O Som ao Redor ou o naturalismo À Brasileira
Kleber Mendonça Filho, Brasil, 2012

Só vi metade de O Som ao Redor (devido a uma falha na projeção digital que, por queda de energia, simplesmente interrompeu a sessão e impediu que fosse continuada do ponto onde parou), mas honestamente isso não me impede de levantar questões que o filme provoca. (No meu entendimento, todo filme tem um diapasão que se sente no discorrer de sua projeção.) A começar, tomo emprestado esta frase do texto do Sérgio Alpendre, publicado na Revista Interlúdio, perfeita para se entender o filme:

João (o alter ego de Kleber – a semelhança entre o ator, Gustavo Jahn, e o diretor é incrível), condômino de pose cool e coração que persegue a justiça, mas com certa preguiça ("acho escroto demitir o porteiro por justa causa, mas realmente tenho que ir").

Apesar de não conhecer o diretor, não é muito difícil de imaginar a sua identificação ao personagem vendo o filme. Essa identificação não se dá exatamente pela construção dramática (aquilo que o personagem enfrenta e realiza na condução narrativa), nem pelas operações de mise en scène (realces ao personagem, uma centralidade, ou um destacamento, no quadro, no interior da cena etc.). A identificação é de um outro nível. É o próprio comportamento do personagem que se parece muito com o olhar do diretor sobre o mundo que filma.

Em primeiro lugar, poderíamos dizer sobre este olhar que ele nos aprisiona no nível do ambiente social. Todas as ações dos personagens se dão em espaços de circulação de pessoas (a rua; o prédio; e, dentro de um apartamento, a sala ou a cozinha); mesmo os momentos mais íntimos (a cena de masturbação) são vistos também com um olhar social, pelo seu distanciamento, o pudor, o peso que o ambiente (a máquina de lavar; a cozinha em geral) parece exercer na personagem. A operação primordial do filme é tornar seus personagens, bem como suas ações e suas caracterizações, pertencentes a este nível básico do social e do rotineiro.

Curiosamente, este olhar é, ao mesmo tempo que tão aprisionado no nível social e da rotina, também distanciado, como se não pertencesse àquele lugar que, paradoxalmente, reconhece tão bem. Kleber Mendonça Filho pode ter interesse na vida cotidiana, mas ele jamais daria a seu filme um título como A rotina tem seu encanto. Ele reserva distância à realidade que observa. E no interior dessa vida cotidiana e banalizada, o filme tenta descrever tendências mais ou menos gerais do Brasil contemporâneo: especulação imobiliária; movimento de milícias; classe C; e o indefectível conservadorismo de classe média que lê Veja e se refugia em edifícios tipo condomínio. Este retrato, o diretor vê de longe, tentando não fazer denúncia barata, sensacionalismo ou propagar o ódio de classe. Ele tem “cuidado”, podemos dizer, ainda que também tenha, como um resquício impossível de se desprender do seu olhar, uma “consciência” que é também um não-pertencimento a este universo. Sua contemplação serve como instrumento mesmo do seu não-pertencimento. O filme lança mão do naturalismo e do ambiente da rotina – ou seja, se adéqua a todas as construções sociais, sua linguagem, sua dinâmica, sua vestimenta –, ao mesmo tempo que tem um olhar que paira como uma consciência invisível sobre esta realidade.

Na cena da assembleia de condomínio, em que uma leitora da Veja que declara asco ao porteiro é pauta de discussão, não interessa ao filme se é uma situação engraçada, dramática, ou irritante: busca-se simplesmente constatar que é “real” (verossímil), o ruído do real. Não importa tanto se a personagem representa o conservadorismo de classe média e de que maneira ela pode nos entregar uma experiência de mundo, uma forma de conhecimento do mundo; basta reconhecê-la como a superfície chapada da rotina. O olhar, apesar de distanciado e consciente, contenta-se com a própria “realidade”, com o próprio naturalismo, no qual está imerso como que inevitavelmente. Há uma total impossibilidade de criticar, ao mesmo tempo que também não se cola, não se adere, à realidade a sua frente. É um impasse. Nesta situação, de imponência, de passividade, de incapacidade, resta ao personagem concluir aquilo que o olhar do diretor está também dizendo: "acho escroto demitir o porteiro por justa causa, mas realmente tenho que ir". Ir onde? Sair do pertencimento social, para alcançar um outro nível, o da “consciência social”.

O que me irrita nesta relação com o mundo é esta “certa preguiça”. É um olhar passivo, e não reflexivo, da realidade e da sociedade. Não é questão de realismo. Em um Moretti, um Rohmer, o realismo é o ato mesmo de fazer parte do mundo, de admirá-lo pelo que é. Tenho já outra impressão a respeito não só de O Som ao Redor, mas do cinema brasileiro de viés “naturalista” de maneira geral: é o ato de reconhecer (socialmente) que é primordial. Moretti, Rohmer, se vêem como parte integrante do mundo; os brasileiros se reconhecem como parte pensante do mundo. É como se a realidade só existisse em função do social. Mas, sendo o social, fazemos uma operação mental, de conscientização. O que é terrível, pois é uma reflexão ativa que pára no campo resignado do naturalismo – é a tolerância de que tudo o que é social é natural; é a resignação à rotina. O pensamento se banaliza em um simples “reconhecer” e “constatar”. Mas esse reconhecimento é tão consciente, tão ativo justamente, que se afasta da realidade – como se a parte pensante não fosse parte integrante da realidade – e, finalmente, torna a própria realidade exótica. Mas o social, além de não ser o natural, tampouco pode ser uma “curiosidade”. É o que Adolfo Gomes escreveu, aqui na Contracampo, a respeito de Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios:

Um homem diante da câmera não é suficiente, tem que ser um artista, melhor: um fotógrafo. Se vemos um índio, ele precisa usar um walkman? No plano seguinte, quem sabe um ipod? Se é de um simples animal de estimação que tratamos: gato, cachorro, passarinho? Não. Queremos um camaleão. Até um pistoleiro de aluguel é palhaço de circo entre um trabalho e outro.

Essa é a esquizofrenia do cinema brasileiro contemporâneo de viés naturalista. Tudo precisa ser particularizado pelo exótico. Imagina-se que o interesse surja irremediavelmente por aquilo que nos separa do outro, não nos aproxima. Tal estranhamento, no entanto, não gera sequer a consciência bretchiana da representação, ao contrário, aliena pelo conforto do diagnóstico: as pessoas são estranhas mesmo e a realidade imutável. Nada podemos fazer.


Os cineastas brasileiros de viés naturalista são zumbis sociais, mas cientes de seu estado catatônico. Quanto mais têm consciência de si mesmos, mais resignados parecem.

João Gabriel Paixão


 Novembro de 2012