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Narradores de Javé
Eliane Caffé, Brasil,
2003 |
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Narradores
de Javé é um filme sobre muita coisa.
Literalmente. É um filme sobre ser sobre muita
coisa. Sobre o muito e sobre a multiplicidade de seres.
É quase uma taxonomia de verdades, das possibilidades
de real de uma mesma história. Há algo de
irremediavelmente grego em Eliane Caffé. Kenoma
já trazia no ventre essa associação
entre palavra lúdica e palavra lembrada que agora
explode neste filme. Mas Narradores é além
disso um filme importante para o cinema brasileiro, por
jogar de maneira (raramente) inteligente com alguns clichês
de nosso cinema contemporâneo, sobretudo com um
dos maiores deles, o filmar o Nordeste.
Mas como todo grande filme, suas várias importâncias
se tornam menores diante da importância principal
dele, como filme e ponto (o que alimenta todas as outras
e que serve como a grande síntese delas todas).
Vamos, então, a Narradores de Javé:
um filme o muito, dizíamos. A começar é
um filme irremediavelmente marcado pela memória.
Tudo do filme deve a ela. As verdades produzidas pelos
moradores do vilarejo são compostas de memória.
De uma memória mítica, é verdade,
onde encontra-se com seu segundo assunto, a fala. A memória
é feita na fala, é produzida pela narração.
E ambas são ficções aparentes. Afinal,
são versões várias que passam diante
do ouvinte. Mas são todas, no final das contas,
um sistema de influências. E eis o terceiro assunto,
aquele no qual o filme faz mais fortemente cinema: as
memórias do passado são, no fundo, profecias.
É no futuro que elas se realizarão. Nesse
sentido, todo arcabouço de narração
do filme se presta a fazer do tempo massa de modelar,
como mesmo a fala é barro nas mãos do povo
tagarela e do tagarela-mor, o carteiro, escrevinhador
e ouvinte.
Javé é ao mesmo tempo um deslugar, no sentido
em que se faz fora do tempo e do espaço tanto quanto
uma Tróia ou uma Atenas míticas, mas é
também o lugar de onde se constrói uma noção
muito rela de verdade. Afinal, é na história
que a cidade será inundada e é de sobrevivência
real de um povo que se trata. Daí outra ligação
com um clichê com que o filme joga ironicamente:
o da cidade pequena cheia de tipos. E eis outro assunto
do filme: a dramaturgia. O desejo de um discurso sobre
o próprio discurso e sobre a dramaturgia desse
discurso no cinema é forte no filme. As falas são
faladas com um tom quase documental, ainda que recorra
à ladainha para isso. Em vez de celebrar a verdade
com uma dramaturgia realista, o filme se faz verdade por
discursar um discurso de mentira com formato quase documental.
Nesse sentido, não só a cumplicidade antológica
de José Dumont mais do que apenas um ator,
obviamente um artesanato do próprio filme
, mas a de todo o elenco, que se escraviza na própria
palavra mais do que em qualquer outra expressão.
Mas o que talvez mais chame a atenção em
Narradores de Javé é seu desejo de eternidade.
Ao se esgueirar por ali por fora do histórico,
pelo campo do mítico, quase do fabular, do fabuloso,
o filme joga com passado e futuro não só
na narrativa (como já dissemos), mas também
em suas próprias ferramentas expressivas. Poucos
filmes atuais (não apenas brasileiros) fazem esse
trânsito tão bem. Nisso, compõem-se
bem o Nordeste de Graciliano que pulsa como fantasma nos
tipos e no chão árido do filme com o experimentalismo
sonoro de um DJ Patife; a fotografia discreta, quase anti-retomadística,
clássica mesmo, com a edição cheia
de idas e vindas; a estrutura que se dobra sobre si mesma,
fazendo com que aquilo que era lenda se torne a própria
história com o sistema de falas quase improvisadas
e que são ditas como metralhadora giratória.
Um salto é necessário: logo no começo,
fica-se sabendo que a história de Narradores de
Javé é, toda ela, uma narração.
Narração daquelas que se ouviu de um parente
ou vizinho, e que será agora repetida, como uma
história que se perde em pedaços, como uma
brincadeira de telefone sem fio. E nessa história
que teremos que depositar nosso crédito. E essa
história mesma será composta a começar
pela saga de um mentiroso, de um carteiro banido por ter
inventado mentiras e que perambula pela cidade colhendo
histórias exageradas dos moradores. Essas anotações,
veremos, serão elas mesmas mentiras, falseamentos,
dramatizações. Não é de cinema
que estamos falando, afinal?
Alexandre Werneck |
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