Verão em Red Hook se apresenta inicialmente como uma típica fábula das “férias inesquecíveis”: Flik, um pré-adolescente hipster negro, chega de Atlanta para passar as férias na casa do avô, um pastor evangélico de uma comunidade negra em Nova York. A situação expõe pelo menos dois conflitos que poderiam servir de eventos “transformadores” para o personagem: o conflito de geração (do menino com o avô) e o contato com uma nova realidade social (o menino rico que chega a uma comunidade pobre). Mas essa premissa inicial rapidamente se revela completamente furada. Porque não existe lição a ser aprendida – se havia alguma, de cunho religioso, ela é interrompida e descartada pela brusca virada do roteiro. E, por outro lado, Spike Lee parece bem mais interessado na crônica social do que na fábula de aprendizado. Nesse sentido, estamos muito próximos de um retorno a Faça a coisa certa.
O que mais impressiona no filme é a sua completa adesão a tudo o que é colocado diante da câmera. Uma adesão que vai além do simples “carinho pelos personagens” e se estende a superfícies menos, digamos, “fotogênicas”. Um iPad, por exemplo. Um iPad aqui é tanto um signo de riqueza quanto o símbolo de uma geração hiper-conectada. Mas não se trata apenas de buscar atualidade no retrato geracional (o filme é “atual”, mas isso pouco importa). O filme adere ao iPad enquanto superfície física, fazendo dele um objeto cênico fundamental em diversas cenas. Adere-se ao iPad como adere-se ao culto religioso nas longuíssimas sequências dentro da igreja. Ou às paredes e espaços ensolaradas e aos estereótipos que povoam aquela comunidade colorida que parece saída de um comercial do McDonald’s. A grande força de Verão em Red Hook está no fato de o filme não se acomodar em um registro “naturalista” e “atual”: Spike Lee está mais interessado na energia que aquelas superfícies podem produzir (as paredes, o iPad, os estereótipos). Daí também que o filme encerre com aquele videoclipe bizarro: pura fascinação lisérgica pelo colorido emanado das superfícies, total abolição das distâncias entre personagens, fundo e espectador.
Essa completa adesão às superfícies gera um olhar táctil e achatado. Spike Lee não quer, por exemplo, um filme ancorado pelo olhar distanciado do menino protagonista (um olhar externo à comunidade, com o qual poderíamos facilmente nos identificar). O filme é tanto sobre Flik quanto sobre seu avô, o reverendo Enoch. É preciso que simpatizemos com Enoch para então descobrirmos que o personagem é um pedófilo. Por isso, há aquela cena fundamental em que ele conversa longamente com a mãe de Chazz sobre as dificuldades de lidar com a nova geração: apesar do passado negro, o personagem tem preocupações humanas como qualquer outro.
Depois que os segredos vêm à tona, é preciso que o personagem apanhe. A cena serve menos como uma expiação dos pecados (inexpiáveis) de Enoch do que como uma demonstração da falta de complacência de Spike Lee diante seus personagens – os quais ele ama de maneira brutal: o filme em nenhum momento deixa de ser uma declaração de amor àquela comunidade. O verdadeiro amor é aquele que exclui a hipocrisia e a comiseração. E é essa energia vital, não condescendente, essa adesão afetiva que desafia qualquer abordagem racional ou moral àquele universo, que faz com que o filme atravesse um longo e tortuoso roteiro de maneira incólume, munido tão somente da força de seu próprio olhar cego.
Calac Nogueira
Novembro
de 2012
|