Sobre Meninos e Lobos
Clint Eastwood, Mystic River, EUA, 2003
Há inúmeras atitudes francamente violentas em Sobre Meninos e Lobos, assim como há inúmeras motivações para essas atitudes, e inúmeras possibilidades de explicação para essas motivações de comportamento, algumas tanto mais aceitáveis do que outras. O mais recente filme de Clint Eastwood parece estabelecer uma espécie de inventário dos atos violentos nos Estados Unidos de hoje, e isso tem lhe valhido inúmeros elogios de todas as partes, inclusive de jornalistas e escritores que jamais deram atenção a qualquer outro de seus filmes do ponto de vista artístico. Ora, nos parece claro que Sobre Meninos e Lobos é apenas o prolongamento natural (e não necessariamente o mais elaborado) de toda uma série de filmes dedicada a questionar o papel da lei e da autoridade legal - metaforizada por vezes pela autoridade paterna - dentro da sociedade americana. Não é só a questão "Terei o direito de matar?", considerada do ponto de vista do indivíduo (Os Imperdoáveis, Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal) ou do estado (Crime Verdadeiro), que importa a Eastwood, mas antes um questionamento mais terrível e subterrâneo, qual seja: "É possível para uma sociedade conjurar o mal que está dentro dela, que nasce de suas entranhas? E, se sim, é pelos meios legais?".
A essa verdadeira pesquisa temática e formal, Sobre Meninos e Lobos não vem acrescentar exatamente uma diferença de tema, mas de tom: jamais Clint Eastwood foi tão apocalíptico em sua visão da sociedade americana, nunca seus personagens foram tão atormentados (pela infância, pelas mulheres, pelas incertezas do futuro, e mesmo pelo puro acaso), e em poucas ocasiões o senso de justiça foi tão pouco decisivo para o remate da história e o destino dos personagens - nesse sentido, Um Mundo Perfeito vai mais longe. A impressão que se tem ao fim da projeção é de que a violência é o mínimo múltiplo comum da vida de cada um dos habitantes daquele bairro de Boston (e, por extensão, de todos os bairros de todas as cidades americanas), e que pouco importa que exista a figura do law enforcer - "reforçador da lei", expressão comum para designar qualquer oficial de polícia - e que ela se esforce no seu limite máximo. A transmissão (o aprendizado, a educação) é uma figura recorrente em todos os filmes de Clint Eastwood - é a base, inclusive, do pouco otimismo que geralmente há em seus filmes, a de que é possível passar ensinamentos e não repetir os mesmos erros -, mas aqui tudo que se transmite - ou que se omite - é a necessidade do sangue. A violência está disseminada na sociedade, tornou-se nossa moeda de troca preferida.
Um prólogo nos estabelece na intriga, no exato momento do instante traumático: quando uma bolinha vermelha de hóquei rola até o bueiro e estraga a brincadeira, três crianças decidem escrever seus nomes numa calçada recém-reformada, o asfalto ainda molhado. Um carro pára, e dele sai um homem que, fazendo-se passar por um policial, inicia um violento sermão nos meninos e intima um deles a entrar no carro. A cena é cheia de tensão e dúvida, e a imobilidade reina. Depois de uma desesperada mas inútil troca de olhares, a criança entra no carro, não antes de observar o chão totalmente sujo do banco de trás. Essa criança é Dave Boyle, menino mais alto e desajeitado com sua própria força, que vive numa rua mais pobre das redondezas. Depois disso, nada será o mesmo: Dave, depois de ser por quatro dias assediado sexualmente por seus algozes, consegue voltar para casa, mas viverá isolado do mundo (assim nos revela seu rosto em silhueta na janela, que desaparece novamente quando uma silhueta de mulher abaixa a cortina).
Anos depois, um travelling aéreo nos conecta novamente com os arredores do velho bairro. Um dos meninos, Sean Devine, tornou-se oficial de investigações e está a trabalho numa ponte que atravessa o "rio místico" que intitula o filme. Uma situação prosaica transforma-se em violência: um homem explode de raiva ao ter seu carro continuamente cortado e mata o motorista rival. A polícia o encontra em estado de quase transe. Nas velhas redondezas, dois homens vivem suas vidas normais, ao menos aparentemente. Jimmy Markum (interpretado de forma brilhante, selvagem e excessiva, por um Sean Penn em estado de graça) é um ex-presidiário dono de um mini-mercado e Dave Boyle (Tim Robbins, também extraordinário) tenta ensinar seu filho a ser um grande jogador de beisebol. A aparente simplicidade de um dia comum de trabalho, porém, esconde as faces obscuras daquela comunidade e, naturalmente, de um passado que não se conseguiu esquecer, e que a noite vai revelar. Num bar, Dave bebe sua cerveja e assiste ao jogo de beisebol, quando três meninas entram, colocam uma música na jukebox e começam a dançar voluptuosamente em cima do balcão, o que naturalmente chama a atenção de todos no local - em especial de Dave, que observa a menina fixamente. Uma elipse temporal nos tira desse momento e nos instala três horas depois: Dave chega em casa ensangüentado, dizendo ter atacado um ladrão que tentara lhe roubar. No dia seguinte, em frente a um parque, o carro de Katie Markum, filha de Jimmy e uma das meninas que dançavam no bar, é encontrado aberto, no meio da rua e com vestígios de sangue. É o propósito para o amargo reencontro dos três meninos, e é o pesadelo vivo que desencadeará a série de violências que irá atacar nossos olhos e consciências do começo ao fim de Sobre Meninos e Lobos.
A parte seguinte do filme nos instala no desespero de Jimmy Markum. À procura de sua filha desde o início da manhã, ele vai da apreensão leve quando descobre que ela não dormiu em casa até o mais completo descontrole quando o respeitoso olhar de Sean Devine aquiesce com o fato de que o corpo de sua filha foi encontrado. Não existe grande cinema sem grandes decisões do diretor a respeito de que ponto de vista seguir e de que situações privilegiar, e de como filmá-las. Clint Eastwood decide filmar tudo isso a partir do sofrimento do pai: ainda não sabemos nada de sua vida ou de seu caráter (o que será decisivo para criar uma outra leitura sobre uma série de acontecimentos no filme), mas nos estabelecemos em forte conexão com a dor de Jimmy Markum quando descobre que a filha está morta - é mesmo o momento mais intensamente dramático de Sobre Meninos e Lobos - e logo depois com seus inumanos esforços para manter a coesão da família diante de uma perda tão inesperada e esvaziadora de sentido (existencial, familiar).
A partir daí, o filme se constrói como uma investigação policial, um whodunnit sentimental: aparecem com mais força a figura de Sean Devine (extraordinário Kevin Bacon, que toma emprestado da atuação de Eastwood seu semblante duro mas de olhar corroído por uma vida emocional falida - sua mulher o deixou há seis meses e lhe telefona continuamente, sem conseguir emitir uma palavra - e uma dúvida moral constante sobre a função de justiça que desempenha) e de Whitey Powers (interpretado por Laurence Fishburne), chefes de investigação. Essa trama, no entanto, nunca é da ordem do gênero policial, mas antes uma forma de penetrar profundamente nas motivações e nas características dos principais personagens ligados aos acontecimentos da fatídica noite: Brendan Harris, namorado às escondidas de Katie; Ray Harris, irmão mudo de Brendan, e seu amigo Johnny; Annabeth Markum, esposa de Jimmy; Celeste Boyle, prima de Annabeth e esposa de Dave; os truculentos irmãos Savage, amigos de Jimmy; e o próprio Dave Boyle, que se reaproxima de seu amigo de infância depois do assassinato de Katie. Nasce uma possível constelação de motivos para o crime: Brendan, o namorado, pode ter tido um ataque de ciúmes e matado a namorada; Dave, traumatizado quando criança, pode ser no fundo um psicopata; "Just" Ray Harris, pai desaparecido de Brendan e Ray, pode ter voltado à ativa para fazer vingança contra Jimmy. Lidar com falsas induções e jogar com aparência/verdade é recorrência no cinema policial, mas em Sobre Meninos e Lobos a questão é vista tão de dentro que é impossível deixar de pensar que interessa mais a Clint Eastwood fazer não um jogo de gênero, mas trazer uma questão ontológica da vida em sociedade e do papel da justiça dentro dela: a possível punição de alguém baseada em injunções lógicas questionáveis e provas circunstanciais e/ou psicológicas de natureza duvidosa. No micro-universo que Eastwood filma, tudo é pantanoso, todas as reais motivações conduzem a inconsistências lógicas, todas as pressuposições se encontram devidamente invalidadas.
Se a primeira metade do filme nos estabelece no pranto da família de Jimmy Markum e aprofunda os personagens ao redor, a segunda vai claramente em outra direção. Uma vez vivido em toda sua intensidade o drama em torno do assassinato da filha (e isso dura uma boa hora e meia), Sobre Meninos e Lobos começa a perscrutar outra dimensão, qual seja, a dos subterrâneos daquela redondeza. O bueiro do início do filme é apenas um ponto de partida: o que está realmente escondido nos subterrâneos não são bolinhas de hóquei ou beisebol - como Dave fala para seu filho -, mas corpos de pessoas assassinadas, jogados no rio Mystic. A partir daí o filme volta a se construir em torno de três personagens do início, agora retrabalhados como três diferentes tipos de relação com a vida em sociedade - e a democracia, por extensão. Primeiro, Dave ou a democracia fraca: subempregado, vivendo numa tranqüilidade utópica (pois ainda assombrado por fantasmas), com frágeis relações familiares, mas acima de tudo um homem incapaz de agir. Depois, Jimmy ou o déspota cínico: logo o grande pai de família sofredor dará lugar ao chefe de gangue que iniciará uma investigação paralela e acabará por assassinar a pessoa errada; esse procedimento irá também revelar para nós que o assassinato é prática recorrente de Jimmy e dos irmãos Savage. Por fim, Sean ou a democracia forte, porém sempre problemática: encarnando a justiça através de sua profissão, mesmo assim ele não se considera como tendo as chaves para abrir todas as portas; inclusive, a chave mais importante para sua vida pessoal - a da relação com sua esposa - não está a seu alcance. À unilateralidade e ao sentimento de onipotência de Jimmy, Clint Eastwood contrasta de forma veemente a paciência e a transparência de Sean. Algo que na América de hoje só pode ser encarado como uma preocupação política explícita: pode não ser mais possível conjurar a violência uma vez que ela já está disseminada por completo no tecido social, mas a vigilância atenta e a serenidade ainda são armas melhores e mais justas do que a passagem unilateral até a violência.
A mudança de nosso olhar em relação a Jimmy Markum talvez seja o golpe mais forte do filme. Imediatamente somos mergulhados num crime horrível e nos identificamos com a dor de um pai zeloso, de maneira que jamais faríamos se o caráter de Jimmy fosse apresentado antes do encadeamento da trama. A primeira parte do filme poderia ser chamar, aos olhos da segunda, "O Fator Humano": até os monstros sofrem por suas filhas. Mas à primeira parte, sucede uma segunda, e essa chama-se com todo direito "Mystic River". Aos poucos, quando Sobre Meninos e Lobos levanta os olhos e começa a ver à distancia, a operação que o filme faz é deslumbrante: o crime inicial vai aos poucos perdendo o relevo e os contornos de poder em volta do clã de Jimmy vão ganhando traços mais definidos. "Justiça", pela narrativa do filme, vai aos poucos deixando de ser "achar o verdadeiro assassino de Katie Markum" e vai se tornando "aquilo que fazemos de nossas vidas". Os verdadeiros responsáveis pela morte da moça, veremos ao fim do filme, não a mataram com nenhum motivo específico e nem tencionavam a morte da menina; em contrapartida, cada desrespeito à lei cometido por Jimmy é um gesto auto-consciente e dono de si. O que nos traz de volta a um conceito em torno do qual Clint Eastwood constrói toda sua obra: o de responsabilidade. Responsabilidade ao agir (Dave Boyle, Jimmy Markum), mas responsabilidade também ao prevenir (Sean Devine, Whitey Powers): fazer justiça é menos achar o culpado do que saber qual é o verdadeiro dano à sociedade.
Sobre Meninos e Lobos faz uma taxinomia das ações violentas, de suas motivações e dos graus de responsabilidade amputados a cada agente. Um homem agride uma pessoa por causa de um trauma passado, um outro agride supostamente pra fazer vingança, as crianças (se) agridem por motivo nenhum, por ciúmes ou para salvar a própria pele, um adulto agride por senso (distorcido) de justiça, etc. Não é, como já chegou a se dizer, que o filme vá em busca do que seria um tipo de violência justificável em meio a diversos atos de violência injustificáveis: para Clint Eastwood, uma vez instituído o estado de direito, praticar assassinato em nome da justiça é a atitude mais execrável que possa existir. Pior, inclusive, do que matar uma menina de dezenove anos.
Na seqüência final, todo o mal já está feito. Mesmo tendo sido capturados e presos aqueles que mataram a jovem Katie, os assassinos ainda estão entre nós (como em M de Fritz Lang, filme com o qual Sobre Meninos e Lobos partilha diversas semelhanças). É manhã novamente, e uma manhã particularmente bonita. A comunidade está em festa, e uma parada circula pelas ruas. O bairro faz espetáculo de si mesmo1, porque a parte obscura dele está devidamente escondida no Mystic. Numa cena conjugal, Annabeth reafirma sua confiança no poder e no julgamento de seu marido Jimmy. Para ela, qualquer ato que seja em defesa de sua própria família, justificado ou não, é um ato correto. Mesmo que seja para o desespero de sua prima Celeste, que ronda as ruas em prantos à procura de seu marido desaparecido. Eles são fortes, todos os outros são fracos: ele pode ser o rei da redondeza. Juntos, Jimmy e Annabeth saem à rua para ver suas filhas no desfile. Annabeth olha para Celeste: a prima não merece o menor perdão por não ter mostrado amor a seu próprio núcleo familiar; eles, ao contrário, estão no topo do mundo (ao menos, no topo da escada). Mas quem dirige o olhar a eles é Sean Devine. Do lado de sua esposa recém-chegada e sua filha ainda de colo, ele olha para Jimmy, que coloca os óculos escuros (ou seja, recusa a troca de olhares). Impávido, Sean estende seu indicador direito e simula uma pistola, atirando com o dedão. Aquiescência? Jamais. Antes o olho vigilante do homem que se preocupa com sua comunidade mas que está de mãos atadas - uma vez que não há corpo, não há crime.
A fotografia em Sobre Meninos e Lobos é possivelmente a mais fria da carreira de Eastwood. Carregada de azuis metálicos e brancos que estouram levemente, a luz do filme nos obriga a encarar as situações de maneira distanciada, quase clínica. Assim, chama a atenção para um estado de apreensão e infâmia dentro da sociedade americana (a cultura de ódio e banalidade que cresce) mas faz um pungente libelo de esperança: de que é só com a plena expressão da democracia e da justiça que será possível sair do buraco em que se entrou. Talvez.

Ruy Gardnier