O Anti-Progressista

Se há uma noção que atravessa a estrutura da obra de John Carpenter, tomada em conjunto, e tecida progressivamente filme a filme, é a noção de ameaça. A engenhosidade de Carpenter consiste em confrontar seus personagens a uma situação de crise caracterizado pelo afrontamento de uma ameaça exterior num espaço/tempo fechado e restrito. Mas no que consiste a arte de Carpenter, para além desta fórmula? Em demonstrar que a ameaça vem também do interior. E como essa ameaça modulará as diferenças físicas, intelectuais e morais de seus personagens. Assim, se a ameaça exterior é caracterizada pela sua homogeneidade e seu funcionamento simbiótico, os que resistem a ela necessitam construir uma mínima coerência necessária a sua sobrevivência.

O quadro se define tanto pelo que ele contém quanto pelo que ele exclui: esta é uma lição maior que deixaram os realizadores de filmes B (Lewton e Tourneur em especial) em seu uso do fora-de-campo. Em Carpenter, tudo será operado pelo espaço, que é o centro de seu arsenal fílmico: ocupando posição privilegiada na estrutura de seus filmes, faz brotar daí sua magia enquanto esgota seus recursos seja a partir do ponto de vista do cenário ou da mise en scène. Um dado essencial é encarar o espaço como portador de sentido, pois é aí que Carpenter, via reconstrução especial que a montagem possibilita, baseia seu estilo. Nesse sentido, se o cinema pode elaborar inumeráveis realidades (enquanto percepções) ele o faz não ao mostrar, mas ao montar em conjunto, ao co-ligar. Se geograficamente, temporalmente ou metaforicamente Carpenter trabalha a ideia de um espaço fílmico fechado, o faz para desenvolver a tensão que será reveladora dos personagens. Tomar a vista que nos oferece o conjunto, a articulação, o poder de montar um todo expressado no - e pelo - espaço.

Se todos descobrem que o inferno está lá fora (como em Assalto à 13ª DP, onde a gangue, que inicia os ataques à delegacia após um de seus membros ser morto, nunca é filmada em planos próximos, nunca é individualizada) (1, 2), o trabalho de câmera deslocará esse inferno para cada um de nós e buscará demonstrar a coexistência da luta humana.  É esperando, resistindo ou lutando que se revelam as dúvidas e falhas daquilo que está além (algo invisível, por mais das vezes) deles. Diante da ameaça, os resistentes aglomeram-se com dificuldade antes de buscar uma coerência: não seria esta a batalha a ser lutada que se revela unificadora? (27) É possível notar o trabalho de câmera no sistema de encenação que Carpenter desenvolveu justamente quando ele procura traduzir as relações humanas construídas entre os resistentes a partir de, primeiro, planos gerais e sobretudo planos médios, que podem representar espacialmente as relações de força, (des)confiança e hierarquia entre os grupos ou personagens (4, 5, 6, 7, 28, 29), e, segundo, um regime de campo / contracampo que explicita a fossa que separa os personagens (fisicamente, ideologicamente, etc).

Quando os personagens debatem, por exemplo, que conduta devem adotar ou a estratégia a seguir em determinada situação, Carpenter põe seu regime de campo / contracampo diretamente em cena sem adotar um “princípio” ou início de cena. Desta maneira, os personagens que não coexistem no mesmo planos tornam-se ainda mais distantes, até fisicamente, enfatizando a lacuna que os separa. Aos personagens que demonstram a crise de nervos ou egoísmo, falta a competência para encaixar-se no rígido código moral carpenteriano, sendo destinados a sucumbir, como a secretaria Julie, em Assalto à 13ª DP, que se recusa a arriscar sua vida pela de um estranho. (8, 9, 10) A maior herança de Hawks é de ordem estrutural: a ação prevalece sobre o preconceito ou a educação: o valor de um homem é aquele conhecido face à adversidade.

Da mesma maneira, podemos enxergar em O Enigma de Outro Mundo, na cena da sabotagem das bolsas de sangue (quando, efetivamente, se descobre que um dos exploradores é “a coisa”), que Carpenter escolheu por reduzir seu espaço (11), destacando as interações entre os dez (!) personagens em cena (as desconfianças entre Garry e o Dr. Cooper, o início de confusão entre Childs e Clark (12, 13), o juízo que MacReady começa a exercer para com os outros (14), a progressiva fuga de Windows em travelling (15)), conduzindo com precisão uma operação que não pode levar outro nome senão o de decupagem.

Em meados dos anos setenta, a tendência do cinema americano é a fragmentação das formas narrativas clássicas. Nos filmes de Romero, por exemplo, a câmera tornada livre vai buscar restituir uma realidade desconstruída pelo inferno do Vietnã. Mas Assalto à 13ª DP, o primeiro “verdadeiro” filme de Carpenter, trabalha uma forma que, apenas na aparência, beira a um ultra classicismo. Por trás de sua execução falsamente antiquada do filme B reverenciado, o filme encobre um fervilhar, sutilmente mascarado pelo rigor dos enquadramentos e do roteiro, muito respeitoso à regra das três unidades. O aparato fantástico trabalha à superfície, imputando ao máximo uma verossimilhança da trama enquanto forja uma realidade opaca. Quando deslanchado, o cerco aparenta ser literalmente incrível aos olhos do espectador como aos olhos dos personagens. Ou seja, o fantástico só é concebível em relação a uma norma, e seu efeito será ainda mais eficaz se a norma apareceu primeiro de modo inabalável (os primeiros minutos de Assalto à 13ª DP). A grandeza de Carpenter, plantada nesse “primeiro” filme e modelada ao longo de sua obra, reside nessa dupla capacidade de construir uma superfície ordenada e segura (16, 17, 18), e proporcionar, ao mesmo tempo, uma impressão surda do caos. (19, 20)


APELO À LUCIDEZ (CINEMATOGRÁFICA)

Em Fantasmas de Marte, um filme constantemente mau-interpretado, trata-se de uma narração em primeira pessoa. A tenente Melanie depõe numa corte do governo em um hipotético 2176, governo esse formado por um matriarcado controlado por um conglomerado chamado apenas de “Cartel”. Sabemos, ao fim do filme, que a tenente omite o fato de ter deixado Desolation Williams, seu prisioneiro, fugir. Ela omite para não comprometer-se; e, ainda mais, porque ela se sente confiante em arriscar sua vida por Desolation, o que pode muito bem ser ilustrado pelo último plano do filme: uma aliança oculta, proibida, e, por isso mesmo, muito mais verdadeira do que as frágeis instituições que perguntam-se, caducas, o que reportar no relatório a entregar. É o prolongamento lógico do rebelde Snake Plissken, o herói-impossível em forma de holograma que coloca o planeta na escuridão, de volta ao primitivismo.

A narração em primeira pessoa preenche o filme de abordagem via flashbacks, e Carpenter vai fundo nisso quebrando o tempo em pequenos pedaços que se interligam. Em duas ou três oportunidades, vemos a mesma ação por outro ângulo. A luta, em Fantasmas de Marte, se dá entre duas espécies diferentes: os invasores humanos e os marcianos. Como seres humanos, devemos depender da perspectiva do outro, seja ela um testemunho visual, boatos ou relatórios, se buscamos ter uma visão completa da situação. Assim, os personagens do filme têm o direito a negação; negar o que é desagradável ou contra as expectativas. Pode-se negar a verdade pois não se vê “tudo” com seus próprios olhos. Não por acaso, exatamente o que a corte matriarcal faz (e essa é a razão pela qual, muito provavelmente, perderão a guerra que se inicia no final do filme contra os marcianos).

Os marcianos, diferentemente, movem-se de corpo a corpo com facilidade, sempre impunes. Eles são, literalmente, imortais. Apenas estavam trancados. Quando seu hospedeiro morre, o marciano simplesmente “toma” outro corpo. O que isso significa, essencialmente, é que não existe algo como a História para os marcianos. Um guerreiro marciano testemunha toda a sua História enquanto dura a sua vida. Ele não depende de livros para saber do passado, ou de que as gerações anteriores compartilhem com ele as leis marcianas. O marciano é eterno. A estrutura do flashback, então, possui importância enorme: ela demonstra uma distinção importante entre humanos e marcianos, o principal conflito do filme. Como humanos, vivemos após a morte somente na memória dos outros, enquanto os marcianos vivem sem cessar, para além da morte do corpo. Quando Melanie é possuída por um marciano, a droga na qual é viciada salva sua vida pois mantém sua mente livre enquanto, por meio de uma montagem, temos acesso ao “saber marciano”. Ela se percebe como diferente (humanos vs marcianos).


UM PARÊNTESE NA OBRA? DE QUALQUER MODO, UM BELO PARÊNTESE

Se o extraterrestre de Spielberg vai nos fechar nos subúrbios da classe média americana e proclamar um republicanismo insípido, o homem das estrelas de Carpenter vai atravessar a América e suas origens massacradas por Reagan, na contramão de um cinema patriótico norte-americano dos anos oitenta. O sci-fi intimista de Carpenter vai filmar os grandes espaços americanos em Technicolor e Panavision, mas o que cria interesse aqui é o tratamento dos personagens em relação a esse fundo. Aos poucos, Starman se revela como uma releitura da conquista do oeste, um road movie pelas florestas e desertos (21). A grande ideia de Carpenter é evacuar rapidamente o espetacular (as breves cenas do início, com efeitos parcimoniosos) para se concentrar na relação do casal com uma simplicidade desconcertante. Pode ser o que há para se notar aqui: a humildade do projeto, a simplicidade da história por trás de um pequeno espetáculo técnico que poderíamos tranquilamente considerar desproporcional. Um pode não apreciar a ingenuidade transbordante do filme e seu aspecto humanista, mas eu, que os adoro, creio ser a doçura do tom e o sentimento de inevitabilidade que torna o todo aqui pungente: o aprisionamento dos personagens, a nostalgia pelo passado (o falecido marido), um otimismo latente, e uma bela história de amor, em suma, Aconteceu Naquela Noite num fundo sci-fi.

Starman nasce da vontade dos estúdios em surfar a onda dos gentis extraterrestres iniciada pelo sucesso de E.T., de Spielberg, no início dos anos 80. Curiosamente, o filme que arrasou com O Enigma de Outro Mundo nas bilheterias, estreando poucas semanas antes do filme de Carpenter. Em 1984, quando Michael Douglas oferece o projeto afastado a Carpenter, traça-se uma oportunidade ao cineasta, conhecido por seus filmes  escuros e de horror, a trabalhar em outro registro. A saber, uma história sobre um extraterrestre preso na Terra que vai perturbar a vida de uma viúva (Karen Allen) ao tomar a aparência de seu falecido marido (Jeff Bridges). Starman e sua “prisioneira” devem atravessar o país em três dias para chegar ao Arizona, onde uma nave pode levá-lo de volta a seu planeta. Este é todo o tempo de que ele dispõe para descobrir a língua local,  os costumes e... o amor! Carpenter tem, portanto, o desafio de realizar um filme otimista, portador de um discurso humanista, onde reinarão os sentimentos. É a questão de confrontar uma personagem com a representação do outro amado e questionar os sentimentos que ela pode ter a seu respeito. A primeira cena de Karen Allen, que repassa incessantemente os instantes de felicidade vividos com seu marido impressos em película (projetando, sozinha com um copo de vinho), planta de imediato um estilo. “Este pode ser um belo filme”. E é. Sempre, em Carpenter, já foi dito, o conflito é como uma batalha eterna entre o Bem, o Mal e principalmente sobre o espaço indefinido entre eles (em Príncipe das Trevas, trata-se de uma aliança entre um cientista e um padre; em Fantasmas de Marte, entre uma policial (uma mulher) e um foragido (um homem); em Vampiros, entre outro padre (mas não a Igreja) e um caça-vampiros; em O Enigma de Outro Mundo, trata-se da dissimulação: “não se pode confiar em ninguém”, MacReady diz, gravando sua voz uma espécie de diário countdown-to-death) que atravessa os personagens, vai além deles, mas sempre esta tensão advindas dessas forças fantásticas é que fará surgir a humanidade, a esperança que pode nos salvar.

Se da obra de John Carpenter extraíssemos um negativo, como um negativo fílmico, algo que invertesse suas cores, seus movimentos e sua dramaturgia, esse negativo seria Starman. Abandonando um pouco sua escuridão característica, a apropriação do gênero aqui (road movie) é aproveitada para transmitir sua visão da humanidade. O extraterrestre, memorizando comportamentos e sentimentos, é o personagem que nos dá um ponto de vista neutro do aspecto humano e que possui um discurso lúcido enquanto se insere em uma realidade que impede o mal absoluto de se encarnar, em contraste com os outros filmes deste mesmo cineasta. O Mal, aqui, é a própria humanidade (3) “invertida”, a monstruosidade no humano, dissimulada: já eram os temas de Enigma de Outro Mundo, Halloween e seu Michael Myers, a gangue de Assalto à 13ª DP, Eles Vivem, mas nunca encenada tão frontalmente como aqui: a culpa recai sobre o ser humano, o arquiteto da caçada humana empreendida a duas pessoas inofensivas (“Welcome to Planet Earth”). Ainda assim, o olhar permanece sutil o suficiente, pois Jeff Bridges reflete menos o Bem do que um tipo de “reflexão do humano”. Quero dizer com isso que ele é ambivalente (por exemplo, na sequência em que observa Jenny furar o semáforo e a imita). Através das peripécias do casal em fuga vamos ser apresentados igualmente aos marginalizados e à juventude como fonte de esperança, portando uma riqueza humana em oposição à uniformização e rigidez dos membros do exército ou da polícia, e é com o primeiro grupo que os protagonistas conseguiram escapar. Nesse filme escondido, outro apelo à lucidez. Para além das paisagens, que Carpenter justapõe a um scope dos mais puros (o “sistema” do campo / contracampo e planos médios/gerais nunca se interrompe), montando uma espécie de western no crepuscular, ode aos despossuídos, aos seres abandonados em cafeterias imensas e vazias. Podemos notar, na cena em que o casal pega carona numa caminhonete com uma índia e seu filho, o alcance do talento de Carpenter. Atrás deles, podemos ver a imensidão das paisagens americanas de westerns clássicos. A história de Starman é aquela de um país que tem medo, onde os serviços militares percebem “o outro” como estrangeiro ou como ameaça nessa visão fascista da diferença. A criança  que passa pelas mãos de Jenny Hayden e da indígena indica uma união das minorias, e a esperança de Carpenter, aqui fordianamente um porta-voz dos despossuídos, no porvir. (22, 23) O cientista especialista em manifestações extraterrestres, o incorruptível Mark Shermin (Charles Martin Smith), será a ovelha negra em oposição às forças militares e governamentais. O charuto que ele orgulhosamente acende diante da face do conselheiro do presidente faz eco a outros personagens (Snake Plissken, o outsider que dá pistas falsas aos poderosos) e ao próprio Carpenter, cowboy solitário que despreza as representações de autoridade. (24, 25)

Como pano de fundo, a encarnação do que pode ser a estupidez do homem em todo o seu esplendor, de caçadores crassos até policiais que perseguem um suposto ser perigoso que é apenas paz e felicidade. E são finalmente apenas dois – Jenny Hayden e Shermin –  que compreendem que este outro veio de outro lugar. Isto é triste. O que impressiona no filme é a sua inteligência com a admirável retenção dos interpretes e cineasta em representar emoções. Um filme a lembrar que Carpenter é, além de tudo, um grande diretor de atores. Seu roteiro é clássico, quase esquemático se pensarmos na relação com Encontros Imediatos do Terceiro Grau. Mas é a maneira de tratar o tema e tentar nos fazer crer na história que nos toca o coração. Se demonstra, então, como o cinema é, acima de tudo, uma questão de atores e de mise en scène e não repousa somente nos efeitos roteirísticos. Sem jamais choramingar, mas por outro lado sem perder seu tom justo, a história de amor à maneira de Capra conduzida com delicadeza tem como principal acerto o jogo entre os dois atores principais: o sensível rosto de Jeff Bridges sustentado de modo belo pela ferida Karen Allen, que carrega seu luto até a cena mais tocante do filme: a ressurreição do cervo, verdadeiro momento de graça, visto de dentro da cafeteria por Jenny, e experiência que a faz reconsiderar o abandono a Scott. A fluidez narrativa banha o filme numa espécie de atemporalidade que joga muito pouco com a urgência da situação, preferindo se ocupar das paisagens do oeste americano e da atmosfera dos lugares de passagem (as citadas cafeterias, Las Vegas, os restaurantes de beira de estrada). É uma sensação de plenitude que emerge do filme até o espetacular final, que conclui em estado quase-íntimo, e o último plano se torna muito emocionante. (26)

Perto do fim, talvez uma das mais belas frases já ditas num filme, quando Jeff Bridges diz que o que encontrou de mais maravilhoso nos humanos era a capacidade de fazer o melhor quando as coisas estão no seu pior. É exatamente isto o cinema de John Carpenter. E é isto que compreende Mark Shermin quando permite a ele ir encontrar os seus. Talvez os filmes de John Carpenter possam nos revelar os mais profundos mistérios dessa catástrofe a que chamamos o progresso. Não há nada que se faça além de manejar alguma forma de destrinchar as desigualdades (sociais, raciais, econômicas) que estruturam e estratificam a sociedade americana.

Marlon Krüger


 Novembro de 2012


 
 






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