Seabiscuit – Alma de Herói
Gary Ross, Seabiscuit, EUA, 2003
A crítica francesa, no limiar da década de 60, foi a primeira a destacar com mais vigor que o cinema americano de estúdios tinha uma força advinda do seu sistema que muitas vezes suplantava o próprio interesse que um filme e/ou autor podiam tentar impor por si mesmos. O modelo de realização é parte de uma imensa máquina produtora de sentido, de tal forma internalizada que esta é a principal responsável pela criação de um discurso (e da forma deste se articular) de maneira que, muitas vezes, há um interesse maior em perceber-se esta máquina (efetivamente fascinante) em movimento do que o específico de um determinado filme. Seabiscuit, de Gary Ross, é um típico filme onde este efeito se sente.

Mais do que do formato narrativo do filme, que discutiremos a seguir, esta sensação vem do trabalho que o filme faz de mistura dos dramas pessoais dos seus personagens com a Grande História do país. Esta talvez sempre tenha sido a maior qualidade do cinemão americano: a capacidade de articular com enorme clareza um discurso que, sob o disfarce do cinema de gênero (muitas vezes "escapista"), era profundamente revelador de uma construção e compreensão do mundo, em inúmeras das vezes (como aqui) passando este processo por uma reconstrução histórica que reordena o mundo de hoje a partir do passado. Neste sentido, Seabiscuit é, em si, um exemplar pouco interessante deste artifício, uma vez que não parece acreditar na capacidade da sua narrativa criar esta correlação por si, fazendo questão de inserir sequências documentais e uma narração em off que explicitam a metáfora do cavalo e seus treinadores, que superam as dificuldades, como símbolos do país na época da Grande Depressão. Metáfora óbvia em si, mas que ganha interesse quando pensada no atual momento em que os EUA tentam enfrentam enorme resistência, muito menos de ordem militar do que cultural e política. Trata-se de um momento onde os americanos parecem sentir-se confrontados a provar porque, afinal de contas, o seu modelo de vida seria tão melhor do que os outros, o que os tornaria tão especiais assim. Reafirmar a crença em certos ideais norte-americanos seria, então, essencial e urgente.

Neste sentido, Seabiscuit ganha maior interesse do que poderia ter num primeiro olhar, acima de tudo pelo seu desejo claro de ser um filme antigo, ou melhor, à antiga. Seabiscuit parece querer conscientemente renegar o cinema de atrações audiovisuais da atualidade, renegar Matrix, Panteras e afins, pregando uma história de ação e sentimento "como se fazia antigamente" (como diriam nossas avós). Se os americanos são criticados por sua ostentação material, por sua violência e belicismo desenfreados, por seu cinismo pós-moderno e falta de História, precisariam de um outro modelo a cantar como o "american way of life" que não o que estes filmes parecem pregar. Só que esta filiação a um cinema antigo se dará não pela cópia atualizada de um determinado modelo audiovisual (como fazem os fascinantes e auto-reflexivos Abaixo o amor e Longe do paraíso), o que sempre cria a necessidade de uma releitura, tal a estranheza do seu latente anacronismo, que força que nos reposicionemos quanto ao material apresentado, e portanto quanto ao modelo original. Seabiscuit incorpora sim as técnicas de filmagem atuais, mas buscando sempre remeter a um sentimento anacrônico, a uma apreensão mesmo anacrônica do cinema pelo espectador, e mesmo pelos realizadores. Ao contrário dos filmes acima citados, este de Gary Ross parece indicar que o mundo, assim como o cinema, já teve dias melhores, e mesmo que usemos os aparelhos mais modernos será para relembrar isso. Seabiscuit parece um canto de cisne menos a uma América melhor, e mais a uma crença audiovisual num modelo de América melhor. "Este são os EUA que queremos que o mundo veja", nos diz o filme (que pelo menos não é tão dantesco nesta tentativa quanto o proto-fascista Cine Majestic).

No que diz respeito a sua construção de linguagem, o filme parte de um daqueles subgêneros que poucas vezes são descritos ou estudados, mas cujo entendimento das regras é bastante claro tanto para os espectadores quanto para os realizadores (no caso, o de "filme de esporte"). O filme de Gary Ross já parte do pressuposto de que, no seu encadeamento narrativo, está dado desde o início do filme todo o desenvolvimento que o roteiro terá, e, portanto, o interesse da platéia (e do sistema de produção) não é pelo que acontecerá no filme, e sim em ter suas expectativas cumpridas, vendo de que forma isso se dará. Não faria sentido, portanto, criticar o filme por ser previsível, pois faz parte da sua gênese esta característica, e quebrá-la sim seria um erro. Não importa que vejamos as mesmas histórias, e sim que isso se dê sempre com pequenas "novidades", que seriam aquilo que emprestaria alguma idéia diferente aos filmes. No caso de Seabiscuit, isso incluiria a escolha do turfe como esporte da vez (certamente um dos menos comumente filmados), e principalmente o domínio de uma técnica "surpreendente" que filme "corridas de cavalo como nunca antes vistas". Se você consegue emprestar este verniz de novo ao filme, sem contanto de fato fazer nada de novo na forma do filme, está garantido o sucesso.

Seguindo passo a passo tanto a fórmula narrativa/dramatúrgica, quanto a captura de uma apreensão social contemporânea (externada por um desejo de um passado idealizado, e onde além de tudo se superavam dificuldades com muita luta e trabalhho), Seabiscuit foi um mais do que esperado sucesso de bilheteria nos EUA. Mas, sinal dos tempos, tem recebido lançamento discreto no resto do mundo (como no Brasil), o que parece indicar que há algo de podre no modelo, uma vez que, antes exportador de ideologia, agora já parece servir mais de criador de tranqüilidade e esperança internas - não colando fora do país como já colou antes. Por isso tudo, que muitas vezes está mais fora do filme do que dentro, mas que se encontra sempre encarnado na película, é que o cinema americano continua sendo (mesmo num exemplar pouco inspirado ou relevante como este) fonte de muito interesse. Como se disse no início, ainda que mais pelo sistema que o produz do que pelos autores do filme. Seabiscuit, neste sentido, é menos um filme de Gary Ross do que um filme do cinema americano.

Eduardo Valente