Não se trata apenas de um cinema pessoal. Nos melhores casos, trata-se de criar uma estrutura. O que muda entre Ecce Bombo (1978) e Palombella Rossa (1989) é sobretudo a forma de apresentar as próprias obsessões, que se torna mais sofisticada a cada filme. O diário será, então, a materialização definitiva deste projeto. Em Aprile, o divã se rompe e as imagens são libertadas. A partir dos anos 2000, a obra de Moretti estabelecerá toda uma outra relação com a ficção, que, mesmo atravessando ainda questões pessoais, se torna mais autônoma, dona de si própria, sem a ginástica histérica do retorno constante à figura do eu que marca os filmes das décadas de 80 e 90.
Tanto Bianca como Palombella Rossa têm em comum o fato de se passarem dentro da cabeça do alter-ego morettiano. O primeiro é marcado desde o início pela atmosfera irreal: metido num paletó azul claro, como professor de matemática recém-contratado da Escola Marilyn Monroe, Moretti parece ter acordado dentro do mais profundo de seus sonhos. Toda a ficção do filme é tecida sobre o pastiche hitchcockiano (a referência a Janela indiscreta se prolonga na trama do falso culpado). Mas é sobretudo a ideia do voyeur que o filme empresta deste referencial cinematográfico. Moretti atira seu personagem literalmente no centro de sua solidão. Isolado em seu apartamento, preservado da boçalidade do mundo, Michelle se encontra, porém, cercado por janelas que alimentam suas taras e obsessões. Seu vazio existencial se impõe em sua incapacidade de dar chance ao romance quando este aparece, com a personagem feminina que dá nome ao filme ("A felicidade para mim é impossível. É algo com o qual não estou acostumado.").
Essa estrutura voyeurista, no entanto, rende momentos impagáveis para a mise en scène morettiana: Bianca desaparecendo por trás do ônibus, a sequência surreal na praia ou o final do filme, quando Michelle, em seu depoimento, abre a janela da delegacia e dá de cara com sua obsessão: pés que cruzam a calçada pra lá e para cá, criando um gozo fetichista momentos antes de o personagem ser enfim ser encarcerado e levado, como um monstro, para a cadeia.
É Palombella Rossa o filme que possivelmente atinge a perfeição da estrutura em forma de divã. A concisão espacial, restrita ao ambiente da piscina, gera uma sensação de claustrofobia. A memória é um jogo de polo-aquático e a água, sua matéria sensível que faz insurgir traumas de infância, juventude e da vida adulta. A amnésia enfrentada pelo personagem é a maneira como Moretti enxerga a situação da esquerda italiana, esquecida de um sentimento essencial e perdida nos estilhaços de discussões insignificantes. Não à toa sua equipe vai sendo derrotada. Derrota que se confirmará no fim, ironicamente em um erro do próprio Moretti, vítima de sua indecisão ("Para onde atiro, direita ou esquerda?").
A imagem da vespa que abre Caro Diário ressurge no final de Aprile. Trata-se da mesma imagem que estampa a cartela da produtora de Moretti, a Sacher Film. O que isto quer dizer? A imagem da vespa equivale, para Moretti, ao puro prazer. O puro prazer de andar de moto por sua cidade e o puro prazer de filmar. Os planos que abrem Caro Diário não têm nenhum significado a não ser o de fixar a lógica do filme dentro do itinerário pessoal. São planos longos, demorados, onde contemplamos o puro prazer do movimento e da paisagem. No final de Aprile, que é uma reflexão sobre a crise criativa e pessoal, Moretti grita de sua vespa: "Devo filmar aquilo que me agrada, não as coisas feias", para em seguida jogar fora todos os recortes de jornais que acumulara ("só porque me deixavam irritado") para o documentário que pretendia fazer sobre a Itália. O gesto catártico é uma declaração de princípios do projeto estético de Moretti: filmar o que der na telha. Filmar uma cena de musical – como a que encerra Aprile – apenas porque se tem vontade, pelo puro prazer de filmar.
Nesse sentido, o personalismo não deixa de ser uma estratégia para resguardar a própria liberdade artística. Caro Diário propunha uma inversão em relação à obra dos anos 80: a estrutura passa a ser determinada pelas próprias imagens, e não o contrário. O essencial aqui é sobretudo o gesto artístico de liberdade. Daí que o filme abra com os emblemáticos planos de Moretti sobre vespa. Como sua continuação e desdobramento, Aprile será o ápice deste projeto: um filme de imagens livres, que parecem simplesmente planar sobre a tela, se conectando suavemente e dispensando a própria estrutura do diário do filme 1993.
Como é típico de um cineasta de esquerda, Moretti sempre partiu do eu para chegar num mundo que lhe é exterior. Era assim ao falar da juventude em Ecce Bombo, do lugar do cineasta em Sogni d'Oro, do papel da religião no mundo moderno em A Missa Acabou ou da situação da esquerda em Palombella Rossa. Aprile é o filme em que destino pessoal do diretor e o destino político da Itália se entroncam como uma fluidez e uma naturalidade impressionantes. Como todo auge, o filme também marcará a entrada de sua carreira numa outra "fase" a partir de O Quarto do Filho.
Calac Nogueira
Agosto
de 2012
|