FLOR DO EQUINÓCIO
Yasujiro Ozu, Higanbana, Japão, 1958



Este fotograma pertence a Flor do Equinócio, que foi o primeiro filme colorido de Yasujiro Ozu. No sinal, pode-se ler: “Perigo. Ventos fortes”. Mensagem que antecede o que vai acontecer no filme. A chegada de novos ventos que golpeiam as gerações passadas. A história de costumes sobre mudança geracional e arranjos de casamento dos filmes de Ozu vive aqui uma variação surpreendente. Porque se normalmente em seus filmes é comum haver pais e filhos que se curvem à tradição, que aceitem o seu lugar no mundo, em Flor do Equinócio aparece a transgressão. Setsuko, a filha mais velha, nega os desígnios de seu pai e decide escolher seu próprio caminho.

Acho que isso marca uma diferença importante da maioria dos filmes de Ozu que eu vi, ainda que  no ano seguinte, em 1959, ele tenha rodado Ervas Flutuantes, que também foge completamente da estrutura habitual de seus filmes e também apresenta um confronto frontal entre pais e filhos. No entanto, Flor do Equinócio me parece mais valioso, pois, a partir das histórias, personagens e lugares mais comuns ao universo de Ozu, ele paralelamente desenvolve um pequeno gesto rebelde. Os "ventos fortes" que anunciam o início do filme também poderiam ser aqueles que começaram a chegar também ao Japão e ao estúdio Shochiku, onde uma nova geração de cineastas começava a dar seus primeiros passos, reagindo contra o cinema de seus pais.

A palavra chave aqui é precisão. Quando se vêem planos inesquecíveis como esse de Ozu, sente-se que no lugar deste plano não poderia haver nenhum outro, nada menos do que o assombro ante uma realidade que, mesmo sabendo-se que existia, parecemos estar a observá-la pela primeira vez. Durante quase toda a duração de Flor do Equinócio o teimoso pai se mantém amuado como uma criança petulante. Ele está sozinho. Precisa aceitar a decisão que sua filha tomou. A maneira como encara as  situações em sua vida evidencia sua condição humana.

Ozu filma isso sem alterar seu estilo milimétrico. É um filme com forma de sinfonia, composto de planos fixos, em que cada corte, mais que uma continuidade, parece indicar um pequeno salto. Suas composições ensaiadas, especialmente em seus planos-contraplanos (um jogo dentro de casas ou prédios, mostrando um corredor de um lugar, para logo em outra cena chave mudar a perspectiva e ver o mesmo corredor do lado oposto) e nas cenas domésticas (onde as “cortinas” japonesas - que também dividem os cômodos espacialmente - reenquadram a cena), trabalham contra o acomodamento do nosso olhar, que se mantem alerta pelo contraste das cores. Vermelho e verde são os que mais resistem diante de nossos olhos, pela marcação tão poderosa que Ozu os dá: em roupas, em portas e na natureza, como se através deles estivesse tentando contar uma história completamente diferente do filme em si (não estamos muito longes das cores de Minnelli, de Brigadoon) ou simplesmente fazendo uma abstração possível do enredo.  E as chaleiras vermelhas, lindas, que estão sempre ali, e permanecem por alguns segundos em quadro quando todos os atores já saíram dele, como se elas também compartilhassem os sentimentos dos personagens, sendo parte necessária da história.

Com relação ao ajuste do olhar, nada o favorece como a fixidez do plano. Salta à vista a tensão de suas linhas, de seus planos atravessados pelos eixos ortogonais dos interiores japoneses, por movimentos de corpos tão equilibrados, e um protocolo dramatúrgico inexplicável. A mise en scène despojada – e o que é realmente admirável em Flor do Equinócio é o tom humoroso do filme - reflete as amarras sociais nas quais as personagens se deslocam. Nem por isso a derrocada do patriarca é menos do que implacável, mas ainda mais elegante, como um toque de acabamento, um passar de verniz. É esse o modus operandi de Ozu. Fazer um filme de gênero, descrever o estado do mundo e apostar nos humildes como faziam Ford ou Renoir.

Em Ozu há uma ideia de que o jovem (seja na infância ou na adolescência) é a ponte que cria uma possibilidade de contato humano entre gerações distintas, que evidenciam uma sociedade que está prestes a desaparecer e que tem que fazer frente a uma modernidade. Uma modernidade que não cessa de ser idêntica a si mesma, idêntica em seu caráter repressivo e ameaçador, desde os garotos de Eu Nasci, Mas.., desde Sobre a Modernidade, desde as pinturas do homem com o mindinho torto de Caverna dos sonhos esquecidos.

Marlon Krüger


 Março de 2012