Já não se fazem filmes de pancadaria como antigamente. Tanto em qualidade quanto em quantidade. Funcionando cada vez mais com o combustível não poluente e ecologicamente correto da censura 13 anos, o cinema tem evitado o punho fechado e a face ensanguentada. Ironicamente, a imagem da violência física continua bastante presente, agora transmitida pela televisão e disfarçada de esporte. O UFC, talvez, sirva como substituto para uma necessidade primária, que o cinema tem se mostrado incapaz de suprir. A falta de concorrência talvez explique seu avassalador sucesso.
Lionheart, visto atualmente, parece pertencer a um distante tempo em que guerreiros eram conduzidos por uma moral, não por uma ética de trabalho. Quando a imagem dos combates era feita de um arranjo muito claro e digno dos corpos, que invariavelmente eram dispostos na vertical dentro do plano. Olho no olho, ao invés da posição que se tornou a imagem-síntese do UFC: um homem no chão e outro por cima, esmurrando-lhe o rosto.
Em Lionheart, filme de briga de rua, não há qualquer regra ou ética. Vence quem ficar de pé no final. Apesar disso, o “vale-tudo” nunca se torna uma saída, tanto para a maneira como as lutas são encenadas, quanto para o comportamento do protagonista, Léon Gaultier: os movimentos de Jean-Claude Van Damme são límpidos e estudados, sem que isso faça perder o caráter violento que todo cinema (e toda arte) deve carregar em si, de alguma maneira ou de outra. Muito já se falou em dança e, mesmo arriscando-se à repetição, não custa lembrar que o ator belga, além do caratê, é conhecedor do balé. Gaultier luta por uma moral que, mesmo eclipsada pela fúria, ilumina a cena no momento em que mais se precisa dela. Tal moral, antes de ser a do mocinho, é a da alteridade. Van Damme luta unicamente para ajudar a cunhada, que teve o marido morto por uma gangue. Há um grão de complexidade neste terreno arenoso, pois, entre os dois nasce uma inesperada tensão sexual, expressa não por palavras ou “signos” óbvios do tesão, mas, pela maneira em que são encenados a maioria dos encontros de ambos, colocando os atores próximos um do outro, sem que eles estejam necessariamente trocando olhares. Ou, de forma bastante evidente, no abraço ao final, quando Gaultier, de rosto e coração ainda cicatrizando, volta para casa.
Depois do desvio necessário, vamos à cena brilhante: na última luta de Lionheart, a que garantirá o dinheiro necessário para ajudar a cunhada, Van Damme, depois de um duro combate, derruba seu oponente, com golpes em falso raccord, que antecipam em três anos o olhar multiplicado que John Woo derrama sob o astro, em O Alvo (astro de cinema: os chutes de Van Damme são feitos para e pela câmera; o tempo precisa se dobrar, com a ajuda da montagem, para que seus movimentos com as mãos e os pés alcancem a beleza planejada). Com o espírito queimando o fogo da raiva – Gaultier descobriu que o agente e único amigo apostou contra o próprio agenciado -, salta por cima de seu algoz, colocando uma das mãos em seu pescoço, enquanto a outra, fechada em um soco, está pronta para atacar, de cima para baixo. O vilão é mostrado em plongée, como se representasse o ponto de vista de Gaultier. O contra-plano não repete o mesmo procedimento: a câmera está exatamente à altura de Van Damme, e não de baixo para cima, como poderia se esperar, se alguém pensasse em termos de simetria. Mas, claro, o assunto aqui não é simetria, é honra, moral. Olho no olho. Nenhum lutador fica por cima em Lionheart. Quando a raiva ameaça transbordar, aí sim, em um close, vemos o rosto do herói em sutil contra-plongée. No entanto, ao ver Cinthia, a força imoral da narrativa, rapidamente a câmera volta ao seu posto, a evidenciar a retidão de caráter de Gaultier. Lentamente, ele tira a mão do pescoço do oponente. A luta está vencida.
Mas não a batalha contra a imbecilidade disfarçada de esporte, e a certeza de que o mundo pode caminhar para um lugar pior se imagens como essas, descritas acima, ficarem esquecidas no passado.
Wellington Sari
Agosto
de 2012
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