IMAGEM DO MÊS: Era uma vez no oeste
C'era una volta il West, Sergio Leone, Itália/EUA, 1968

Harmônica (Charles Bronson) talvez seja nada mais do que um fantasma. Ou, quem sabe, a consciência de Frank (Henry Fonda), que se tornou matéria concreta com o objetivo nobre da vingança. Harmônica ressoa todas as almas silenciadas pelo homem de preto, e uma das mais belas cenas de Era uma vez no Oeste é a que mostra Bronson recitando o nome de várias dessas almas sem paz. “Quem é você”, pergunta Fonda, com os olhos azuis arregalados de assombro. Essa pergunta se repetirá algumas vezes e a resposta será sempre uma coleção de nomes que pertencem a corpos há muito putrefatos em algum canto desse Oeste que, como escreveu Michel Ciment*, é formado de memórias cinéfilas.

“Qual é seu nome?” Harmônica é a própria terra e é por isso que o sobretudo que usa tem a cor do chão, da montanha, da madeira. A presença de Bronson é sentida como o vento sinistro que produz o som de mau agouro emitido pela hélice do cata-vento, no início do filme. Som que, durante muito tempo, está fora da imagem, mas é onipresente. As entradas em quadro do vingador da gaita, súbitas e sutis, estilizadas e orgânicas, são incongruentes e impossíveis como aquela arrepiante sensação de que algo nos observa e, quando olhamos para trás, não há ninguém lá.

Frank sabe que não se olha o fantasma nos olhos (afinal, não há ninguém lá) e é então que chegamos naquele que é um dos jogos de campo/contracampo mais perturbadores do Oeste. É a cena do duelo: as duas figuras ocupam cada qual o extremo do quadro. Frank tira o casaco e começa a caminhar lateralmente, para ficar em uma posição frontal com Harmônica (1). A câmera acompanha o rosto de Fonda (2). Assumindo o seu ponto de vista, a câmera, em uma combinação de travelling lateral com panorâmica, capta Bronson estático no meio do plano, plenamente integrado ao espaço, de tal modo que quase não se pode diferencia-lo de um tronco de madeira, ou da pedra que reveste a montanha ao fundo (3). É nada mais do uma pedra que encara o bandido, no plano seguinte (4). Harmônica tem o olhar que nunca pisca da consciência a fitar o culpado. Este, temendo o poder petrificante da Medusa Harmônica, finalmente sucumbe, desviando o olhar de Bronson (5, 6, 7), que, no contracampo, permanece tão impassível quanto uma árvore milenar no deserto, cuja única coisa a se mover são os cabelos, quando tocados pelo vento (8) – não é difícil, aliás, imaginar de onde John Carpenter tirou a ideia para a criação de Michal Myers. A paisagem inóspita – e muito já se escreveu sobre as semelhanças entre rostos e paisagens em Leone – que é Bronson, com sulcos profundos lhe cortando a cara, como rios secos em uma planície, é o último suspiro de uma América completamente selvagem. Todo esse passado de morte, sangue, poeira, bebedeira desvairada e ganância reflete na feição de Harmônica. Frank, agente ativo neste passado inglório, não pode suportar terrível visão. Por isso, levanta os olhos para o céu.

Harmônica, resgatando mais uma vez Ciment, é um personagem à margem da História desse Oeste em vias de ser ligado pelos trilhos de trem. Ele aparece e desaparece em tal ambiente hostil, como surgem, de tempos em tempos, as pragas para castigar os pecadores (peste que é fruto do próprio peso na consciência dos que pecam). Frank, o último dos pecadores, precisa ser eliminado para que o progresso chegue, para que Little Water regue a terra e dela brote uma cidade. O travelling ao redor de Bronson, pés fincados no chão e rosto imperturbável, ressalta a imutabilidade das forças da natureza. É o mundo que muda ao redor da montanha. Adeus Oeste, alô América – lugar em que os fantasmas se divertem.

Wellington Sari

* Ver Positif, Novembro de 1969


 Novembro de 2012

 
 






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