Força digital
Há dois filmes acontecendo simultaneamente no episódio I de Star Wars, que, para fins didáticos, podem ser delineados a partir da figura de Jar Jar Binks.
Filme um: é o que exibe a criatura em CGI pisando em uma gosma e exclamando, em tom agudo, “meleca!”.
Filme dois: é o que reserva ao alienígena o segundo plano da cena e o mostra, de modo quase imperceptível, gesticulando para chamar atenção de um guarda do senado (cuja impassibilidade remete a um membro da guarda real inglesa).
O primeiro filme tem, portanto, valor superficial – não apenas no sentido da inegável frivolidade, mas, principalmente, no de ser completamente acessível. Já o segundo é muito menos direto - para notar esta gag é preciso desviar o olhar da trama propriamente dita. A fim de melhor compreender a relação que estes dois filmes estabelecem entre si, ou, em outros termos, para entender como o visível é assombrado pelo invisível em A ameaça fantasma, é necessário assinalar a ruptura estética empregada por Lucas na obra de 1999. Ruptura em relação a Uma nova esperança, O império contra-ataca e O retorno de Jedi, é claro. Nestes três capítulos a ação é guiada, basicamente, por personagens construídos de maneira a ilustrar os escritos do antropólogo Joseph Campbell acerca da “jornada do herói”, conceito que propunha identificar a estrutura similar, composta pelos mesmos arquétipos, de diversos mitos. Sendo assim, toda cena na primeira trilogia de Star wars é imediatamente clara em suas intenções. No exato momento em que Darth Vader, vestimenta negra, atravessa uma cortina de fumaça em um cenário inteiro branco, sabemos o que é aquele homem (vilão) e o que irá fazer (vilanias). Cada plano reafirma, sem distrações, o caráter básico do personagem. No episódio I, no entanto, os arquétipos, presentes em menor grau, não carregam a ação, apenas são levados por ela. Obi-Wan Kenobi, um dos heróis da narrativa, mal parece saber o que lhe acontece ao redor, por exemplo. O arquétipo deixa de ser o centro da imagem.
A ruptura em A ameaça fantasma se dá pela substituição de um conceito literário, advindo da narratologia, por outro, de base imagética. Lucas, em A ameaça fantasma, parece ter emprestado ideias da estética pictórica clássica. Especificamente uma delas, que remete diretamente a uma proposição de Alberti, descrita em Da pintura, acerca da maneira mais prazerosa de se narrar/ver uma história: que é por meio da variedade e da abundância. Para o italiano, há que se preencher o quadro com tudo aquilo que é da criação divina, buscando a coerência entre os elementos. É isso o que permite à pintura melhor explorar sua vocação, que é a de contar histórias. Logo, artistas deveriam misturar, na composição, “velhos, jovens, meninos, mulheres, meninas, criancinhas, frangos, gatinhos, passarinhos (...)”. A copiosidade de elementos seria como um banquete ao espectador que, entretido, olhará com deleite “todas as coisas”. Não há mais o centro da imagem para se focar o olhar. Toda a superfície da tela pode atrair a atenção.
Ora, a longuíssima sequência da corrida de carroças a laser é uma tentativa de concretizar uma parte deste pensamento. Cada plano que a compõe é praticamente um inventário de criaturas do universo Star Wars. A variedade de cores, texturas, formas, figurinos, idiomas inventados, é impressionante. Temas estes que não são arranjados com a coerência de que escreveu Alberti, entretanto. O poder da tecnologia digital, ao permitir que Lucas insira basicamente qualquer coisa no quadro, não faz do cineasta um gourmet a oferecer generoso banquete ao espectador, e sim um deus que, orgulhoso das suas criações, as exibe sem tentar esconder vestígios de soberba – o que não chega a ser um problema. Afinal, é este o momento, na corrida dos pods, em que o diretor revela, de uma vez por todas, estar absolutamente desinteressado em narrar a trama por meio das lições de Campbell. Algo que já era sugerido no início do filme, quando, ao escaparem de uma cidade subaquática, Jar Jar Binks pergunta a Kenobi e Qui-Gon Jinn: “para onde estamos indo?”. Jinn responde: “não sei. Deixe que a Força nos guie”. Não seria excessivo emprestar a palavra “Força” para fazer dela uma metáfora ao que foi descrito acima. Pouco interessa por que os personagens estão indo para tal lugar e o que fazem quando chegam lá. Não é pelo personagem que o espectador deve se interessar – quem é o protagonista de A ameaça fantasma, aliás? -, é pela copiosidade em CGI. No entanto, há algo agourento escondido neste reino da fantasia.
Força oculta
Este desprendimento ao modelo narrativo tradicional, guiado pelo texto, permite a Lucas, por paradoxal que a afirmação possa parecer, a liberdade para, em uma obra de fartura visual, ultra-colorida, infantil, falar sobre o mal de forma mais pungente do que na trilogia anterior (e não se pode deixar escapar a ironia dos planos finais, festivos, com tambores, danças exóticas, serpentinas e acordos de paz: praticamente todos os heróis ali presentes foram responsáveis indiretos pela queda da República, mostrada nos episódios posteriores). Mais pungente por que mais sutil, sorrateira e imageticamente depurada. A lógica, neste ponto, é a mesma do humor com Jar Jar Binks: ainda que haja Darth Maul, um personagem evidentemente malévolo, de rosto vermelho e chifres, algo como um ninja satânico, este não é o verdadeiro vilão. A real ameaça fantasma está em segundo plano, operando nos bastidores, fazendo política. Basicamente como no mundo real.
De que maneira, então, Lucas concilia o sorrateiro, o sutil, com a extravagância tecnológica que é a marca maior de A ameaça fantasma? Por meio daquela antiga arte cinematográfica, praticamente esquecida: a mise en scène. Entre centenas de criaturas geradas por computação gráfica, perambulando em lugares também criados por esta técnica, o diretor ainda encontra tempo para arranjar gestos de atores em um espaço construído a partir do ponto de vista da câmera. A mise en scène, com seus fios quase invisíveis, é quem moverá os corpos no quadro e as expressões dos atores para transmitir a perturbadora sensação de que o mal está ali, à espreita dos personagens (e do filme, e da vida), sem que estes percebam o perigo. Que outro caminho poderia Lucas ter escolhido? Para demonstrar o mal velado, só mesmo com ajuda daquela que é uma das artes obductas do cinema.
É Palpatine, o senador e grande jogador político, além de agente duplo, que arquiteta planos escusos até se tornar imperador (Episódio III), o grande vilão de toda a saga– e é sintomático que caiba a alguém de tal profissão este papel, vale reiterar. Portanto, é ele que será a força motriz da mise en scène: em uma de suas significativas aparições, o vemos a conversar com a rainha Amidala (1) para tentar convencê-la de que o senado está consumido pela corrupção, devido à péssima gestão do atual chanceler. Sabemos, tendo visto qualquer outro longa-metragem da série “clássica”, que Palpatine é Darth Sidiuous, o habitante de maior entusiasmo do lado negro da Força, que revelou sua identidade quando assumiu o controle da galáxia. Logo, esta simples cena de conversa não é sobre a preocupação que um simpático senhor tem pelo seu povo. (2) Posicionada no meio do quadro, usando uma roupa cinza e com o rosto pintado de branco, Amidala acompanha com o olhar Palpatine, também com vestimenta cinza, mas, importante detalhe, acrescida de ombreiras pretas, a caminhar placidamente pela sala. (3) As expressões faciais e os gestos são muito contidos - como não poderia deixar de ser em se tratando de uma rainha e um senador -, algo que dá a esse constante deslocamento de Palpatine um leve tom de distúrbio. Tal perturbação é acentuada, e este é o grande achado da cena, toda vez que o político invade e atravessa, literalmente, o plano de Amidala. (4) Como só vemos a parte negra de sua roupa, a imagem que se desenha é a de um vulto, uma forma sem definição a eclipsar por segundos a face branca de uma personagem que não desconfia do perigo que está diante dos olhos. Pela primeira e única vez em Star Wars o jogo com o preto e o branco ultrapassa o óbvio e alcança uma depuração que não se esperaria encontrar em filmes como estes.
A força do verme
O ofício do verme é roer, e ele o faz sob a terra. Em A ameaça fantasma, por baixo dos verdes campos do reino distante, o mal trabalha. Por sorte temos um bobo da corte que pisa na meleca e fogos de artifício e confetes coloridos para nos entreter, nos distrair e afastar nossos pensamentos do microscópico ser que opera oculto.
Wellington Sari
Março
de 2012
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