O Lago Balaton
Német Egység@Balatonnál – Mézföld, Péter Forgács, Hungria/Alemanha 2011

Não sabemos se resulta da natureza das colagens que costuma utilizar ou simplesmente pelos temas, temporalidade e texturas das imagens por ele articuladas, mas o cinema do húngaro Péter Forgács nos remete a Vertov e à tradição documental russa do começo do século passado. Quer dizer: criar algo, reinventar uma realidade a partir do choque e da justaposição de sentidos e não da mera representação imagética. Naturalmente, para alguém, como ele, que cresceu sob o julgo do domínio soviético, essas referências devem ter uma conotação muito diferente do que a nossa sensibilidade cinéfila pode cogitar. Ainda assim, fica claro: Forgács é um homem curvado ao seu tempo e O Lago Balaton, seu mais recente documentário, a prova da sua capitulação à contemporaneidade.

Sabemos que já realizou inúmeras instalações e é bastante conhecido na Europa como artista multimídia, de modo que, no fundo, não há motivo para nos surpreendermos com esse gênero inusitado de autosabotagem, na composição e no estilo, que o filme incorpora (depoimentos gravados em estúdio ancorando o que é mostrado ou tratado, grafismos de toda sorte, como fotogramas derramados sobre a lateral da tela gratuitamente, que não tensionam, nem contrapõem o desenrolar do plano) para a frustração de nossos desejos mais clássicos ou arqueológicos mesmo. Esperamos alguma pureza, claridade e limpeza na manipulação das memórias alheias, das histórias que emergem de outras épocas, como se assim, na forma sobretudo, fosse possível retomar algo em desuso, anacrônico, quase uma utopia nos dias de hoje: o documentário. Pode parecer demasiado passadista alimentar tal expectativa num mundo em que as imagens não revelam ou comunicam mais nada, mas existem como finalidade em si mesmas.

Concretamente: O Lago Balaton reconstitui, em grande parte através de filmagens caseiras e de cunho privado, o ambiente de relativa liberdade que os moradores do Leste Europeu, principalmente os alemães da extinta RDA (República Democrática da Alemanha, mais conhecida no Brasil como Alemanha Oriental), experimentavam durante as férias no tal lago, uma das principais atrações turísticas da Hungria e, por tabela, dos países da chamada “Cortina de Ferro” (leia-se alinhados com o regime soviético). Pelas características mais abertas do modelo político húngaro, era possível comprar discos e ver shows de rock, encontrar-se com parentes da Alemanha Ocidental e tomar Coca-Cola, entre outras coisas como se enamorar, nesses dias idílicos em torno do Balaton. Temos, portanto, um local, um momento histórico e imagens. Temos informações, uma noção dos métodos de vigilância da STASI (polícia secreta da RDA) e as intimidades daqueles que viveram e registraram tal período  compartilhadas conosco. O que não temos é escolha. “Era assim”, nos afirmam a todo momento. “As coisas aconteciam desta maneira”, eles reforçam. “Essas imagens provam isso”, legitimam. E saímos do filme com todas as certezas do mundo, mas distantes, indiferentes em relação àquele mundo, como se estivéssemos percorrido uma pré-história ilustrada, museológica apenas.

No programa para tevê que Éric Rohmer dedicou a Louis Lumière, o primeiro documentarista do cinema, Jean Renoir comenta: “O desejo de reproduzir a realidade nos filmes do sr. Lumière deixava a porta aberta para a imaginação (...). A um desejo muito sincero de copiar a realidade, sem adicionar ou remover qualquer coisa, tínhamos como resultado final a criação de um mundo, um mundo que existe na realidade, mas que também existe, talvez ainda com maior poder, na imaginação”. Da Saída dos operários da Fábrica  ao Regador Regado, havia, naquele plano fixo e limitado pelo tamanho reduzido das bobinas, uma tensão, uma variedade de movimentos no interior do quadro, uma acuidade na decupagem da cena, que Forgács, e a maioria dos documentaristas de agora,  parece abrir mão em favor do pragmatismo jornalístico ou das facilidades técnicas, como se vinhetas, intromissões gráficas e efeitos digitais pudessem nos aproximar mais do real. Antes e hoje, cada vez mais, o documentário exige não a dramatização do real, com a  proliferação dos docudramas, mas imaginação, o reconhecimento da irrealização do real. Algo como o Juventude em Marcha, de Pedro Costa, que abre uma porta para o documentado descobrir-se diante de nossos olhos ou o que João Moreira Salles faz em Santiago, descobrindo-se no outro. Da época retratada em O Lago Balaton descobrimos somente aquele lugar e novos absurdos de governos totalitários. Mas para isso temos mapas, livros e a revisão histórica para nos ajudar. Devemos esperar mais de um documentário.

Adolfo Gomes


 Novembro de 2012