É possível gostar de um show musical sem ter interesse (ou com total desconhecimento) pelo seu repertório? No caso de Ingrid Caven, Música e Voz, de Bertrand Bonello, podemos dizer que sim. Afinal o que buscamos nesta filmagem da apresentação da atriz alemã na Cité de la Musique em Paris é aquela imagem da mulher inquieta e desesperada em seus amores não correspondidos. Buscamos a personagem de Fassbinder, com o qual Ingrid foi casada, a despeito da declarada homossexualidade do cineasta, além de estrela de vários de seus filmes. A um só tempo, estamos à procura de um autor e de um corpo, nessa espécie de trilha mitômana que nos remete a Pigmalião e a esse nosso esforço traiçoeiro em esculpir, uma vez mais, algo do passado e irremediavelmente perdido.
Mas para além de nossas expectativas e enganos, também existe ali um realizador autônomo, Bertrand Bonello, intrometido entre Caven e Fassbinder (é forçoso reconhecer), porém presente e estabelecido, em reputação e através de sua obra, no nosso delirante imaginário cinéfilo. Diz a sinopse do filme que Bonello “se encantou com um show de Ingrid Caven e resolveu filmar uma de suas apresentações”. Convém especular se tal encanto não provém ainda do trabalho dela como atriz. Como nós, um autor à procura de um corpo.
Naturalmente, a resposta da pergunta que abre este texto tem uma resposta mais detalhada que o momento exige elaborar: gostamos do show-filme em razão da perfomance da sua cantora-atriz. Não é apenas “música e voz”, como sugere franciscanamente o subtítulo. Trata-se, sobretudo, de mise-en-scène. Quando Bonello opta por registrar cerca de dois terços da apresentação na perspectiva fixa do espectador das últimas fileiras do teatro - sem travellings, plongées e big closes – é como se tecesse a necrologia da própria linguagem cinematográfica. Ou, antes, estivesse interessado em voltar à sua origem. Nesta altura fica claro que a ambição de Bonello é ainda mais radical que a nossa. Queremos de volta Fassbinder-Caven, ele quer o cinema, talvez antes da sua própria criação. Poderíamos considerar preguiçosa a decupagem de Bonello não fosse essa intenção subjacente. No entanto, sem um “trabalho de câmera” todos os movimentos de Caven no palco adquirem uma intensidade única, inaugural.
Sua voz é mais a “voz humana” de Cocteau do que o traço concreto de uma melodia. A luz só incide, via de regra, sobre ela. Voltemos ao começo. A primeira imagem aqui é uma não-imagem. A escuridão total e alguns acordes, vultos. Se, de fato, se tratasse somente de música e voz, poderíamos, à moda de Branca de Neve, de João César Monteiro, continuar naquele negrume até o final da apresentação. Não teríamos nada de mais ou de menos do que o sugerido pelo título. Mas se surge a luz, surge o cinema. E a voz e a música são como se não existissem. Não existiam inerentes à película (e ao registro) quando o cinema foi inventado. O filme de Bonello, todo ancorado no cinema (os personagens, as personas acima de tudo, o princípio da iluminação, a prevalência da imagem), em última instância, é tão bonito, ingênuo e simples como acreditar na assertiva de que ainda há o que ser iluminado nos dias de hoje, num palco, por exemplo, uma mulher.
Adolfo Gomes
Novembro
de 2012
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