PALOMBELLA ROSSA
Itália/França, 1989

O cinema de Nanni Moretti não é o do eu. Não é egotrip à la Woody Allen ou Fellini, nem “autoficção” de reality show. O que interessa a Moretti é tornar o eu irredutível ao seu próprio corpo, à matéria que é feito; é desnudar-se. Moretti o joga abruptamente para um outro lado, o lado da tela, deixando-o a sós, entregue à própria sorte.

Existe uma grandeza especial neste gesto. A posição solitária que Moretti tem, e que até mesmo a almeje e a reafirme, não o leva para um território do íntimo, do introspectivo, uma paisagem lúgubre, um filme do Antonioni, mas para o calor inesperado do coletivo, do público, do devassado. Isso lhe torna ainda mais sozinho, fazendo-o ocupar somente um espaço do quadro geral, não lhe permitindo ser maior do que o mundo ao redor. E tudo isso é muito cômico, a comédia da democracia das sociedades modernas. Moretti detesta a multidão, como todos nós que não suportamos a rotina de 9 às 6, as praias de final-de-semana, a televisão, as redes sociais. Ele detesta, mas sabe que, de todo modo, não há mais para onde ir, qualquer outro lugar é ilusório. Dessa contradição, a da incapacidade de sair do lugar, nasce o cômico, o ridículo, assim como suas neuroses, devidamente problematizadas (ridicularizadas) em cena.

Palombella Rossa representa sua obra mais bem acabada que se coloca neste todo, completo e asfixiante, do qual não se pode sair. É aqui que ele afirma, de maneira definitiva, que tudo pode ser e é filmável, é cinematográfico. Melhor: de que o “cinematográfico” não é algo restrito, eletivo, “fotogênico”, mas que deseja a realidade, a realidade como um conjunto total, onde nada mais é censurável ou descartável.

Palombella nos coloca no mais improvável dos cenários: um clube esportivo, com piscina, barzinho. Honestamente sou incapaz de recordar qualquer outro filme que se passe neste local. E se, de fato, houver outro, é improvável que transmita na sua própria espacialidade o fato de ser uma propriedade privada (nada no filme diz que é; mas, a locação, além de insólita, é, pelo menos, hermética). Não é uma rua, uma praia, uma praça, uma cidade, um país... A entrega de Moretti a este espaço, na pobreza de sua falsa amplitude, em sua grotesca aridez, é digna de um Godard (o Godard dos escritórios, hotéis, iates, que vem de Sauve qui peut (la vie) até Film Socialisme). Como Godard, Moretti deflagra a falsidade inerente do “privado” através da estranheza deste cenário, mas também pela asfixia de não sairmos jamais dele. Ao não sairmos de lá praticamente todo o filme, não há também uma ferramenta de comparação: de modo que se sente esta estranheza do espaço privado, mas é também quase como se nem déssemos conta disso, como se estivéssemos em vias de permitir a sua naturalização, imersos que estamos nas palavras da politicagem, da “jornalisticagem”, da bitolação, nessa coisa estreita que é nossa mente, nossas obsessões.

Ao mesmo tempo, ele permite a este espaço, tão individualizado, tão absurdamente específico (jogo de polo aquático), também pertença paradoxalmente ao espaço público, capaz de abarcar questões enormes da política, da mídia, de todo um passado coletivo. Moretti, como cineasta, se pergunta: estou em uma externa arejada e natural ou na claustrofobia artificial do privado? O mundo, a sua grandeza, seus sonhos, se atomizaram a uma piscina de um Domingo barulhento de um clube de fim-de-semana? Moretti jamais haverá de se perguntar isso novamente, e dessa maneira, que é, ao mesmo tempo, crítica e neurótica (em verdade, sua neurose, bem como a sua irritação, coincidem precisamente com a sua vontade de crítica), embora faça algo parecido em Habemus Papam, entre os portões do Vaticano e as ruas de Roma. Mas, em Palombella, nenhum dualismo é possível. Moretti simplesmente entrega tudo em uma superfície chapada ao espectador e este que se vire.

Palombella Rossa é ainda um filme totalizante e de painel, com um sem-número de ideias soltas, aleatórias e delirantes. Em geral, este tipo de descrição decai a obras “de gênio”, muito excessivas, autobajulatórias, incapazes de criarem qualquer visão crítica da realidade, a qual dominam como um demiurgo. Para estes filmes (penso em um Crash, de Paul Haggis, ou um Babel, de Iñarritú, só para tornarmos a comparação mais clara), Moretti senta soberanamente aos seus lados e lhes institui uma lei: só há um espaço; só há a própria realidade, inultrapassável, sob a qual não podemos nos “deslocar”. Acaba-se aí a pretensão de dualismos; tautologias; montagens paralelas; dramaturgias sob a lógica da bola de neve em descida; consciências culpadas perdidas em um grande deserto; que são o alimento vulgar destes filmes. Em Palombella, ao contrário, quando Moretti entra no espaço mental, do “alter ego”, do mundo das lembranças e dos sonhos, de tudo que pode ser arbitrário e específico (Doutor Zivago; pólo aquático), será para torná-los transparentes, e pertencentes a esta mesma realidade. É devido a este desejo de ser sempre transparente, cristalino, que nunca antes um filme de permutações aleatórias, desordenadas e de ambições totalizantes, me pareceu tão fresco, novo e espontâneo.

João Gabriel Paixão


 Agosto de 2012