O modesto filme de Robert Wise sobre uma pequena batalha da Segunda Guerra – o narrador, em voz off, anuncia, no final: "esta não foi nem a maior, nem a mais importante campanha da Guerra (...)" – esconde, por baixo de sua singeleza, surpreendente força. Ainda que muitos tiros entre os soldados australianos, comandados por MacRoberts (Richard Burton), um Coronel escocês, sejam trocados com os alemães e que bombas explodam as areias do deserto da Líbia, não são tais elementos que demonstram a rivalidade entre os dois lados do conflito. Na janela 4:3 de Ratos do deserto, auxiliado pelo movimento centrípeto que é intrínseco ao formato, é o gesto quem tem o poder de uma rajada de metralhadora.
A cena exemplar deste movimento é a do primeiro encontro entre MacRoberts e seu algoz germânico, o Marechal de Campo Rommel (James Mason). Capturado após um ataque malfadado, o escocês é atendido pelo médico inimigo. Para aliviar a dor da retirada de uma bala, lhe é oferecido conhaque. Sem hesitação, mas dignamente, ele aceita a bebida. Em seguida, o oficial do Eixo, também ferido em batalha, entra na tenda que serve de hospital. Burton e Mason estão frente a frente. Como na maioria dos bons filmes de guerra, cada polo do conflito é representado por homens cuja reputação, e não ações diretas, assombram o comandante rival ao longo da narrativa. Há, em consequência, enorme respeito mútuo entre estas figuras, que, como um véu, esconde sem esconder a animosidade latente.
Dispostos às bordas do quadro, como boxeadores em seus corners – Wise, sábio, posiciona Rommel, o lutador por quem o público não irá torcer, afundado em uma cadeira, em contraponto a MacRoberts, que é posto sentado ereto em uma banqueta com longas pernas; detalhe importante: entre um homem e outro, repousando em cima de uma mesa, está a garrafa de conhaque (1) –, os oficiais debatem as táticas de guerra adotadas por ambos. Tubruq, uma localização que ocupa espaço insignificante no projeto executado por Rommel, tem sido defendida arduamente pelos australianos, algo que conquista o (desdenhoso) respeito do alemão. Burton e Mason, encerrados no plano/contraplano pouco se movem (2, 3). Quando Burton o faz, precipitando-se em direção à câmera, levantando-se da banqueta, o gesto tem o som de um trovão (ainda que o tom de voz dos atores mantenha-se contido) e a capacidade devastadora de um uppercut (4). Quando somos levados do close ao plano geral, vemos o resultado do golpe: no canto direito, o perfil vencedor de MacRoberts, em pé, rígido, atraindo todos os olhares; no esquerdo, Rommel, queixo encostando no peito, corpo levemente inclinado, o rosto expressando a dor do ferimento (5). No entanto, ele ainda não está acabado: em um último esforço para manter as aparências, o personagem de Mason nega o conhaque oferecido (a "pedido" de MacRoberts) pelo médico . O nazismo, como se sabe, foi largamente baseado na representação imagética, na encenação (na encenação maligna, a que encobre a verdade) . Ao manter a câmera em Rommel, mesmo depois de o rival deixar a tenda médica, mostrando-o apanhar o copo de conhaque e bebendo-o, Wise permite que o público desvende a farsa (6).
Este prolongamento da cena, que é, afinal, sobre MacRoberts e não Rommel, é de grande importância moral (e não dramática, portanto). Não se pode, de maneira alguma, tratar o nazismo com benevolência. O que não implica em adotar suas abjetas estratégias, como, por exemplo, a de se fabricar imagens diabólicas daquilo que se quer derrotar. Wise age com nobreza e, com um simples gesto, mostra a verdadeira face do covarde.
Wellington Sari
Abril
de 2012
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