Não é novidade para ninguém que Abel Ferrara, entra ano e sai ano, permanece um dos diretores preferidos da revista, já tendo ocorrido até pauta dedicada a ele. Sua carreira, por outro lado, tem andado oscilante, com maior espaçamento entre cada projeto, incursões inesperadas no documentário e só tendo conseguido financiamento na Europa. Seu último filme, 4:44 – Last Day on Earth, de 2011, permanece inédito no Brasil. Ainda assim, ele já tem em preparação um novo projeto, sobre os bastidores do escândalo de Dominique Strauss-Kahn, ex-diretor do FMI que foi acusado de abuso sexual ano passado – premissa para um projeto ferrariano por excelência, para quem é capaz de intuir o que ele pretende tirar dessa relação. É também outro alento sua visita pelo Brasil no último mês de abril por conta da retrospectiva "Abel Ferrara e a religião da intensidade", patrocinada pelo Centro Cultural Banco do Brasil. Tivemos a oportunidade única de uma conversa rápida, mas agradável, quando ele esteve no Rio (e alguns dias depois, passaria também em São Paulo e Brasília).
Estamos curiosos sobre o seu novo projeto, sobre Strauss-Kahn...
Estamos fazendo um filme sobre ele. Sabe, é sobre poder, vício sexual...
Um pouco como Enigma do Poder, talvez?
Acho que tem elementos deste nele. Mas eu acho que é mais como Vício Frenético. É difícil explicar. Gerard Depardieu atuará nele. E Isabelle Adjani também atuará. Esses dois atores têm uma longa vida juntos, uma longa relação, entre homem e mulher. Então eu tenho certeza de que haverá muito o que fazer. O que me interessa no filme é o relacionamento entre um marido e uma mulher. Duas pessoas poderosas, e como o poder separa elas das pessoas normais. Então, ao mesmo tempo, é sobre todo mundo. Porque quando isso estava em julgamento em Nova Iorque, estava na manchete de cada jornal do mundo. Inacreditável. O que é isto? Ela [a esposa] é muito rica. Ele é basicamente um professor universitário. Um professor que entrou na política e encontrou ela. Ele não era um cara rico, ele é do Marrocos. Ela sim é de uma família muito rica. Então é a velha história do cara com a sua esposa que tem o dinheiro. Todo mundo tem isso, entende? Você tem que fazer o que tem que fazer, e ela queria que ele fosse o presidente [antes do escândalo, Strauss-Kahn era apontado como possível candidato às eleições presidenciais na França]. Tenho certeza de que ele queria também. Mas ele tinha um trabalho importante de qualquer forma. Ele era diretor do FMI. Houve muita espionagem... Vocês conhecem a história?
Apenas o que lemos nos jornais. Os escândalos...
A questão é: alguém queria derrubá-lo. Porque, na Europa, prostituição não é contra a lei. E este cara não é um cafetão. Ele foi pego por seu estilo de vida. Mas o cara sempre foi de esquerda, era a favor de 35 horas de trabalho semanais. Esse cara está sendo pintado como um monstro que ele não é. Como diretor do FMI, ele era muito pró-África, entendem? Eu acho que isso não tem tanto a ver com as pessoas contra as quais ele estava na França, mas com pessoas que não gostavam da sua política. Sabe, ele era comunista antigamente, era candidato do Partido Socialista. Ele está sendo pintado nos jornais...
Por causa de questões políticas?
Politicamente, mas também por suas posições como diretor do FMI, o banco mundial.
Sobre este filme, qual é a situação? Há um planejamento?
Vamos filmar agora. Estamos preparando agora. Exceto que eu estou aqui. (risos). Estamos preparando agora. Antes de setembro. Assim que eu voltar! (risos)
E a sua relação com o Gerard Depardieu? É um novo ator para você...
Eu o conheci uma vez. Eu amo o trabalho dele. Só de vê-lo uma vez você consegue sentir que ele é incrível. Ele acabou de fazer um filme com [Harvey] Keitel. O filme ainda não saiu, eles acabaram de terminar. E eles se deram muito bem. Para mim ele se parece com o Harvey, ele tem aquela presença e aquele poder. Ele é um gigante.
Mudando um pouco de assunto, você trabalhou com muitos gêneros: o filme de gângster, de policial, ficção científica... O que significa para você trabalhar com esses gêneros?
É uma estrutura. Apenas dá uma estrutura à coisa que você vai filmar em 90 minutos. Você não pode fazer um filme de vinte minutos ou de quatro horas. Você sabe que está fazendo um filme de 90 minutos. É quase intuitivo, você pensa assim. Eu constantemente tento sair disso, mas... É como poesia haiku. O gênero te dá uma linguagem para a audiência, para as pessoas entenderem para onde algumas coisas estão indo. A coisa do vampiro é um pouco diferente, porque a história do vampiro é uma tradição que existe em todas as culturas do mundo. Nos esquimós do Alasca ou em arranhões em paredes na China. É esse personagem que suga o sangue dos vivos e que não morre. É assustador como esse personagem é encontrado ao longo das civilizações, a forma como ele aparece... Estávamos fazendo um filme e tinha esta minha montadora, uma chinesa, que estava convencida que havia vampiros. Ela dizia "Vi um outro hoje." Mas qual é a razão disso?
Com relação a Invasores de Corpos, era muito original. Não é ficção científica. Não sei que gênero seria, mas é uma história muito original deste cara, Jack Finney. Vocês leram a história original de Invasores de Corpos? Vocês deveriam ler isto. É inacreditável.
Não li. Mas até onde eu sei o seu filme é bem diferente da história original.
É diferente porque na história original os marcianos eram caras legais. Eles chegavam aqui e, basicamente, nos davam as boas novas. Finney estava escrevendo depois de Hiroshima. E basicamente os marcianos vinham e diziam "Hei, caras, acalmem-se. Vamos ensinar a vocês um estilo de vida yogi." Eles não eram os caras malvados. Mas em Hollywood você não pode fazer um filme em que os marcianos são os bonzinhos. É impossível. Eu tentei um pouco, mas...
O seu mundo em Invasores de Corpos é mais como um mundo apocalíptico.
O final?
Sim, o final. Mas tem a coisa do exército, da química...
A ideia do mundo vem do ponto de vista de uma base do exército. Os caras tomaram os militares primeiro. Foi uma coisa complicada. Recebemos esse script com a base militar. Se você quiser realmente entrar nisso... Um filme no qual eu sei que você não é você só poderia acontecer em um mundo onde todos se conhecem. Eu digo: "Eu sei que ele não é ele." Eu não posso dizer isso, porque não o conheço. Então, a ideia dessas pessoas administrando uma base militar não é o cenário perfeito para essa história. Mas nós recebemos isso de Hollywood. Nic [St. John, roteirista] fez o melhor que pôde com essa estrutura. Pessoalmente, eu faria como no primeiro filme, em uma pequena cidade onde todos se conhecem. Porém, dado o fato de que é numa base militar, há essa coisa de dominar o mundo. Isso começaria com os militares. Para você dominar o mundo, você tem que ter os militares ao seu lado. É uma maneira assustadora de pensar como eles iriam se infiltrar e dominar o mundo. Especialmente quando você vê aqueles caminhões saindo com aqueles pods para outras bases militares, e todo mundo recebendo ordens. Então, há muitos pontos positivos nisso também. Mas Invasores de Corpos é uma história interessante, poderia ser feita vária vezes. Não sei como é este da Nicole Kidman [The invasion, 2007], mas é uma história que você pode fazer várias vezes, cada vez de uma forma diferente. Você pode fazer aqui no Rio. Você pode fazer onde quiser.
Gostaríamos que você falasse um pouco do processo de montagem dos seus filmes, porque é algo sempre muito impressionante e interessante. Como funciona? Você participa da montagem?
Eu estou trabalhando na montagem o tempo todo. Agora estou trabalhando com Tony [Redman], o montador que trabalhou em vários filmes meus. Ele mantém um afastamento muito grande. O editor fica fora do processo de filmagem. Eu fico envolvido com o meu diretor de arte, meus atores e escrevendo o roteiro, como eu fiz em 4:44: Last day on earth. Mas o montador fica separado disso. Então ele chega e pega o material, ele não quer saber sobre nada. Ele não quer estar no set. Ele vê o material e não quer saber se um plano demorou uma semana para ficar pronto, se demorou um dia, se gostamos da tomada... Eu não falo sobre a filmagem. Mas ele está montando enquanto estamos filmando. Nós sempre temos um corte bruto enquanto estamos filmando, para vemos em que direção estamos indo. Isso é muito importante para mim. Então, quando terminamos, aí começa o grande processo. A montagem dura muito tempo. Especialmente com o digital... Eu não sou apaixonado pela fotografia em digital, eu filmei apenas 4:44 em digital. Se você filma um documentário, aí sim, porque você filma muito. Mas se você faz um filme de ficção, você sabe o que está fazendo. Por mim, eu filmaria sempre em película. Mas primeiro você filma e depois você edita digitalmente, o que é a melhor forma de fazer, com a imagem e o som. A melhor coisa do digital são as camadas [layers] de imagem. Em 4:44 fizemos muito isso. Duas imagens diferentes aparecendo juntas. Blackout tem muito isso...
Como em Gangues do gueto.
Como em Gangues do gueto. Mas em 4:44 nós fizemos isso mais do que nunca.
Nós estávamos pensando em O enigma do poder, que deve ter sido um trabalho muito difícil de montagem...
Sim, mas nós tínhamos a história. Vocês leram a história original? Vocês têm de ler. Tem oito páginas. Eu fui muito fiel à história. Então, se vocês lerem a história do [William] Gibson...
Eu acredito em você.
Você leu?
Não li. Mas a montagem, eu acho, tem um papel fundamental para a vida do filme, sua energia. Não só a história, mas a maneira como você reuniu essas imagens de diferentes meios e materiais...
Sim. Nesta história as pessoas acharam que estávamos sem dinheiro e por isso ficamos repetindo e tudo aquilo. Mas está tudo na história original, na escrita. Gibson é um escritor brilhante. Vocês conhecem Gibson? Ele é um gênio. A história tem oito páginas, e é um filme inteiro. Todos os personagens... E eu segui tintim por tintim a história. E é engraçado, uma história de oito páginas lindamente escrita, e não um livro, que dá um filme inteiro de ficção. É estranho.
Para mim, a montagem dos seus filmes é: como tornar aquilo mais e mais louco e, ao mesmo tempo, manter o sentido. Entende? Como não se perder nesse processo de montagem. Penso nisso quando vejo O enigma do poder, Blackout...
Um movimento em falso e você perde o espectador. Quando você está fazendo o filme e alguém fode com a montagem... Você quer manter o espectador totalmente... lá. Para manter o espectador, a montagem é crucial, você não pode errar, entende? Quando você perde o espectador, você se fodeu. Você perde o sentimento do espectador. Tudo tem que fazer sentido, entende? Mas você tem que achar no filme, tem que estar no seu material filmado. O material do filme diz como montar. Eu não penso em como vou montar antes de ter o material filmado.
Sim, a montagem começa na filmagem.
O filme lhe diz onde cortar. Você só tem que ver o filme e ele lhe diz onde cortar. É por isso que tem esses filmes onde o ritmo do montador não tem nada a ver com a forma como o filme foi filmado. Esses filmes não trazem nenhuma relação com o material filmado....
Bem, estamos falando sobre o processo de filmagem, podemos falar sobre o filme dentro do filme...
Sim, está em muitos dos meus filmes. Porque... sobre quem você vai fazer filmes? Quem você conhece melhor? O diretor e os atores, entende? Estou hoje com uma atriz [referindo-se a sua atual namorada, a atriz Shanyn Leigh]. As pessoas que você conhece na vida são cineastas. Então, para ser verdadeiro com as coisas que você conhece, você faz um filme sobre um filme, e você tem o processo de realização de um filme. Em Hollywood, eles odeiam filmes sobre fazer filmes.
***
Neste momento, foi preciso pagar a conta do bar onde estávamos e sair rumo ao CCBB. A conversa continuou no translado, mas acabou não sendo gravada. O mesmo papo se estendeu, seguindo pelo filme-dentro-do-filme em Blackout: Nana, de Christian-Jaque. Ferrara falou sobre sua relação com Dennis Hopper, que faz o papel do diretor do remake de Nana, revelando que o ator havia entrado imediatamente antes das filmagens e não fez ensaios – inicialmente o papel seria do Forest Whitaker e o filme-dentro-do-filme seria um que o próprio Whitaker havia dirigido. A escolha de Nana foi feita pelo próprio Hopper nas vésperas das filmagens. Ferrara descreve Hopper como um ator autoritário, que berrava no set e não gostava de seguir marcações da equipe de fotografia. Não deixava de ser um manipulador como o seu personagem. Ferrara ainda complementou dizendo que é preciso deixar o ator fazer o seu trabalho, pois o próprio diretor aprende com isso. Para ele, Depardieu será um caso semelhante em seu próximo filme.
Entrevista realizada por Calac Nogueira e João Gabriel Paixão. Agradecimentos a Thiago Brito e Julio Bezerra.
Junho
de 2012
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