O Último Samurai
Edward Zwick, The Last Samurai, EUA, 2003
Assim como seu protagonista, o Capitão Nathan Algren (Tom Cruise), dividido entre dois mundos, O Último Samurai é um filme que carrega em si o dilema de, ao mesmo tempo, ser um filme grandioso, resguardando características que lhe conferissem uma maior seriedade ou ao menos uma individualidade (como o tratamento de um tema polêmico e atual – a eterna política expansionista e intervencioniosta dos EUA, determinada pelos interesses da política armamentista) e o fato de ser, também, um veículo para o grande astro Cruise, com todo o peso que pode estar embutido nesse conceito. O mesmo dilema é talvez um reflexo da carreira de seu diretor, Edward Zwick, que vem há muitos anos ambicionando realizar épicos grandiosos (Tempo de Glória, Lendas da Paixão, Coragem Sobre Fogo). Estes sempre, de algum modo, deixam a desejar, demonstrando serem passos maiores que as pernas de Zwick, cineasta limitado que sempre deixa transparecer sua formação televisiva, incapaz de apresentar em seu trabalho decisões um pouco mais ousadas.

Herói da Guerra Civil, e descrente com o exército ao qual servira após sobreviver ao lendário massacre das tropas do General Custer pelos índios, Algren leva seus dias entre um e outro gole de birita, exibindo-se em shows na linha de Bufalo Bill (como o retratado por Robert Altman em West Selvagem). Vai ao Japão exclusivamente por dinheiro, treinar o exército imperial no combate aos rebeldes samurais, liderados por Katsumoto (Ken Watanabe, numa atuação brilhante, carregando consigo toda a herança de Toshiro Mifune). Num primeiro combate, suas tropas mal-treinadas são massacradas pelos samurais, numa seqüência de batalha filmada de forma abertamente inspirada em A Glória de um Covarde, filme sobre a Guerra Civil cujo clima já servira de modelo para Zwick em Tempo de Glória. Só que, ao contrário do protagonista do filme de John Huston, que foge assustado em seu primeiro embate, Algren luta bravamente e é feito prisioneiro não sem antes matar um de seus oponentes.

Fica já delineada nesta primeira meia-hora a questão da honra, seja em combate, seja na política, seja na visão de mundo, que irá permear toda fita, assim como um tratamento que deixa a todo momento O Último Samurai sempre próximo do universo dos westerns, principalmente de alguns dos feitos na virada das décadas de 1960/70, que repensavam e valorizavam o ponto de vista dos índios norte americanos mostrando seu massacre e etnocídio. Desta forma, os samurais são sempre vistos de uma forma semelhante aos índios, fadados a desaparecer pelo processo de expansão capitalista. Isto fica patente não apenas pelas sucessivas menções à batalha de Little Big Horn, mas também pelo processo em que Algren vai passando de prisioneiro inferiorizado, lentamente sendo respeitado pelos captores, até tornar-se um deles – de forma idêntica ao Richard Harris de Um Homem Chamado Cavalo. Algren também alterna sua trajetória entre dois mundos distintos, como Dustin Hoffman em O Pequeno Grande Homem, mas se este último era um malandro oportunista, Algren transforma-se num monumento de ética e retidão, resgatadas após sua convivência e amizade com Katsumoto.

Se até então Algren parece ofuscado pelo líder samurai, a partir do momento em que o americano salva sua vida durante um ataque de ninjas (talvez a melhor cena de ação do filme, que parece precisamente colocada para quebrar uma certa monotonia do processo de aculturação de Algren) o protagonista vai assumindo cada vez mais seu lado heróico, transformando-se no clichê de Cruise-herói que seus fàs esperam (principalmente após o resgate de Katsumoto, feito prisioneiro pela guarda do imperador, outrora seu discípulo), o que irá desembocar na batalha final. Nesta os samurais, conscientes de pertencerem a um mundo extinto (assim como os membros do bando de William Holden em Meu Ódio Será Sua Herança), partem para o seu destino numa batalha onde, da mesma forma que na obra-prima de Sam Peckimpah, a metralhadora automática fará seu papel na liqüidação decisiva da luta com honra e coragem.

Esta batalha, porém, principalmente em seus momentos finais, deixa evidente todo o processo de indecisão de rumos que caracteriza O Último Samurai. Se sua preparação – principalmente quando Algren veste, de uma forma quase erótica, a armadura que herdara do samurai que matara ao ser aprisionado – e seus primeiros momentos remetem inevitavelmente ao cinema de Akira Kurosawa, principalmente Ran, na medida que o filme se desenvolve vai sendo contagiado pelo clima messiânico e piegas de um Coração Valente – coroado quando os soldados adversários suspendem sua artilharia para aplaudir Algren-Cruise. E toda a crítica à política armamentista dos americanos (vistos, por sinal, de forma nada simpática), aliados a japoneses ambiciosos e corruptos, parece cair por terra quando o filme assume uma postura que poderíamos chamar de "morde e assopra": pois é também um americano, Cruise, que é alvo da reverência dos oponentes e é mostrado como último herdeiro da honra-samurai, e influenciador direto na decisão do imperador que marca a conclusão da trama.

Ao seu final, O Último Samurai deixa a impressão de ser um filme demasiado longo e bastante irregular no qual Edward Zwick, apesar de demonstrar uma evidente evolução como encenador, principalmente nas cenas de ação, parece mais uma vez manifestar uma ambição maior que seu talento. O filme, haja visto o grande números de títulos aos quais faz francas referências, tem um ar de deja-vu aparentando estar sempre aquém de seus modelos. Seus defensores podem agarrar-se às bandeiras de "exaltação da amizade" ou do tema da "compreensão das diferenças", que parece assolar de forma quase onipresente o cinema atual. Mas, mesmo com suas pretensões a "cinema de qualidade", o que acaba prevalecendo é sua faceta de filme-padrão de Tom Cruise, contido em uma embalagem mais vistosa. E, como filme de Cruise, carece da força da série Missão Impossível – que não se sente envergonhada em funcionar como tal.

Gilberto Silva Jr.