aprile
Itália/França, 1998

Cineastas como Moretti fazem parte daquele grupo de artistas que escondem atrás de uma simplicidade às vezes desconcertante o quanto são geniais. A leveza com que costuma abordar seus filmes, principalmente os de autorretrato, pode gerar, ao confrontar-se com olhos desatentos, a impressão de que não há muito para ver. Que não há muito além das aflições ególatras do diretor, expostas por intermédio da comédia. Aprile, lançado em 1998, brinca com esta ideia, ao mostrar Moretti dividido entre fazer um documentário sobre a situação política da Itália ou um musical situado nos anos 50.

Dar a luz a algo que pode tocar, de alguma maneira, as feridas da sociedade ou saciar um desejo próprio? O filme tem os primeiros minutos calcados neste dilema, que logo parece se resolver, quando o ator/cineasta abandona a filmagem do musical sem rodar ao menos um plano. As escolhas formais na cena em que isto acontece são quase como um tema, que será utilizado e repetido diversas vezes neste princípio da narrativa, demarcando o estado de espírito do personagem: em PG, posicionado em segundo plano, Moretti está desolado, com a cabeça apoiada nos braços, no teto de um carro; ao seu redor, várias pessoas vem e vão. Há uma confusão latente no quadro. Em um momento anterior, o cineasta filma um comício sob a chuva e a única coisa que se vê é uma multidão de guarda-chuvas a caminhar, enquadrados em plongée. Por fim, naquela que é uma das imagens marcantes de Aprile, Moretti, também com a câmera o enquadrando do alto, é mostrado enrolado em um enorme pedaço de papel, com colagens de jornais, formando, "um único jornal gigante". Enquanto está ocupado com o dever ("não quero fazer, mas devo" aparece em um dos monólogos do personagem) que é o documentário político, o diretor está sempre em meio ao caos, ao excesso, parecendo sempre em desarranjo com o entorno.

Até que outra variante entra na equação: o nascimento do filho. Gradativamente, Aprile é ocupado pelo Moretti pai, deixando o outro, o quer pensar no geral, ao invés do particular, um pouco de lado. Assim, cenas em externas, com multidões a preencher a tela, passam a dar lugar a pequenas passagens "caseiras". O diálogo entre marido e mulher, em que tentam decidir o nome que darão ao bebê, interrompido pelo telefonema da mãe de Moretti, ansiosa para saber detalhes sobre Fogo contra fogo, é bastante representativa desse movimento que o filme dá em direção às pequenas aventuras da vida privada.

O gesto, a partir daqui, passa a ter importância ainda maior e, em determinados pontos, parece significar um processo de redescoberta. Muitas das ações de Moretti lembram uma criança, em contato com o mundo pela primeira vez: ora pega um telefone na mão e fica impressionado com a leveza do aparelho, ora, sentado sozinho em um sofá, começa a rodopiar os dois braços, como se estes fossem duas hélices; depois, passado alguns meses desde o nascimento do filho, engatinha pelo chão de casa, junto com a criança. Mesmo sendo simplória esta afirmação, não há porque não fazê-la: o filho lhe fez nascer outra vez. E assim, ajudado pela fita métrica que um amigo dá de presente, mostrando quanto resta de vida (uma ideia visual belíssima), Moretti, simplesmente, sai por aí, para vivê-la. Andando na moto, com um sobretudo esvoaçante, fazendo picadinho dos antigos recortes de jornal e fazendo-os flutuar, ou correndo loucamente por um corredor e gritando "ação": a penúltima sequência de Aprile é o exato oposto das cenas iniciais, quando Moretti estava confinado às multidões. Reconciliado consigo mesmo e renascido, o diretor está pronto para realizar um sonho que é pessoal, mas, que nem por isso é incapaz de contagiar os que estão ao redor. E a sequência final de Aprile talvez seja a imagem que sintetize o cinema de autorretrato de Moretti. Nela, vemos os dançarinos fazendo os seus passos e, no último plano, a câmera volta-se para a equipe de filmagens do filme dentro do filme, mostrando-os a dançar no ritmo da música, todos em sincronia, balançando o corpo para lá e para cá, para lá e para cá.

Wellington Sari


 Agosto de 2012