O Homem do Oeste
Man of the West, Anthony Mann, EUA, 1958

Quem é o homem do oeste? É Gary Cooper, cujas pernas não cabem no espaço a elas destinadas, quando sentado em um trem. Cujos olhos e ouvidos presenciam, pela primeira vez, a chegada da máquina bestial movida a vapor e, tal os espectadores dos Lumière, jogam-se para trás, com medo de serem esmagados pela terrível locomotiva. Neste filme de Anthony Mann, vemos um corpo fora de lugar. Uma figura do passado a caminhar por entre um mundo mudado. Um homem mudado a confrontar fantasmas do ontem.

“Atiramos o passado ao abismo, mas não nos inclinamos para ver se está bem morto”, escreveu Shakespeare. Cooper, um ex-fora da lei, jogou-o no vão e lhe deu as costas, indo viver em uma cidadezinha que aceitou o renegado de outrora. Não só o aceitou, como, anos depois, lhe incumbiu da mais nobre das tarefas nesse Oeste de selvageria e bebedeira: ir até a cidade grande e contratar uma professora. E é assim que o filme começa, com Cooper claramente desconfortável com a missão, não por má vontade, mas por, provavelmente, pressentir que voltar à cidade grande é dar chance ao abismo de vomitar seus fantasmas. O próprio descompasso do primeiro ato do longa em relação aos outros será, por comparação, desconcertante. Estamos rindo do fato de Cooper não caber no assento do trem e, mais tarde, veremos esse corpo atracar-se com outro em uma briga brutal e longa, em que a fúria transfigura o rosto do herói, ao ponto de lhe apagar qualquer traço de heroísmo. Antes disso há, no entanto, a cena que é o centro de gravidade do filme.

Ou, melhor, seu buraco negro: depois que o trem é assaltado por um bando, o homem do Oeste, junto com a dançarina Billie e o jogador Sam vão, em busca de abrigo, ao antigo esconderijo de Cooper (algo que as duas personagens coadjuvantes não sabem, evidentemente). A sequência, de grande duração, se passa dentro da cabana e o espaço aberto cercado por montanhas dá lugar ao tablado, pois a encenação assume alguns elementos teatrais, como a frontalidade dos enquadramentos que, vez ou outra, colocam todos os atores presentes no plano (a sequência, aliás, inicia-se com o acender das luzes, neste caso, provenientes de um lampião). A atuação de Lee J. Cobb, interpretando Dock, aquele que fora o “mestre” do agora pacífico homem do Oeste, com sua voz forçosamente rouca, é expansiva e completamente distinta da resignação contida de Cooper.  O confronto frontal do presente com o passado transcorre de maneira arrastada e densa – daí a opção de Mann pelo peso solene do teatro -, intercalando momentos de explosão com placidez. Movimentos estes que se revezam entre os personagens, mas colocam Cooper sempre em posição de impotência: primeiro ele observa o discurso de Dock, sem poder revelar que mudou de vida. Cercado pelos membros do bando do velho mestre, o ator é esmagado pelo espaço fechado e pela movimentação de J. Cobb, que o cerca, como um leão prestes a atacar. Em seguida, este avança em direção a Billie que, sentada, é provocada pelo velho. Mais adiante na sequência, Coaley, o novo pupilo de Dock, força Billie a fazer um strip-tease, enquanto mantém uma faca no pescoço do homem do Oeste. Momento de grande violência, com Cooper fechado em enquadramentos próximos, podendo apenas olhar sem nada fazer. Violência que parece ainda maior pelo fato de a montagem acrescentar ao plano/contraplano a complacência de Dock, que, sentado e enrolado em um cachecol, tem os olhos não na direção do corpo de Billie, mas em algum ponto do passado, quando os homens eram verdadeiramente corajosos.

E homens do verdadeiro Oeste vivem no espaço aberto. A vingança de Cooper sobre Coaley se dá em um campo, na já citada cena de briga. A grande força da cena está, justamente, no choque entre a clausura da sequência anterior e a exploração selvagem da terra, da poeira, da árvore, das pesadas nuvens no céu, nas montanhas ao fundo, no espaço físico percorrido pelos atores a se esmurrarem e rolarem pelo chão. Ao final do embate, o embate entre passado e presente, afinal Coaley é aquilo que Cooper fora um dia, este arranca as roupas daquele, em um ato de brutalidade muito mais típica dos spaghetti westerns do que do faroeste clássico americano.

Este constante conflito entre passado e presente, entre pais e filhos, só poderia terminar em uma cidade fantasma. Lasoo, a terra prometida, com seu banco repleto de dólares, que promete fazer retornar a emoção dos velhos tempos – Dock planeja um assalto derradeiro por lá -, não passa, na verdade, de uma paisagem abandonada e decrépita, o cenário deprimente de um Oeste que há muito não existe. O abismo que separa Dock e Cooper no tiroteio final, abismo gerado pela profundidade de campo, cria uma sensação de que tudo será engolido pela terra, o passado e o presente, e que o homem do Oeste, o envelhecido Gary Cooper, mudado ou não, deve desaparecer, pois, acabou, seu tempo já se foi. O plano final deste grande filme de Mann, não poderia, então, ser outro: a carroça com o ex-pistoleiro vista por trás, a sumir pela estrada.

Wellington Sari


 Dezembro de 2012