II Festival internacional lume de cinema
O mal do mundo e o estado da arte

O mal-estar do mundo. É pauta antiga, mas a julgar pela perenidade dos conflitos territoriais, crise econômica global e a dissolução moral resultante dessas reiterações bélicas e financeiras, parece conservar uma atualidade incontornável. A seleção de filmes do II Festival Internacional Lume de Cinema, realizado em São Luís de 14 a 20 de junho, reforça esse diagnóstico. Com a sua proposta autoral, o evento reuniu obras entre a fantasmagoria niilista (Clip) e o contra-terrorismo meditativo (The Policeman), passando pelo desencanto memorialista de As ondas, do espanhol Alberto Morais, e a egotrip existencialista do brasileiro “As Horas Vulgares”.

Em Clip (Klip, Sérvia, 2012), de Maja Milos, temos quase um espectro. A adolescente que assalta a tela com sua câmera de celular produzindo imagens de si mesmo e de suas experiências, tal como uma morta-viva à procura de provas, registros de sua própria existência. O cenário é a não menos fantasmagórica Sérvia, país ainda assombrado pelos horrores da guerra dos Balcãs, de identidade fragmentada e conturbada. Mas que fique claro: o filme não é um retrato localizado. De aparência púbere, Jasna (vivida com impressionante desprendimento por Isidora Simijonovic) e o seu cotidiano dissoluto está longe de ser algo estranho ou extravagante aos jovens à nossa volta, independente dos eventuais traumas coletivos e históricos de cada lugar. Milos evita o diagnóstico, a abordagem patológica, o documental, inscrevendo a personagem na tradição do cinema de horror, do filme de vampiro. A recorrência com a qual a garota pratica o sexo oral no namorado e a necessidade de registrá-lo parece remeter, com alguma subversão é claro, à mitologia vampiresca. Ela busca sofregamente por essa energia vital através do sêmen, abundante ao longo dos seus encontros "amorosos", e na captação do fellatio o reflexo sempre negado de si, do seu envolvimento afetivo com o outro. É um itinerário doloroso, sem concessões que, não por acaso, termina com um beijo ensanguentado. O primeiro e talvez último daquele casal.

Com narrativa minimalista, o espanhol Ondas (Las Oslas, ESP, 2011) é uma espécie de História Real sem as grandes antielipses lynchinianas. Um road movie de movimentos insuportavelmente cadenciados que remonta às origens modernas do mal-estar do mundo, os dois conflitos bélicos de escala planetária (1ª e 2ª guerras). No entanto, o seu esvaziamento narrativo reforça um clichê muito em voga no cinema de autor contemporâneo: a distensão temporal. Têm se a impressão que há algo de gratuitamente cerimonioso ou arbitrário nesse ritmo lento, no descolamento do real que nos leva a indagar suas reais motivações: simples formalismo ou sensibilidade artística? Estilo semelhante norteia The Policeman (Israel, 2011). Construído como uma bomba-relógio, o filme acompanha em paralelo a rotina de uma divisão anti-terrorista da policia israelense e de um grupo de jovens abastados e brancos com pretensões revolucionárias. Trata-se de uma meditação sobre o terrorismo endógeno, cujo rosto não se encaixa nos estereótipos do árabe, da imagem consolidada do inimigo. É um campo-contracampo sobre o nosso tempo de traço frio e distanciado, que se contenta apenas em expor a mecânica do terror, sem maiores riscos e ousadias.

Já em As Horas Vulgares, de Rodrigo Oliveira e Vitor Graize, a origem desse vazio existencial parece anterior ao filme, decorrente de um certo fatalismo cinéfilo que emula a estética do afresco geracional à moda de Philippe Garrel. No entanto, falta-lhe o background utópico do francês, alguma vivência rastreável e concreta para além da tela. Como está, não passa de cinzas e atmosferas daquilo já consumido e extinto em outros filmes, de uma poética alheia.

Porém, o grande filme do festival estava reservado para a última sessão do derradeiro dia da mostra competitiva. Não há no albanês Anistia (Amnistia, Albânia/Grécia/França, 2011), de Bujar Alimani, qualquer índice de nossa época, das aflições ou desejos contemporâneos. Neste sentido, é um intruso dissonante, mas que o júri soube perceber e premiar com o principal troféu do certame: a distribuição do filme no Brasil pela Lume . Mais pessoas terão a chance de conhecer essa obra austera, de motivação imemorial. Basta-lhe um homem e uma mulher - ele um entregador de jornal, ela uma dona de casa – e um espaço, a prisão em que seus respectivos cônjuges cumprem pena, para compor essa história de amor e esperança fulminada pela tradição de violência e honra que emerge imutável, implacável, de outras eras. Declaração de fé na economia dos meios e no cinema, Anistia é esse olhar para o essencial que precisamos em meio à convulsão do mundo e da arte.

Adolfo Gomes


 Junho de 2012