Lance de Sorte
Neil Jordan, The good thief, Inglaterra/França/Canadá/Irlanda, 2002
A primeira impressão que se tem do filme de Neil Jordan é, claro, oriunda de sua referência mais clara: O jogador (Bob le flambeur), de Jean-Pierre Melville, feito em 1955. Claro, como um remake, traz em si o DNA de seu filme de origem, até porque Jordan usou mesmo o roteiro de Melville (e Auguste Le Breton) como texto de seu filme. De imediato, no entanto, o olhar habituado ao cinema de suspense clássico identifica uma outra referência, talvez até mais importante: Ladrão de Casaca, o filme mais comercial de Alfred Hitchcock, feito no mesmo ano do do francês. Lá estão, em Jordan, vários dos elementos da trama dos dois filmes, mas mais fortemente elementos de To Catch a Thief: o ladrão que faz as vezes de ex-larápio, uma mulher fatal, a Riviera Francesa. Tudo parece indicar que se trata de uma leitura dos dois clássicos por uma ótica do submundo, com um ladrão toxicômano (encarnado por Nick Nolte, que pode ser chamado de qualquer coisa, menos de classudo à Cary Grant), uma mulher nada loura, e jovem demais para ele (vivida pela mesma georgianazinha Nutsa Kukhianidze que, outro dia mesmo, fazia as vezes de Lolita em 27 Beijos Perdidos), e um plano de roubo mais espetacular (o que o aproximaria dos filmes de assalto que se tornariam um gênero à parte nos anos 60). Mas uma olhada mais de perto faz resvalar a impressão de que este filme está mais, bem mais próximo de Femme Fatale do que do clássico hitchcockiano ou do genial filme francês que lhe serve de desculpa.

Assim como no filme recente de Brian de Palma, não se trata da história, mas do sistema, o que está em jogo. No caso de De Palma, o sistema em questão é a própria construção de uma trama na atualidade, com seus clichês e padrões, recheados de viradas inusitadas e reduções à montanha russa. No caso de Jordan, um sistema de montagem de personagens é o que sustenta o filme. Cada elemento do teatro de Jordan cheira a falsidade e falseamento e suas conexões também são frágeis e irreais. Tudo isso porque Jordan está fazendo uma operação rara ao optar por fazer um filme de gênero: ironizar a cartilha com os personagens e não com a estrutura. Assim, a ligação ao mesmo tempo de admiração e repúdio entre o ladrão vivido por Nick Nolte e o policial que o persegue só se faz porque em filmes de ladrão elegante ela sempre existe, ainda que o ladrão não seja lá tão elegante assim. A relação de admiração da moça por ele é a mesma admiração padrão das moças pelo bandido charmoso. Mas todos esses padrões se processam com personagens um tanto fora desses padrões. Bob, o tal "Bom Ladrão" do título, é bom mesmo. E ele também tem uma força de vontade de santo: quando vê que é necessário se abster das drogas, decide que se abstém e pronto, só precisa se algemar à cama e de um balde para as crises de abstinência. Quando vê que não deve se envolver com a provocante menininha que desfila de lingerie diante dele, simplesmente a empurra para o amigo por ela apaixonado. Não existe limite para sua maturidade. Ele flerta com a morte, mas apenas até o limite do prazer. Ali, no limite, retorna, porque é sábio. É o bom.

Outro dado do cheiro de absurdo dos personagens no filme de gênero de Jordan: o capítulo do planejamento do grande assalto em filmes de assalto é sempre um espetáculo de inverossimilhança, que se justifica sempre por pertencer à lógica interna do filme. Neste caso, o diretor deixa absolutamente clara sua intenção de fazer o inverossímil na forma de gente: escalou o colega Emir Kusturica para encarna o ultra-especialista em tecnologia que sustenta o plano. Ele toca guitarra, desfila em um galpão cheio de laser e fala barbaridades filosóficas com tal desenvoltura que deixa claro: o mundo é uma grande mentira, sobretudo este mundo em que desfilam os personagens de Jordan.

Pois é justamente nessa "ousadia" de Jordan que mora o maior senão de seu filme. Se De Palma consegue em seu experimento de desconstrução das tramas fazer uma grande ironia com o falseamento que o cinema é e com a falsidade que a industria cinematográfica se tornou, Jordan deve um porquê para sua construção, ou pelo menos um porquê dentro de sua própria lógica. A mera demonstração de potência não parece ser um argumento suficiente (até porque ele não demonstra tanto assim) e acaba tudo soando como um grande maneirismo. Por isso, O Grande Ladrão é daqueles filmes que não atrapalham, mas como também não ajudam, ficam sem lugar, sem dizerem para que foram feitos.

Alexandre Werneck