Paralelas e Transversais

Terra dos Sonhos, de Jim Sheridan In America, Irlanda/Inglaterra, 2003
Adeus, Lênin, de Wolfgang Becker, Goodbye, Lenin, Alemanha, 2003

Com Terra dos Sonhos, Jim Sheridan se aproxima do que Wolfgang Becker nos propõe em Adeus, Lênin: a reinvenção do real através do poder da fabulação. Em ambos os filmes, porém, a representação do mundo se desvirtua na tentativa de anulá-lo, substituindo-o pelas fantasias inventadas por seus respectivos protagonistas (a menina Christy, de Terra dos Sonhos, e o jovem Alexander Kerner, de Adeus, Lênin).

Sheridan e Becker iniciam suas obras de forma semelhante: em Terra dos Sonhos, a chegada da família irlandesa à América é registrada pela câmera de vídeo de Christy, enquanto em Adeus, Lênin há a filmagem "caseira" em super-8 da vida familiar antes da partida do pai para a Alemanha Ocidental. São olhares subjetivos que narram os filmes e que, simultaneamente, estabelecem desde o princípio que o recorte destas narrações se centra, sobretudo, na família e na dinâmica das relações psicológicas em seu interior, e menos na permanência do núcleo familiar frente ao mundo que se transforma.

Assim, há, em Adeus, Lênin, a transformação no tempo: a passagem de Berlim Oriental do socialismo para o capitalismo. Já em Terra dos Sonhos, a mudança se verifica no espaço: a imigração da família irlandesa para os EUA, para Nova York. No primeiro, a tentativa de recriar o passado a fim de evitar a morte da mãe (como também, mais importante, para que todos os envolvidos na farsa possam fugir da nova realidade hostil que os sufoca), e, no segundo, a busca para restabelecer a unidade familiar, abalada pela morte do filho Frankie, para assim enfrentar o país estranho que se apresenta aos personagens.

São filmes que falam sobre a representação, ao incluí-la na própria narrativa, sejam as histórias inventadas por Alexander para enganar a mãe, seja o conto-de-fada de Christy. Contudo, além da fabulação dentro da obra, existe igualmente o filme em si enquanto fábula através de imagens, pois o cinema não implica a duplicação do mundo (como se a imagem fosse cópia da realidade), mas sim a reconstrução do real, devido tanto à gramática cinematográfica quanto à presença da câmera, transdutora abstrata (que expressa leis mecânicas, químicas, físicas, ópticas) que se interpõe entre o material representado e sua representação imagética: como qualquer imagem mediada pela técnica, o cinema é uma forma de se "escrever" o mundo, e não de mimetiza-lo. De sorte que a questão colocada se refere à capacidade da representação em revelar o novo no real, distante dos clichês que dominam as imagens, ou à destruição da realidade pela imagem que a deveria representar, mas que a substitui por fórmulas rígidas e (pré) determinadas capazes de apagar a explosiva variedade caótica que o mundo possui.

Desse modo, Becker e Sheridan reinventam o real para ignora-lo. Em Adeus, Lênin a farsa que Alexander monta não objetiva à reflexão sobre o contexto político/social/econômico/cultural no qual se insere a queda do Muro de Berlim (evento que colaborou para o término do século XX, da "era dos extremos", segundo Hobsbawn), muito menos de suas conseqüências neo-liberais para a Alemanha reunificada e para a posterior União Européia. Na verdade, Becker procura apaziguar os conflitos decorrentes da vitória capitalista sobre o socialismo, filtrando a realidade circundante por meio do melodrama batido: o reencontro com o pai ausente, cujo retorno garante a paz de espírito à mãe moribunda. O pior de Adeus, Lênin, porém, está no discurso de encerramento do filme, que distorce o pensamento socialista utópico a fim de adequá-lo a um suposto humanismo que, por negar a tensão social e o enfrentamento, serve apenas para reafirmar o liberalismo vigente.

Terra dos Sonhos, por sua vez, parte da instigante premissa de ver na fábula uma ação modificadora da realidade (através, sobretudo, do sacrifício de Mateo para assegurar a sobrevivência do bebê que, em conseqüência, liberta a família irlandesa do fantasma do filho morto). No entanto, Sheridan acaba por estender o conto-de-fada de Christy sobre o real, a ponto de eliminar tanto as especificidades culturais dos imigrantes – não há referências ao passado na Irlanda, a não ser o trauma pessoal pela perda de Frankie – quanto as características particulares do novo país e da nova cidade onde eles se encontram. Invalida-se, então, o poder que o ato de representar teria de alterar o mundo, na medida em que este se dá enquanto força homogeneizante, ao tratar a família como apenas mais uma, e Nova York como qualquer outra cidade (e a trama de Terra dos Sonhos, a despeito do título original In America, poderia ocorrer tranqüilamente noutro país, sem alteração de sentido).

É a tentativa – também presente em Coisas Belas e Sujas, de Stephen Frears – de mostrar a incapacidade das minorias de se integrarem na ordem global do capitalismo, ao mesmo tempo excludente e totalizante. Mas cabe perguntar a Becker, Sheridan e Frears se a saída que nos resta ao neo-liberalismo globalizante consiste tão somente na superação de traumas psicológicos anônimos (a perda do filho, em Terra dos Sonhos, a ausência do pai, em Adeus, Lênin, e a morte da esposa, em Coisas Belas e Sujas), ou se, sob a aparente homogeneidade do real dominante, ainda persiste o multiculturalismo, com suas diversas vozes excluídas e esquecidas prontas para gritar, caso surja a chance. Oportunidade que os personagens de Terra dos Sonhos e de Adeus, Lênin não possuem.

Paulo Ricardo de Almeida