A Outra
Youssef Chahine - El akhar, Egito, 1999
Cinema de invenção não é exclusividade daqueles que subvertem as noções de narrativa, tampouco está preso ao nicho de cineastas cuja preocupação estética ultrapassa largamente a perspectiva comercial do filme. Chahine mostra, em A Outra, como pode-se tomar uma trama folhetinesca, com todos os ingredientes de um dramalhão, e subvertê-lo - seja na pontuação, inusitada, seja no total descompromisso com realismo de ambientação ou interpretação. Pois, se os personagens deste filme notável agem por impulsos, o diretor não fica atrás, recusando-se a abrir mão de uma grande idéia.

Desta forma, em determinado momento temos um arquiteto imaginando uma futura obra erguendo-se do deserto: a obra arquitetônica é grandiosa, e pretende abrigar as três religiões existentes no Egito, o islamismo (maioria), o catolicismo e o judaísmo. Os efeitos são toscos, iluminados por detalhes que seriam infames, não fossem desprovidos de qualquer pudor limitado pelo ideal de filme de arte. Em outro momento, em um diálogo entre filho e mãe, esta abre a cortina do quarto, revelando uma tela de cinema, onde passa uma cena de The Great Waltz, cinebiografia de Johan Strauss dirigida por Julien Duvivier. Chahine insere tantos ruídos, quase todos formidáveis, que é muito comum nos perguntarmos se estamos vendo realmente a realização de uma idéia ou algo que fugiu ao seu controle. Interessa muito ao diretor explorar os aspectos puramente ilustrativos (e que podem ser confundidos com brilharecos) de uma situação, cobrindo-a de um tesão ao filmar que torna quase impossível a não adesão numa visão criteriosa. Como se a trama, de uma riqueza difícil de ser percebida de imediato, precisasse e se nutrisse desse tesão para ser realizável.

Adam é rico, nasceu nos Estados Unidos, de pai egípcio e mãe americana. Estuda na América, mas tem laços profundos com sua origem egípcia. Ele se apaixona por Hanane, muçulmana, aspirante a jornalista, cujo irmão é líder de um grupo fundamentalista. Ela pretende escrever um artigo denunciando a corrupção do empresário amigo do pai de Adam. Impossível dissociar, desta forma, o romance entre os dois da implicação política e religiosa da região. Principalmente porque Chahine inclui em sua obra preocupações diretamente inseridas no aspecto formal do filme. Em determinado momento, Adam e Hanane vão ao hospital por causa da gravidez dela, mas após o corte nos deparamos com a imagem do teto do hospital visto por alguém em uma maca em movimento. A tela é banhada aos poucos de um vermelho sangue, para depois mostrar as vítimas de um atentado terrorista. Corte inusitado e muito salutar em qualquer tipo de cinema, e que Chahine insere com um prazer cinefílico insuspeito. No corte seguinte, Adam já está na casa dos pais de Hanane em uma situação bem familiar.

Vem da montagem, como ficou claro, grande parte da força do filme. No início, com cortes rápidos, assemelha-se a um thriller de espionagem. À medida em que surge a paixão entre os dois protagonistas, o ritmo torna-se cadenciado, para tornar-se rápido novamente pouco antes do trágico desfecho. A sucessão de planos nunca é negligenciada, pelo contrário, é o que dá ao filme vigor e jovialidade (Chahine tem mais de setenta anos, mas como Manoel de Oliveira, adora uma molecagem), principalmente pelo que tem de imprevisível. Outro exemplo da pontuação desnorteadora de Chahine, que dá saltos ousados na narrativa, obedecendo claramente uma força maior (como dito acima, a força da sucessão de imagens): à primeira noite de amor do casal, sucede-se o casamento deles, à maneira muçulmana, no meio do deserto e debaixo de chuva, em uma cerimônia que comprova o talento do diretor ao trabalhar o espaço cênico. O primeiro plano terminava com Adam observando Hanane enquanto ela dorme, o plano seguinte inicia-se nas mãos dos dois, unidas, com a câmera abrindo para mostrar a cerimônia com todos os seus participantes e o belíssimo cenário natural.

Sua mise-en-scène é espalhafatosa e elegante ao mesmo tempo. Surpreende pela ausência de naturalismo, ao mesmo tempo que encanta pela destreza nos enquadramentos e movimentos de câmera. No segundo casamento do casal, no qual a cerimônia cristã é tomada de forma arrebatadora pela música muçulmana, a câmera move-se com tal elegância que não é difícil lembrar-se de Satyajit Ray. Principalmente por um sublime "zoom out" que parte da mãe de Adam chorando, abrindo para um plano geral dos que estão mais próximos ao casal, incluindo este. Descritivo, contemplativo, o plano expõe com perfeição a intriga que estava surgindo, e que depois esfacelaria os sonhos de vários personagens.

Um outro momento digno de nota é o encontro da mãe de Adam com o irmão terrorista de Hanane, por realidade virtual, na torre Eiffel, encontro que trará consequências desastrosas para ambos. Tradição e modernidade no mesmo plano. Lembrem-se que o fundamentalista está orando a Alá quando ouve uma mensagem em seu computador. Para a trama, a conexão virtual pouco importa, mas a sensação de estranhamento pretendida por Chahine, na conjugação do mais arcaico com as últimas tecnologias (o filme foi feito em 1999), é atingida plenamente.

O final trágico tem uma força política inegável. Ao degolar o sonho humanista do filho (único ser humano que importa para ela), resta à mãe vagar pelas pontes americanas à procura de um sentido para sua ganância. Poucas vezes um filme pôde ser tão revolucionário sendo tão sutil.

Sérgio Alpendre