a missa acabou
Itália, 1985

Moretti é um cineasta da crise. Para ousar ser plenamente ele mesmo num mundo descrito como vazio, há de ser muito narcisista para não perder seu ponto de vista.

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Em 1985, A Missa Acabou. Uma Europa ainda dividida, em declínio. Só é possível vermos ela emergir ironicamente no filme de Moretti, aqui e ali. A noção de "barbárie" para se referir ao estado das coisas alastra-se como a praga. As locações peninsulares, o labirinto de ruas estreitas com suas paredes descamadas e de cores quentes, os dêmonios familiares: a mãe, o advogado, os vários desajustados, aqui antigos companheiros esquerdistas de Don Giulio, que voltou à sua pequena vila na condição de padre. É um pouco desse mundo montado em torno da protagonista – interpretado por um jovem Moretti - que impulsiona um tom único à narrativa, uma espécie de commedia dell'arte fúnebre, onde por trás da aparentemente simplicidade de sucessivos rascunhos vemos a exigência de cada escolha, a irresignação, a revogação, a distância conquistada e mantida ao olhar do afã anédotico que é a existência cotidiana. Nada é mais indicativo nesse sentido do que o tratamento que Moretti dá a seu próprio papel, que, embora componha a espinha dorsal de seu filme, deixe seu lugar para os atores secundários trabalharem, com um senso de equilíbrio que a elegância impõe.

A Missa Acabou é tecido pelas andanças de Giulio, que vaga desacordado, como um estranho em sua própria Roma, pela antiga igreja, convivendo com sua desunião espiritual e carnal: sua aventura se depara com a ausência do outro. Na sequência da volta a casa materna, cruza por todas as peças do ambiente numa coreografia; a seguir, acha a pequena bola vermelha (seu fetiche de quando garoto mimado) que anima o espaço da casa, congelado pelos problemas de saúde da mãe, resignada; a irmã, ausente; o pai, que sonha com um flerte. Giulio certamente confontra as expectativas de um espectador, mesmo aquele não-cristão. Muito mais escandoloso para o espectador, entretanto, é seu colega afastado do ministério, um depravado mergulhado em obsessões sexuais ingênuas e portador de um tom cômico estridente. Apesar disso, nos desperta (e também a Giulio) como um solitário adolescente que cresceu rápido demais, que jamais encontrou Deus e que, mesmo sofrendo a pior angústia, jamais poderá falar com naturalidade, como um amigo. Ele ainda se comporta como um padre, um subordinado. Já com Moretti, a figura do sacerdote é tomada pela sua capacidade de, mais clara e imediatamente (e visualmente) do que qualquer outro, subsumir todas as encarnações possíveis da revolta contra a desordem do mundo moderno, insidiosamente estabelecido sob o nome da ordem.

A estrutura de A Missa Acabou é The Bellboy em Roma: abrange e unifica as trajetórias dos vencidos traçando segmentos breves, não recorrentes, como que pequenas fatias das vidas delas ou "preparações" que Moretti desliza sobre seu microscópio: a mãe, abandonada pelo marido; a irmã que pretende abortar; o amigo decepcionado com o amor que vive enclausurado; o convertido inconveniente que, por ociosidade, tenta o sacerdócio e acaba casando-se; o livreiro perseguido pelos jovens violentos que praticam como um esporte a caça ao homossexual; o ativista que permaneceu incondicional em sua posição, mas mutilado da fraternidade que uma vez possuiu. Perdido em seu sacerdócio como em "uma floresta escura", Giulio confessa-se. Ele é um ser humano dos mais comuns: distraído de início, depois voluntariamente desatento com as sórdidas lamúrias das confissões, enfim violento e potencialmente mortal como qualquer machão italiano, desdenhoso da esperança divina, como um infiel ao ameaçar a irmã: "Se você abortar, mato você e depois me mato". Estamos aqui longe do pároco de aldeia de Bresson ou do louco de Dreyer.

Moretti não se põe outra questão técnica: como compartilhar exatamente com o espectador o que se forma dentro de mim? Esteja certo de que ele não põe nada a perder: utilizando o campo-contracampo num diálogo quando é importante ver apenas o rosto dos atores – com a face bem iluminada – e um único olhar é suficiente para desmascarar qualquer auto-complacência. Quando Giulio recebe a notícia de que seu pai vai largar sua mãe e casar-se com uma mulher muito mais nova, ele vai questionar a irmã, sem entender porque ela não havia contado nada a ele. Após um plano médio onde os dois aparecem sentados à mesa, a sequência se desenvolverá basicamente a partir do campo-contracampo de seus rostos. A irmã, que sabia do segredo do pai, diz que talvez seja amor. Giulio não está muito convencido. É aí que sua irmã retira da gaveta da mesa uma carta do pai a amante, que escondeu com receio da mãe a encontrar. Enquanto sua irmã lê a carta em voz alta, só resta a Giulio ligar o rádio a mesa e tentar não escutar. De um modo ou de outro, Nanni Moretti não muda o registro: continuamos a encarar o rosto apático, rígido, por vezes com os olhos cerrados e incrédulo de Giulio. E, quando vemos sua irmã, o olhar daquela que acredita no amor, com a janela aberta ao fundo. A fuga do personagem para a música não é novidade em Moretti, mas poucas vezes foi tão bem executada quanto aqui: a decisão de Moretti pelos planos aos quais me referi simplesmente impedem o espectador de enganar-se se ele olhar.

O artista pode trabalhar independentemente de um álibi para criar imagens embebidas diretamente da sua angústia e transforma-las em fúria eficaz a queixa que se perde no ambiente barulhento. Moretti faz surgir bruscamente na civilização requintada (mas morta), no canto das paisagens mais pacíficas, um grupo de torturadores sádicos na incrível cena da vaga do estacionamento. Ao ter uma faca em seu pescoço, Giulio recita Dante. O personagem/padre/alter ego também é um vencido. Vai aposentar-se na Patagônia, fugindo dos homens. A Missa Acabou já soava como aqueles filmes que fazem uma cinematografia renascer das cinzas. Mas não durou muito tempo. Ainda em seus primeiros longas, no intervalo entre A Missa Acabou e Palombella Rossa Moretti vai fundar a Sacher Film, em conjunto com Angelo Barbagallo, produtor de Bellochio nos início dos anos oitenta. É na Sacher Film que Moretti vai alcançar a maturidade de sua obra: o já citado Palombella Rossa, mas também Caro Diário e Aprile.

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2012, Habemus Papam. Aquele tempo que temiámos chegou. Não há espaço para A Missa Acabou, que fez Daney perguntar-se o que significava ser um crítico de cinema. A Sacher Film ainda funciona, aqui financiada pela Eurimages. Definitivamente o "açougue catódico" ao qual Daney se referiu, hoje mundial e fortalecido, pode desviar a carreira de alguns cineastas de modo bastante significativo. Os melhores momentos estão quase todos subjugados ao fenomenal trabalho de Piccoli, que, poderíamos considerar assim, é atingido pelo medo cênico ao interpretar o papa.

Melville, ao contrário do padre Giulio, sempre se comportou serenamente, mesmo que secretamente carregasse dentro de si a ilusão de ser ator, como um segredo que o muniu de forças para enfrentar o sacerdócio. Mas ao ser eleito papa sua vida desmorona e se deflagra como uma grande ilusão. Não é mais o sermão que nos falta, mas o homem enquanto unidade.

O retrato dos cléricos, graças ao ritual fechado do conclave, abre-se para a ficção. Com seus velhos caprichos infantis e remédios fortes, não são mais do que moradores de um asilo. Se vê a gerontocracia da instituição, mas o filme não faz desse seu argumento para acusação. Pelo contrário, a escolha contribui para uma atmosfera de comédia entre amigos, bem longe das supostas negociações políticas que ocorrem num conclave. O psicanalista, que se vê preso na Basílica de São Pedro, aparece tão impotente quanto Melville, nem mais nem menos. Para atenuar sua sensação, organiza um torneio de volei com os cardeais, que jogam sem abrir mão de seus trajes. Mas quando o Vaticano chama e os atletas amadores abandonam o torneio, o psicanalista, tomado pelo seu próprio entusiasmo, manifesta sua frustação de organizador de torneio e diretor. Nada vai mudar a igreja.

Então, o que temos? Qual é o fundo de Habemus Papam? A primeira vista, simplesmente a crise existencial de um homem solicitado à mais alta função espiritual. Nas entrelinhas, se agita uma reflexão sobre a encenação do poder. Os trajes dos religiosos, o protocolo, a grandiosidade dos locais e sobretudo os meios de comunicação e as multidões de fiéis salientam que a eleição do papa é um espetáculo organizado em torno de uma varanda com cortina vermelha e a fumaça branca. Confrontado com isso, o cardeal Melville sente um incômodo: aquilo não é feito para ele e ele terá a coragem de confessar. Como no teatro ou em rituais, ou mesmo nos esportes, a pretensão é de fundar uma verdade que não existe fora de si, exceto para aqueles que foram enganados. Tudo é mera aparência, nenhuma transcendência é justificada ou inspirada pelos padres. O sagrado não será mais do que uma veste – ou uma túnica – e não faz o homem. Onde está a fé? Com o personagem interpretado por Moretti em segundo plano, acompanhamos uma narrativa de indíviduo contra mundo, figura e fundo. Se Habemus Papam tem um aspecto singular na filmografia de Moretti, pode ser, novamente, uma questão de fingimento. A estatura do personagem principal, os lugares majestosos, a importância do evento e até mesmo a aura de Michel Piccoli contribuem para esse aspecto – quase apático – que perturba quem já viu seus primeiros filmes. Voltando a Sacher Film, o sistema de produção de Moretti, que já foi aquele da pura necessidade, foi invadido (e talvez tenha sido convidado a invadir) por um tumor ensoberbecido.

Marlon Krüger


 Agosto de 2012