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Cidade de Deus
Fernando Meirelles, Brasil,
2002 |
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Uma explosão estética como a de Cidade
de Deus nunca passa desapercebida quando se encontra
com uma temática tão instigante quanto a
relação entre a cultura e a violência
carioca/brasileira. O choque entre o conteúdo literário
de forte carga social e a linguagem vibrante de uma certa
cultura de clichês videoclípicos dá
a Cidade de Deus a dimensão marcante de
um verdadeiro acontecimento no cinema brasileiro contemporâneo.
O entrelaçamento da energia rítmica e do
frenesi, com o conceito cruel da violência se esgueirando
por dentro da própria identidade cultural de um
espaço como o conjunto habitacional Cidade de Deus,
faz do filme um raro marco de contemporaneidade estética/temática
no cinema produzido no Brasil.
Reiterando uma certa tendência que redimensiona
o espaço das periferias das grandes cidades brasileiras
como o novo espaço-margem a ser embebido pelo cinema
brasileiro, o filme de Fernando Meirelles consegue um
nível de comunicabilidade raro com o perfil de
um grande público. Thriller social de ação,
Cidade instiga pela força de suas personagens
(num belíssimo trabalho de construção
de gestos), pela precisão de seus enquadramentos
e pela correção dramática-funcional
de seu roteiro. Como uma perfeita caixa-de-bombons, o
filme se encarna com uma coesão interna que logo
o transforma no estereótipo da obra-prima. Uma
obra-prima? Depende de qual cinema estamos tratando.
Talvez para o cinema de Meirelles, responsável
pela desconjuntada comédia de costumes (dos outros...)
Domésticas, Cidade de Deus seja mesmo
o ápice de sua expressão. Um cinema de observação
social distanciada, de deslocamento espacial, de interpretações
realistas e patéticas (baseadas numa dramatização
realista, salpicada de pequenos escapes cômicos).
Talvez para esse cinema, cujo ponto de vista aposta numa
suposta autoconsciência de distanciamento (o diretor,
ao se assumir como um "estrangeiro" acaba tratando
seus personagens como alienígenas), para esse cinema
de fotografia amena/sépia, cujo corpo dos negros
brilha épico diante do mar de sangue, Meirelles
tenha chegado ao limite da expressão...Um limite
corrosivo, nocivo, perigoso.
A repetição da construção
dramática em que o personagem narrador é
tomado por uma consciência civilizada e se torna
capaz de observar, como um fotógrafo, a realidade
vivida, nos remete a outras produções de
temática semelhante, como Notícias de
uma Guerra Particular (de J.M. Salles e Kátia
Lund). O papel do jovem fotógrafo é justamente
o de se transpor para uma certa qualidade distanciada
de civilização, em que pode observar a verdade
de maneira consciente, e recontá-la como nenhum
outro habitante local. A centralidade da narrativa nesse
personagem "bom", nesse personagem marcado pela
descoberta dos atalhos para "um outro mundo"
fora da Cidade de Deus, reafirma um dos maiores
equívocos de análise praticado estética
e politicamente por esse cinema dito "engajado".
Cidade de Deus transforma o espaço da favela
numa espécie de Disneylândia às avessas,
onde tudo nos leva ao caos e à violência,
mas não deixa de ser um parque temático
de atrações, sons e imagens... Capturado
num cerco estético, que faz de sua narrativa uma
atração de movimentos e pequenos "causos",
o espaço da Cidade de Deus se "desespacializa"
e se transfere para a dimensão perigosa do pesadelo.
Como num universo paralelo, Cidade de Deus permanece
intocado pelo pequeno mundo da classe-média produtora
de imagens. Transforma-se a violência e o caos numa
comédia dramática cujo maior objeto de identificação
é o crescimento afetivo e o amadurecimento de um
personagem marcado pela violência, e que dá
a volta por cima através do trabalho e do talento.
Um discurso fácil, capaz de acomodar o público
após a enxurrada pirotécnica de tiros e
sangue.
O que assusta é o cinismo, a incapacidade de olhar
através de si mesmo: a classe-média observa
suas periferias com cautela. Olha-a como um espaço
externo a ser "curado", a ser "cuidado".
A classe-média produtora de imagens se mantém
incapaz de enxergar. Se há doença a ser
curada, ela, a classe-média, faz parte dela. O
universo paralelo não é o da Cidade de Deus!
Mas o da própria classe-média que filma.
Os excluídos socialmente somos nós, enjaulados
numa estética que ainda enxerga o espaço
da pobreza com pesar, com piedade, como se a cultura da
violência e da fome não fosse também
a nossa cultura. Não a nada a ser descoberto "lá
fora", sem que para isso se atravesse o olhar por
dentro de nossos próprios corpos bem alimentados.
O frenesi de Cidade de Deus conquista justamente
por conseguir explicar de forma lúdica que diabos
é esse tal "resto do Brasil" que volta
e meia flui para dentro do universo asséptico da
alta cultura carioca. Reiterar a vilania da polícia,
a crueldade de certos traficantes, a bondade de outros,
é mapear um universo de forma a torná-lo
mais palatável, mais reconhecível. A realidade
brasileira escapa ao cinema, e Cidade de Deus justamente
aceita a difícil missão de entreter e, ao
mesmo tempo, dar aquele alívio de quem quer se
"preocupar com questões sociais". Esse
mundo alienígena, construído através
de uma narrativa cronológica, funciona como uma
auto-análise social brasileira, como se contássemos
para nós mesmos aqueles traumas enevoados na memória
(o surgimento das favelas, do crime organizado...). A
questão é que a partir desses elementos,
o filme projeta a apatia e a perigosa tranqüilidade.
Público e protagonista tornam-se conscientes daquela
situação, percebendo-a como um círculo
de forças sociais em tensão; mas que se
equilibram numa continuidade inesgotável.
A dor do filme se suspende diante daquela certeza "engajada"
de que a realidade dos pobres não pode continuar
desse jeito, de que a vida nas periferias é cruel
por constituição íntima e intransferível.
De algo precisa ser feito.... O sinistro resultado não
é o entrecruzamento entre as verdades socais brasileiras,
mas o alargamento do abismo, dando novamente à
classe-média brasileira o cetro de poder e de consciência,
ela, a poderosa detentora do olhar cinematográfico,
que vem a público prestar seu pesar diante daquele
mundo de violência e miséria. Os pobres continuam
alienados, a imprensa continua interesseira, os policiais
continuam corruptos, a classe-média continua em
Ipanema...
Se esteticamente o filme se transfigura num impacto de
movimento e suor brilhante, essa estética não
carrega a narrativa ao choque necessário; levando
ao extremo um certo senão do livro de Paulo Lins,
o de achar sua narrativa tão relevante a priori
que se abstém de um desdobramento. Mostrar a violência
e a pobreza dentro de um cinema de ficção
(o documentário brasileiro continua tendo esses
espaços como eixos principais), parece ser tão
relevante e importante por si só, que o desdobramento
ético do filme se esvai. Ou melhor: se limita a
essa missão cívica de "mostrar a realidade'...
Pobre cinema que se vale da realidade como muleta para
sua falta de ânimo. Pobre realidade dependente de
um cinema tão cínico, tão interesseiro,
que lhe suga o sangue, lhe tira o que interessa, e lhe
deixa de lado, à deriva, intocada. Essa educação,
esses bons modos entre o criar de imagens e a estetização
realista dos fatos resulta de uma profunda incapacidade
de se deixar levar pela energia própria daquele
espaço. Cidade de Deus se faz sobre a estética
milimétrica, exata, pré-fabricada por demais
para ir além do que já lhe era projetado;
tornando-se incapaz de, além de se debruçar
sobre aquele espaço, deixar que o espaço
de debruce sobre ele.
Cidade de Deus é perigoso à medida
que dá sinais claros dessa suposta de compreensão,
à medida que pretende fazer política através
da síntese, do mapeamento. Os personagens, objetos
de uma política externalizada, continuam calados,
agindo como autômatas. O público, escondido
atrás do espelho falso, se espanta e se diverte
diante de seus anti-heróis...incapazes, ambos,
que ainda estão, de se olhar dentro do mesmo quadro.
Mais um giro em torno do próprio rabo...
* * *
Um filme essencial para todos os interessados no cinema
e no Brasil. Um filme capaz de, através de uma
observação crítica e ao mesmo tempo
desarmada de sua presença marcante na tela, desnudar
as frestas de um novo e revigorado ânimo para o
olhar cinematográfico brasileiro. Um passo a mais
(mesmo que preconceituoso e limitado a tiques nervosos
de estética televisiva) em direção
ao vasto universo de imagens e afecções
que se anuncia no corpo imenso e fragmentado das grandes
cidades brasileiras.
Felipe Bragança
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