Das ruas silenciosas do subúrbio em Halloween à terra vermelha em Fantasmas de Marte, uma imagem parece persistir no cinema de John Carpenter: o deserto. O deserto pode ser entendido aqui em diversas acepções da palavra: na sua aridez enquanto dado físico, que será a gênese de uma mise en scène a partir de Halloween e Assalto à 13º DP; como microcosmo hostil da humanidade onde os personagens são abandonados à própria sorte (Fuga de Nova York, O Enigma do Outro Mundo); ou como imagem literal em Vampiros. Essas três acepções ressurgem e se combinam ao longo da obra do cineasta.
John Carpenter, “mestre do terror”: é curioso que este rótulo tenha recaído sobre um cineasta dono de uma obra tão singular, tão pouco imitável ou codificável. Muito antes de se inserirem na codificação do gênero, os filmes de Carpenter prezam por uma relação vital com o espaço. A câmera não acompanha os personagens: ela se instala nos ambientes. A partir daí, estabelecem-se as linhas de força do deserto carpenteriano: o foco na ação física e um movimento subsequente de deterioração daquele espaço pelas forças do mal ou do próprio homem.
É por essa relação fundamental com o espaço que são tão comuns em Carpenter filmes ambientados em uma cidade inteira (A Bruma Assassina) ou típicas situações dramáticas de encurralamento (Assalto à 13ª DP, Príncipe das Sombras). Ou, ainda, filmes como Fuga de Nova York e Os Aventureiros do Bairro Proibido, que só existem em função do espaço mágico e surreal percorrido por seus personagens: estes filmes são como gincanas em que os personagens devem completar um circuito para cumprir seus objetivos. Em O Enigma do Outro Mundo, filme que provavelmente representa o acabamento perfeito dessa estrutura, o estabelecimento de um espaço restrito se combina com uma dramaturgia em espiral. É bem possível que o filme soe fastidioso para as plateias de hoje, justamente por seu caráter estático: a câmera apenas desliza horizontalmente pelos espaços, registrando, degrau a degrau, o processo de deterioração daquele microcosmo.
O que une Assalto à 13ª DP e Halloween, além do fato de serem duas obras-primas, é a ambientação similar. No primeiro, os personagens se debatem contra um paradoxo: o distrito policial fica bem no meio da cidade, mas ninguém parece notar o que se passa ali. Desde o início, durante cenas diurnas, Los Angeles é retratada como uma cidade fantasma: apenas a indiferença dos carros passando pelas rodovias. Na cena do assassinato da menina e do sorveteiro, tampouco vemos uma alma viva sequer na rua. O mesmo ocorre em Halloween e suas ruas desérticas de um subúrbio anônimo.
O que mais impressiona em Halloween, revisto hoje, é justamente a economia do filme. Temos apenas a câmera, cinco ou seis personagens e seu jogo de gato e rato em um enorme playground suburbano. É um filme independente maravilhoso, que conserva sua juventude intacta numa aula de mise en scène para qualquer estudante de cinema. O filme é menos de uma trama de assassinatos em série do que um mergulho contemplativo na aridez daquele universo, em longos travellings assombrados por uma figura no fora-de-campo. Sobretudo nas cenas diurnas, Carpenter orquestra tudo como um balé impressionista, como na cena em que as personagens fumam maconha no carro e ele deixa a luz incidir sobre a cena. Os planos sempre abertos e as constantes aparições e desaparições de Michael Myers nas bordas do quadro reforçam a sensação de vulnerabilidade das personagens numa paisagem que parece prestes a ser consumida pelo seu próprio silêncio (ver fotos). Junto com Assalto à 13ª DP, Halloween confirma a vocação de Carpenter para um cinema paisagístico, onde a câmera nos instala nos ambientes ao mesmo em que investiga, dotada um olhar próprio, aqueles espaços. Essa investigação irá se deparar com a própria aridez da paisagem, o mal encarnado em silhuetas que se descolam do fundo e caminham em nossa direção. Há pouca ou nenhuma diferença entre Myers e a gangue de Assalto à 13ª DP: ambos encarnam um mal abstrato, que avança mecanicamente, impassível, encurralando suas vítimas. Será assim sobretudo nos primeiros filmes (A Bruma Assassina, O Enigma do Outro Mundo, mas também em Christine e Príncipe das Sombras).
É um cinema drenado de todo humanismo, onde só resta a ação física: daí que a maior parte dos filmes de Carpenter sejam dramas de sobrevivência em seu estado mais puro. O personagem encurralado deve encontrar maneiras de explorar aquele espaço para conseguir escapar, como em Príncipe das Sombras, onde os personagens atravessam uma parede de tijolos (ver fotos). Essa aridez física talvez seja a grande herança que Carpenter traz de Hawks, para quem só parece existir a realidade mais imediata da matéria. Não há respiro “humano” borrando a mise en scène: em Carpenter, temos tão somente uma contaminação do todo por uma visão pessimista que servirá de ponto de partida para a organização de todas as relações dentro do filme.
Esse “deserto humano” é o que verificamos em Fuga de Nova York, onde a ilha de Manhattan se tornou um território sem lei em um mundo pós-civilização. Da raça humana, nada restou além da brutalidade e da opressão das instituições (no caso, o governo americano). A visão pessimista carpenteriana é pautada por um olhar terreno sobre as coisas: a civilização nada mais é do que um grande projeto de instituições mesquinhas, enquanto aos homens restam as satisfações mundanas: o sexo e a violência. Em Christine, o ato sexual é consumado com um carro (haverá perspectiva de futuro mais árida para a humanidade?). Dentro dessa mitologia, no entanto, há poucos filmes tão brilhantes quanto A Bruma Assassina, onde um pequeno povoado é literalmente erguido sobre sangue e ouro – sendo o evento fundador da cidade o assassinato e o roubo de um antigo tesouro de piratas, segredo guardado a sete chaves pela Igreja.
Muito já se comparou os filmes de Carpenter a diversos westerns clássicos. Apenas dois breves apontamentos para reforçar a evidência. Em Assalto à 13ª DP, a referência inicial a Onde começa o inferno, de Hawks, é prolongada em outra imagem clássica do western: ficamos apenas à espera de sinais de fumaça daquela misteriosa gangue que se camufla no horizonte como índios de um faroeste dos anos 40 ou 50. Em termos de estrutura, porém, o grande faroeste de Carpenter será Fantasmas de Marte, que retorna à clássica situação da diligência que deve transportar um perigoso prisioneiro por um deserto hostil (se a marcha civilizatória chegara à Antártida nos anos 1980, aqui chegamos, enfim, a Marte), cercada por perigosas e extravagantes criaturas não civilizadas.
No entanto, é em Vampiros que Carpenter enfim chega à imagem literal do deserto. A opção é improvável: realizar um filme de vampiros em plena luz do dia, num terreno desprovido de todo e qualquer charme gótico, as paisagens desérticas do Novo México. Carpenter devolve ao mito do vampiro sua violência. Ele animaliza as criaturas, que aqui vivem trancafiadas em covis improvisados, como uma infestação de morcegos. Passando o foco para os caça-vampiros, Carpenter faz menos de um filme de terror do que um filme de ação. As cenas-chave são menos aquelas que nos assombram do que as de pancadaria viril (“Padre, você teve uma ereção?”).
John Carpenter, “mestre do terror”: é curioso que este rótulo tenha recaído sobre um exímio diretor de filmes de ação (Assalto à 13º DP, Fuga de Nova York, Eles Vivem, Vampiros). Apesar de minuciosamente orquestrados com o objetivo de instaurar um clima intimista, os filmes de Carpenter preservam uma fascinação essencial pela imagem, que pode ser compreendida na chave de um cinema físico (hawksiano, justamente).
Existem dois tipos de homens no mundo: os que viram o deserto e os que não viram nada. Essa lição, que aprendemos com os olhos de John Wayne em Rastros de Ódio, Carpenter soube bem retomar como herdeiro do cinema americano da era clássica. O deserto são as bordas da civilização, o mundo pré ou pós-civilizado. Um território hostil física e moralmente, onde se manifesta a verdadeira face do mal. Os homens em Carpenter, todos eles, viram o deserto, e os filmes tratam justamente desse encontro, que será a fonte do horror em seus filmes. Se os antigos pioneiros encontravam (e derrotavam) índios e piratas, aos pioneiros de hoje cabem as esdrúxulas criaturas dos filmes de ficção científica (fantasmas, vampiros, ectoplasmas ou a própria coisa). Das cidades erguidas sobre o deserto, sobre o sangue ali depositado, apenas uma civilização monstruosa pode surgir (Fuga de Nova York). Só se pode esperar, então, que a maldição um dia retorne (Assalto à 13º DP, Halloween, A Bruma Assassina). E ela retornará, sob qualquer que seja a forma.
Calac Nogueira
Novembro
de 2012
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