A Bela que Dorme
La Bella Addormentata, Marco Bellocchio, Itália/França, 2012

Convém esclarecer primeiro que A Bela que Dorme não é tanto um filme sobre a eutanásia, mas sobre a Itália. Não temos aqui, portanto, uma ilustração dócil dos pontos-de-vista em torno do assunto, posto que todos os personagens do filme estão equivocados: o desafio de cada um eles é justamente encontrar a própria verdade interior. A atualidade do filme consiste, então, no retrato da histeria que toma conta de um país católico assombrado pelo assunto.

Os personagens são como duplos ou caricaturas histriônicas de si mesmos: Isabelle Huppert é uma atriz que abandonou a profissão para tornar-se uma fanática religiosa, como se usasse seus dons de interpretação para mover os céus em busca do milagre que tirará sua filha do coma (ver a cena em que a personagem derruba lágrimas diante do padre); Toni Servillo é um dublê de senador obrigado a cumprir o papel que se espera dele, a despeito de suas convicções pessoais.

Bellocchio volta seu olhar para as instituições: a família, a Igreja, a política e a medicina. O filme se aloca nessas instâncias para filmar o tumor que toma conta do nosso meio social. Fabrizio Falco, o irmão doente de Roberto, é como Lou Castel em De punhos cerrados: alguém tomado pelo pathos da histeria e do radicalismo, que transforma os homens em esquizofrênicos. O esquizofrênico, também ele, torna-se um personagem, uma caricatura de si mesmo. Como no filme de 1965, Bellocchio filma o retrato social sob o ângulo da doença, como se afirmasse que a Itália, hoje, está repleta de esquizofrênicos. Não por acaso, há o personagem do psiquiatra que acompanha os políticos, cinicamente prescrevendo remédios a eles.

Os planos/contraplanos entre Maya Sansa, a drogada, e Pier Luigi Bellocchio, o médico, estão entre os pontos altos do filme: a viúva negra diante do mocinho bem-intencionado, o tumor diante de seu médico. A cena final espetacular: depois de acordar, a personagem se dirige à janela, aproveitando o cochilo de seu guardador para enfim suicidar-se. Ela abre a janela e entrevemos apenas a massa de um céu acinzentado ao fundo. Os sons da cidade tomam conta do plano pouco a pouco: esse sopro de vida sonoro dentro do plano varre da imagem o silêncio da morte preparado pela cena, fazendo a personagem retornar ao leito.

Se nem tudo no filme é perfeito, como já não era também em Vincere, resta-nos sobretudo o olhar do cineasta: um olhar duro, que não se agarra ao humanismo fácil e dócil (uma vez que todos os personagens estão errados, torna-se difícil simpatizarmos com a maior parte deles). Reside aí o ponto que provavelmente fará algumas plateias estranharem o filme: Bellocchio se aproveita de um tema “humano” para fazer um filme dotado de olhar político. E são raros os filmes hoje que podemos chamar de fato de “políticos”.

Calac Nogueira


 Novembro de 2012