascendência, se teve alguma influência da cultura húngara na formação ou se é uma brasileira globalizada sem nenhum laço com raízes do passado. Encolhe o alcance esboçado.

Em imagem, aliás, ela jamais reagirá. Porque a primeira pessoa existe ali como procedimento narrativo e não como objeto do filme. A câmera-voz-narradora não mostrará a própria imagem e não se converterá em personagem. Talvez por simples pudor, talvez por falta de conceito. Não seria um problema se as questões vindas à tona não pedissem um maior escancaramento de subjetividade para sair do enfoque convencional em um trajeto como o registrado. Embora as pessoas falem com Sandra Kogut, nunca para a câmera diretamente, não vemos a reação dela às pessoas. Como ela não filma entrevistas, mas conversas com ela própria, temos uma interação pela metade. Pela metade também ficará a ponte geracional-histórica entre as reivenções de identidade de seus avós imigrantes, que fogem da Europa para o Brasil por questões práticas, e seu caminho contrário do Brasil para e Europa em uma agora opcional busca de nova identidade, mas provavelmente também por questões práticas. Nos dois casos, como é explicitado em uma parábola sobre o andarilho (indo sempre para casa, vindo sempre de casa), a identidade é múltipla. Está menos derivada de um lugar/raiz e mais do deslocamento por lugares. Esse paralelo de contrastes entre a avó e a neta, uma fazendo caminho contrário ao da outra, por diferentes motivos e momentos históricos, é escamoteado pelo fato de a diretora, modestamente, ser apenas a narradora e não também sujeito de seu filme.

Cléber Eduardo